Aprender com as Diferenças
Escolarização de crianças com fissura lábio-palatal
Um estudo exploratório
Por Glorismar Silva
O nascimento de um bebê com má formação congênita labiopalatal repercute de forma significativa na família e na vida da própria criança, provocando reações diversas e adversas. Enquanto a família tende a superproteger seu filho, na criança, particularmente, essas repercussões agravam-se quando da entrada na vida escolar. A má formação afeta a região facial, o funcionamento da musculatura orofacial e a articulação da boca e nariz, bem como o som de sua voz. A aparência facial e o comprometimento da fala interferem nas interações sociais e no comportamento social da pessoa com fissura labiopalatal (FLP). A literatura sobre este tema é escassa e são necessários estudos que introduzam as experiências de crianças com FLP no contexto da escola inclusiva.
Este trabalho traz à luz conhecimentos sobre a experiência escolar desses alunos, que são vítimas de rótulos que enfatizam o seu “defeito”, o que frequentemente resulta em retraimento, frustrações e baixa autoestima. A pesquisa em questão constitui um estudo exploratório de caráter qualitativo, no qual a pesquisadora investiga o processo de escolarização de cinco aluno(a)s com FLP. Os sujeitos de nosso estudo são alunos(as) com FLP, na faixa etária entre 10 a 14 anos, matriculados em escolas da rede pública de João Pessoa, PB. Os dados foram coletados através de observação nos vários espaços escolares e entrevista com gestores, docentes, mães e os próprios alunos.
Os resultados revelam que alunos podem se evadir da escola ou fracassar e que a escola, mesmo aceitando sua matrícula conforme garantia legal, não desenvolve estratégias para assegurar o acolhimento a este aluno, que tende a ficar ainda mais vulnerável às reações da comunidade escolar frente à sua aparência e voz. Contraditoriamente à ausência de ações que promovam a inclusão, as visões de gestores e docentes são de que esses alunos são percebidos como alunos com plena capacidade de crescimento pessoal e de evolução nos seus estudos, requerendo, porém, mais apoio emocional e educacional da escola e da família. Ou seja, a escola assume que o problema é do aluno e a escola não precisa fazer nada.
Introdução
O objetivo desse texto é trazer a tona e investigar o contexto escolar de crianças que nascem com Fissura Lábio Palatal e a sua experiência como alunos de classe do ensino fundamental em escolas públicas, frente às exigências do cotidiano escolar.
Sabemos que, embora as fissuras faciais sejam comuns de acontecer na população de um modo geral, a exploração e os estudos sobre o tema ainda se centram nos procedimentos cirúrgicos e de reabilitação. Diante disto, encontramos dificuldades de encontrar, no meio acadêmico, na literatura e em estudos, conteúdos relativos aos aspectos educacionais dessas pessoas. A escassez de materiais sobre o assunto foi um dos motivos que nos levou a estudar sobre as malformações orofaciais, dentro de uma perspectiva educacional.
Merece atenção especial a entrada da criança com fissura na escola, pois representa o primeiro e mais importante ambiente extra familiar, ou seja, de maior influência na sua vida, em que ela será alvo de julgamentos e avaliações, tendo em vista que "nossas escolas refletem valores sociais onde considerável ênfase é colocada na aparência física normal e em habilidades verbais" (ALTMANN, 1994, p. 504).
O que é Fissura Lábio Palatal?
A FLP[1] é uma má-formação congênita que afeta a região facial, particularmente o funcionamento da musculatura orofacial e da articulação da boca e nariz. A fenda existente coloca em comunicação as regiões oral e nasal e, como consequência, provoca o escape de ar pelo nariz e voz nasalizada.
As fissuras podem ser unilaterais ou bilaterais e variam desde formas mais leves, como pequena abertura no lábio ou úvula bífida, até formas mais graves como as fissuras completas que atinge o lábio e o palato. Podem ocorrer fissuras atípicas que envolvem outras áreas além do lábio superior e palato, como a região oral, nasal, ocular e craniana.
As pesquisas apontam sobre as causas das fissuras como sendo pela combinação de fatores genéticos e ambientais. O fator genético que pode ser herdado dos pais e os ambientais como, o uso do álcool ou cigarro; fatores nutricionais (deficiência de vitamina B12, tiamina, ácido fólico e a hipervitaminose), exposição a raios X na região abdominal; ingestão de anticonvulsivante ou corticoide, durante o primeiro trimestre de gestação.
Em relação à frequência das FLP, estudos recentes no Brasil apontam para uma incidência de um para cada 650 nascidos vivos(NAGEM FILHO et al., apud VARANDAS, 1995). O tipo de fissura mais comum é a de lábio e palato do lado esquerdo, sendo este tipo mais frequente no sexo masculino e a fissura somente de palato no sexo feminino.
O tratamento das fissuras de lábio e palato requer a colaboração de uma equipe multi e interprofissional, tendo em vista a diversidade das fissuras e suas implicações de ordem emocional e psicológica, frequentes nas pessoas com fissuras e em suas famílias. Neste processo de reabilitação, as cirurgias reparadoras são as primeiras e as mais complexas abordagens terapêuticas, as quais objetivam a restauração do complexo maxilo-facial, de forma a torná-lo o mais normal possível em termos de função e estética. Desse modo, o período e as sequências ou etapas das cirurgias a serem realizadas podem variar de acordo com o estado clínico geral, o tipo de fissura, bem como a idade de cada pessoa.
Acriança com fissura e a escola
Como mencionamos, a escola é o primeiro espaço fora da casa da criança, onde ela inevitavelmente ficará exposta, colocando a prova suas habilidades intelectuais, físicas e orais. O fato da existência da FLP ou da sua cicatriz de reparação, deixando-a, portanto, com a face de certa forma ainda transfigurada e a voz alterada (nasalizada), aliado a falta de conhecimento dos professores e da comunidade escolar como um todo acerca da fissura de lábio e/ou palato e a não compreensão da fala da criança, poderá gerar no aluno sentimentos de insegurança e incapacidade, inibição em se expor em público, e até, certo isolamento social.
Contudo, é importante ressaltar que o aluno com FLP não apresenta empecilho ou impedimentos em sua interação com a escola e em seu processo de ensino-aprendizagem. No entanto, para que haja um ambiente de interação e aprendizado satisfatório é preciso criar espaços mais agradável e amistoso e um ambiente de aprendizado na escola, onde a criança possa assimilar os conteúdos formais e não formais, com menos angústia, constrangimentos e estresse.
Metodologia: como realizamos as observações
Observamos a realidade vivenciada nas escolas de forma assistemática, ou seja, de maneira informal, sem controle ou instrumental específico, na escola ou dentro da classe (onde ficávamos nas últimas carteiras ou na primeira fila, de acordo com o tamanho e distribuição das carteiras na sala), observando a classe e fazendo anotações no caderno, assim como na escola, durante a hora do intervalo e nas aulas de Educação Física.
Entrevistamos mães, alunos, professores e diretores e analisamos documentos escolares, tais como, trabalhos, avaliações e boletins escolares dos alunos. As entrevistas realizadas foram do tipo semiestruturada, constando de uma série de perguntas abertas e fechadas. As entrevistas com os alunos, aconteceram em suas próprias residências, com objetivo, também, de deixá-los mais à vontade para responder às questões, porque sabíamos, de antemão, que iríamos provocar algum embaraço ou constrangimento, por se tratar de uma atividade que iria expor sua verbalização e por sermos, ainda, desconhecidas para a maioria deles.
Procuramos analisar a situação vivenciada por cinco crianças e adolescentes com FLP, na faixa etária de dez a quatorze anos, matriculados no ensino fundamental e médio, em escolas públicas na cidade de João Pessoa, PB. O motivo maior pela opção por essa cidade foi o de possuir um serviço de reabilitação multiprofissional, denominado Núcleo de Reabilitação de Fissuras Labiopalatinas (NUCLEOFIS) do Hospital Universitário Lauro Wanderley – UFPB, onde existe um grande número de pessoas com esse tipo de má formação (cerca de 1.040 pacientes, até 06 de agosto de 2002) cadastradas e atendidas.
Resultados
Dos cinco alunos observados, quatro são do sexo masculino e um do sexo feminino (dado que reforça os estudos sobre a maior incidência das FLP em pessoas do sexo masculino). O tipo de fissura que se mostrou mais frequente, entre os entrevistados, foi a FLP do lado esquerdo apresentando-se em quatro dos cinco alunos.
Todos os alunos da pesquisa se submeteram a, pelo menos, uma cirurgia, sendo que um aluno realizou apenas uma cirurgia – a de fechamento do lábio – possuindo ainda o palato (ou, como é comumente denominado, o "céu da boca") completamente aberto. Os demais alunos realizaram uma média de três a quatro cirurgias e um aluno chegou a realizar dez cirurgias.
Com relação à escolarização dos pesquisados, existe um baixo nível de escolaridade dos alunos, se comparado com suas respectivas idades, uma vez que quatro, dos cinco alunos observados, não terminaram o segundo ciclo do ensino fundamental, ou seja, estes alunos estão em idade entre 10 e 13 anos e não terminaram ainda a antiga 4ª série do ensino fundamental. Apenas um aluno, que tem 14 anos, se encontra na 7ª série do ensino fundamental, havendo, portanto, compatibilidade idade/série.
Quatro alunos citaram apenas um nome de colega com quem mais brincava e um aluno não citou nenhum nome. Em geral as pessoas com FLP têm mais dificuldades em estabelecer amizades, percebemos com os relatos queas amizades se concentram mais em duas bases, ou estão na escola, mais precisamente dentro da sua própria classe e, portanto as brincadeiras ou conversas se limitam mais às questões concernentes à escola, ou estão em casa mesmo, no seu meio familiar.
Percebemos que esses alunos apresentam dificuldades na interação verbal com as pessoas a sua volta. Porém, a maioria dos alunos respondeu que se sente à vontade na hora de falar na classe. Mas constatamos através das observações realizadas, que eles pouco falam em classe e, principalmente com a professora, eles pouco interagem. Assim, camuflam a realidade, talvez por não quererem se expor tanto ou por timidez.
Opiniões dos Professores
Sete professores foram entrevistados, pelo menos quatro professores apontaram o aluno com FLP como sendo uma criança ou jovem que fala pouco, em função da presença da voz nasalizada, e que isso o torna mais reservado, porém, mesmo assim, a maioria não relaciona as dificuldades de aprendizagem com a presença das sequelas das fissuras. Os professores também colocaram as seguintes opiniões:
[ Percebem a dificuldade inicial do aluno com a comunicação e interação.
[ Essa dificuldade pode refletir no processo de ensino aprendizagem.
[ Relataram a falta de conhecimento e de informações sobre essas malformações.
[ Conseguem intuitivamente satisfazer às necessidades dos alunos.
[ As relações com os membros da escola ficam prejudicadas pelo comportamento mais reservado.
Algumas considerações
As questões que envolvem as pessoas que apresentam a má formação labiopalatal ou suas sequelas são abrangentes, como pudemos perceber. Suas famílias, por sua vez, também são bastante afetadas, pois sofrem ao se depararem com uma situação para a qual não estão preparadas.
Estamos cientes de que o papel da escola é de fornecer toda estrutura física e profissional de forma que seja capaz de atender todas as crianças e jovens, independentemente de suas condições sócio econômico, etnia, preferências religiosas e sexuais, diferenças físicas, cognitivas e pessoais.
Destacaríamos alguns pontos relevantes dos achados da pesquisa:
[ Os alunos/as apresentam sérias dificuldades nas áreas afetivo, psicológico, social e educacional.
[ As famílias sofrem por se depararem com uma situação não esperada.
[ A fase escolar é a principal e mais difícil etapa pela qual passam esses alunos porque a escola é o local onde expõe sua maior dificuldade: a fala.
[ A ignorância da comunidade escolar sobre as fissuras e suas implicações anatômico funcionais e educacionais.
[ A escola acolhe o aluno sem discriminação ou paternalismo, porém não desenvolve estratégias para assegurar a permanência e sucesso escolar do mesmo.
[ Os alunos são percebidos como tendo plena capacidade de crescimento pessoal e de evolução nos seus estudos.
Referências e fontes
ALTMANN, E. B. C. Fissuras labiopalatinas. Carapicuíba, Pró-Fono Departamento Editorial, 1994.
CONFERÊNCIA mundial sobre necessidades educativas especiais: acesso e qualidade. Salamanca, Espanha: UNESCO, 1994
GRACIANO, M. I. G. Conhecimento sobre as má formações congênitas labiopalatais:um quadro geral de orientação à prática do serviço social. Serviço Social e Realidade. Franca, V. 7, n.2: 1998.
LOFIEGO, J. L. Fissura labiopalatal: avaliação, diagnóstico e tratamento fonoaudiológico. Rio de Janeiro: Revinter Ltda, 1992.
MOORE, K. & PERSAUD, T.V.N. Embriologia Clínica. 6. ed. Rio de Janeiro: Koogan, 2000.
SEVERINO, A. J. Metodologia do Trabalho Científico. 18. ed. São Paulo: Cortez, 1992.
SILVA, G.G. Fissura labiopalatal: abordagem fisioterápica no tratamento dos órgãos fonoarticulatórios. 1993. Monografia de conclusão do curso de graduação em fisioterapia. Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 1993.
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[1] FLP: Fissura Lábio-Palatal.