A Semana - Opiniões
01/12/2003 - Unicamp, Fuvest e a agonia dos vestibulares
Vestibular
Mais de 150 mil inscritos prestaram a prova da Fuvest, no último final de semana, esperançosos de serem aprovados para passar num dos prestigiados cursos da mais badalada universidade brasileira, a Universidade de São Paulo (USP). Uma semana antes, a não menos conceituada Universidade de Campinas (Unicamp) havia realizado o seu exame vestibular.
Cursos tradicionais e novíssimos disputavam palmo a palmo a liderança dos mais concorridos exames. Medicina, Direito, Arquitetura ou Engenharia? Mecatrônica, Fisioterapia, Gastronomia ou Midialogia? Novas carreiras surgem, outras se atualizam, algumas mantém seu status e se adaptam aos novos tempos e as novas demandas.
As escolas de Ensino Médio avaliam as provas, ano a ano para tentar encontrar os atalhos que permitam a seus estudantes a aprovação tão sonhada. Bons resultados em vestibulares (especialmente nas universidades federais ou estaduais) valem muitas matrículas e um enorme reconhecimento dos pais e da comunidade em geral.
Os cursinhos especializados trabalham até a véspera das provas prometendo a seus alunos os milagres que permitam a cada um deles o acesso a um sonho. “Aula dada, Aula Estudada” é o lema dos vestibulandos, nenhum momento pode ser desperdiçado, toda atenção é indispensável, cada exercício feito pode fazer a diferença em relação aos concorrentes pela mesma vaga...
Os cursos mais concorridos chegam a ter até 70 ou 80 candidatos por vaga. A cobrança e o stress dessa autêntica competição entre os candidatos provoca os resultados mais diversos nos estudantes, do “branco total” na hora de fazer a prova a alterações de pressão, de dores de cabeça a desmaios.
O importante é passar. Nessa competição a medalha de prata pode significar a ruína de um candidato. O ideal olímpico do Barão de Coubertin, criador das Olimpíadas modernas no final do século XIX, de que o importante é competir, é literalmente desprezado pelos vestibulandos, por seus professores, pelas escolas...
A disputa é tão vil que surgiram fraudes e candidatos passaram a comprar vagas para cursos mais concorridos, como medicina, ou a entrar nas provas com fones de ouvidos através dos quais alguém de fora respondia as perguntas...
Tudo isso para consolidar vitórias que permitam chegar ao “cálice sagrado”, ao tão sonhado mundo universitário. Isso passou a ser de tal forma difundido na sociedade e nas escolas que se inverteu a lógica da educação no Ensino Médio, as escolas passaram a se preocupar muito mais com a aprovação de seus alunos no vestibular do que com uma formação ampla, global, voltada para a ética e para a cidadania.
Diariamente os alunos do Ensino Médio são submetidos a uma massacrante rotina durante a qual, em seis ou sete aulas, tem que memorizar fórmulas, decorar acontecimentos históricos, “entender” a fotossíntese, “estar por dentro” dos acontecimentos da Alca ou da União Européia ou ainda, “conhecer” em detalhes obras como “A Hora da Estrela” de Clarisse Lispector ou “Macunaíma” de Mário de Andrade.
Durante três anos os alunos se preparam para o vestibular e, se esquecem que esses exames se realizam num período menor que uma estação e que a vida, por sua vez, se prolonga por várias e várias estações...
Há, inclusive, exames muito mais concorridos a serem realizados posteriormente, como nos alerta Gilberto Dimenstein em sua coluna publicada na Folha de São Paulo do último domingo, 30 de novembro. Para se conseguir emprego a competição é muito mais dura, a quantidade de concorrentes é muito maior, a possibilidade de erro é muito menor...
E como nos alerta esse competente colunista da Folha, o que procuram os especialistas em recursos humanos não é o aluno de melhor memória, aquele que conseguiu tirar as melhores notas na escola, que consegue se lembrar com perfeição de todos os elementos da Tabela Periódica,...
O que se procura são profissionais criativos, aptos a trabalhar em grupo, capazes de pesquisar e buscar alternativas para os problemas do mundo real, que sejam sociáveis, que dominem os conhecimentos técnicos relativos a suas formações originais, mas que também conheçam e estudem outros saberes,...
E, apesar de sabermos disso, mantemos a fórmula dos vestibulares, dando a ela algumas novas roupagens. Exigimos nesses exames aquilo que consideramos ultrapassado no mundo pós-universidade. Fazemos com que nossos alunos estudem tendo como objetivo o vestibular quando sabemos que o que realmente importa vem depois dos vestibulares, se iniciando com a plena formação profissional de nossos universitários e se estendendo vida afora com uma constante atualização e aperfeiçoamento, tanto profissional quanto pessoal.
Criticar é muito fácil podem pensar alguns leitores. Muitas pessoas respeitadas no mundo acadêmico têm feito isso. Você é apenas mais um a engrossar o coro dos descontentes. Entretanto, o que pode ser feito para mudar as regras que têm dominado a educação no Ensino Médio e mantido os vestibulares?
Devemos partir do princípio de que a formação no Ensino Médio deve deslocar seu foco, centrado nos vestibulares, para uma educação que permita aos estudantes maior capacidade de argumentação, crítica, criação e autonomia. Isso significa que os professores devem rever sua prática, a escola deve proporcionar condições para que isso aconteça (e incentivar tal prática) e a comunidade deve ser esclarecida quanto aos motivos e repercussões (favoráveis) dessa mudança.
Não esperem facilidades, tudo será extremamente complicado. Os alunos não entenderão, os professores ficarão confusos, a escola relutará em investir e os pais continuarão acreditando que a melhor educação era aquela da época em que eles eram alunos, há 20 ou 30 anos atrás...
Sei do que estou falando por que a escola em que trabalho fez uma opção como essa. Depois de muito tiroteio para todos os lados (de pais, professores, alunos, direção), no final do ano, estamos colhendo os primeiros frutos. Nossos alunos tiveram notas altas no ENEM, os trabalhos e projetos propostos têm resultado em ótimas respostas por parte dos estudantes, eles estão atentos e participativos, tem lido jornais, pesquisado na internet, argumentam com propriedade,...
Chegamos lá? Não, estamos apenas no começo. Temos muito a aprender e, acredito que, movidos por esse espírito poderemos crescer e muito. A empáfia e o orgulho exacerbado não combinam com um trabalho tão duro e pautado na realização coletiva como esse. Humildade para saber aprender, espírito de equipe e iniciativa; disposição para inovar, não ter medo de errar e sempre ter disposição para pesquisar são ferramentas essenciais nesse tipo de trabalho...
E o vestibular? Que tal análise de currículo escolar, entrevistas, provas escritas e provas de criatividade como as empresas estão fazendo? Temos que aproximar a escola da realidade, poderia ser um começo interessante...
Obs.: Trabalho no Colégio Cecília Caçapava Conde, em Caçapava, no Vale do Paraíba paulista (entre São José dos Campos e Taubaté). As mantenedoras são pessoas progressistas, interessadas em promover uma educação de maior qualidade, por isso apostaram numa renovação total no Ensino Médio, como disse, as primeiras sementes estão sendo colhidas...