Assaltaram a Gramática
Diferenças regionais na fala
Preconceito linguístico
Em seu livro “Educação em língua materna: a sociolinguística na sala de aula”, Stella Maris Bortoni-Ricardo* afirma que as tirinhas do Chico Bento, que na década de 1980 quase tiveram suas publicações impedidas pelo Conselho Nacional da Cultura, o qual alegava um possível mau exemplo às crianças brasileiras, que passariam a falar “errado” como o personagem em questão, serve, não obstante a tudo isso, de excelente material para ser usado em sala de aula:
“Chico Bento pode se transformar, em nossas salas de aula, em um símbolo do multicultarismo que ali deve ser cultivado. Suas historinhas são também ótimos recursos para despertarmos em nossos alunos a consciência da diversidade sociolinguística.” (Stella Mari, 2004)
Sendo assim, uma vez que professores disponham de materiais afins, é possível conduzir à amplificação do campo visual de seus alunos no que diz respeito às diferenças regionais na fala de determinados grupos de falantes. Isto é perfeitamente possível, pois evidencia o preconceito que há nos tratamentos dispensados aos fenômenos que existem nas formas de expressão/comunicação de pessoas habitantes ou provenientes de algumas regiões do Brasil, como é o caso desse personagem de Maurício de Sousa.
Assim como nas tirinhas do Chico Bento, há preconceitos em vários veículos de comunicação, como na mídia em que programas de vários gêneros da televisão brasileira sempre transferem características rudes e grotescas à figura do cidadão nordestino, dando a ideia de ele ser uma pessoa inferior aos demais. Quando um programa televisivo quer figurar um “homem do interior”, por exemplo, frequentemente o colocam em situação inferior aos outros personagens, provocando risos nos companheiros de cena e nos espectadores, como Marcos Bagno afirma em seu livro “Preconceito linguístico: o que é, como se faz”.
Bagno mostra que a fala nordestina nada tem de engraçada ou ridícula, ao lançar mão da seguinte comparação:
“Na
pronúncia normal do Sudeste, a consoante que escrevemos T
é pronunciada [ts] (como em tcheco) toda vez que
é seguida de um [i]. Este fenômeno é
chamado de palatalização... Quando,
porém, um falante do Sudeste ouve um falante da zona rural
nordestina pronunciar a palavra OITO como (oytsu), ele acha isso
engraçado, ridículo, ou errado. Ora, do ponto de
vista meramente linguístico, o fenômeno
é o mesmo – palatalização -,
só que o elemento provocador desse fenômeno, o
[y], está antes do [t] e não depois
dele.” (Bagno, Marcos – Preconceito
linguístico: o que é, como se faz, 2007)
O que ocorre nesta questão, na visão de Bagno, é que se deixa de problematizar a língua e passa-se a problematizar o falante desta e, ainda, a região geográfica na qual este está localizado, uma vez que não é respeitado o que chamamos de Regionalismo, ou seja, palavras ou expressões próprias de uma região, segundo definição do dicionário Aulete Digital.
De todo modo, não é só o regionalismo que causa a variação linguística numa comunidade de falantes. Há fatores, segundo Stella Maris Bortoni – Ricardo, no livro citado acima, que também favorecem diferenças nos vocábulos.
Estes fatores são:
- Grupos etários facilmente identificados no interior de uma família, uma vez que avós falam diferentes de netos, e pais falam diferente de filhos.
- Gêneros sexuais, pois homens e mulheres usam vocábulos diferenciados, tendo as mulheres preferências pelos diminutivos, enquanto que os homens preferem o uso de gírias.
- Status socioeconômico, uma vez que o acesso ao computador e à internet não é privilégio de todos.
- Grau de escolarização, pois dependendo da escolaridade de alguém, é a forma como se comunica socialmente.
- Mercado de trabalho, pois há áreas que necessitam ser compostas por profissionais capazes de ampla flexibilidade de vocabulários em diferentes estilos, visando serem perfeitamente compreendidos pelos mais diferenciados públicos.
- Rede social, já que cada qual adota comportamento linguístico semelhante ao das pessoas com as quais convivem.
* Stella Maris Bortoni – Ricardo é formada em Letras Português e Inglês pela Universidade Católica de Goiás (1968), tendo cursado o primeiro ano no Lake Erie College, em Ohio, US; tem mestrado em Linguística pela Universidade de Brasília (1977) e doutorado em Linguística pela Universidade de Lancaster (1983).
* Marcos Bagno - Escritor, tradutor, linguista e professor da Unb- Home page: http://www.marcosbagno.com.br/