Planeta Educação

A Semana - Opiniões

João Luís de Almeida Machado é consultor em Educação e Inovação, Doutor e Mestre em Educação, historiador, pesquisador e escritor.

Sobre o Novo ENEM
Paralelos entre Reforma e Reformulação

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A mais famosa Reforma da história, ocorrida no século XVI, levou ao surgimento do Protestantismo e das religiões Luterana, Calvinista e Anglicana. Consolidou-se a partir da ação de homens que, movidos por ideais e interesses específicos, uniram-se em torno de propostas que já eram discutidas e divulgadas na Europa há pelo menos 200 ou 300 anos. A insatisfação com o Catolicismo – em especial com a incoerência percebida quanto ao discurso e prática – era, portanto, anterior pelo menos 2 séculos antes da consecução dos movimentos liderados por Martinho Lutero, João Calvino e Henrique VIII.

E por que inicio artigo sobre o novo ENEM, o Exame Nacional do Ensino Médio, prova adotada pelo Ministério da Educação do Brasil, em pleno século XXI, falando sobre o Protestantismo de 500 anos atrás?

Porque há similitudes entre os acontecimentos de outrora e os de hoje, ainda que contextos e circunstâncias muito diferentes não nos levem a realizar esta aproximação. Para uma melhor compreensão cabe, porém, examinar as diretrizes básicas enunciadas pelo MEC quanto ao Novo ENEM.

O Ministério da Educação apresentou uma proposta de reformulação do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) e sua utilização como forma de seleção unificada nos processos seletivos das universidades públicas federais. A proposta tem como principais objetivos democratizar as oportunidades de acesso às vagas federais de ensino superior, possibilitar a mobilidade acadêmica e induzir a reestruturação dos currículos do ensino médio. As universidades possuem autonomia e poderão optar entre quatro possibilidades de utilização do novo exame como processo seletivo:

• Como fase única, com o sistema de seleção unificada, informatizado e online;
• Como primeira fase;
• Combinado com o vestibular da instituição;
• Como fase única para as vagas remanescentes do vestibular.
(Fonte: Site do Ministério da Educação – MEC)

O primeiro aspecto a destacar refere-se, é claro, à ideia de Reforma, apresentada no documento do MEC através da palavra Reformulação. A partir de um rápido exame no Dicionário Aurélio é possível perceber que os vocábulos Reformar e Reformular são independentes, ou seja, possuem significados próprios e autônomos um em relação ao outro. Há, porém, pontos de aproximação, pois ambos referem-se à ideia de modificar ou de construir novamente algo com diferente formato ou fórmula. Conduzem, neste sentido, ao conceito de regeneração, de reconstituição ou de reconstrução.

Tanto na Idade Moderna, quando da ebulição do Protestantismo quanto no que tange a educação brasileira no 3º Milênio, existem estruturas anteriores em vigência, em plena execução, que demandam – a partir de análise crítica, proposição construtiva, exame de alternativas, estudo de práticas e ações bem-sucedidas, coragem política para agir e capacidade de investimento – alterações a serem implementadas de imediato.

E não nos referimos aqui somente à aplicação de mudanças superficiais, que componham “perfumaria”, ou seja, que não signifiquem modificações reais, concretas, que literalmente representem “virar a mesa” e modificar a cultura vigente. Reformas ou Reformulações demandam e preconizam a ideia de que paredes serão derrubadas, novos cômodos serão criados e de que o que foi concebido originalmente será reestilizado. Apesar disto, estas ações preveem também que a estrutura de apoio das edificações ou instituições em reforma ou reformulação será mantida. Com esta afirmação define-se que, em ambos os casos, não se constituem revoluções a partir de reformas ou reformulações, pois as bases do sistema são preservadas, mantidas intactas...

Outro ponto de aproximação não está explicitado no documento eletrônico contido no portal do MEC, mas é igualmente relevante, pois se refere à criação de contexto favorável às mudanças previstas e arroladas, ou seja, colocadas em discussão e execução. A Reforma Protestante, por exemplo, só consolidou-se no século XVI e não antes disto porque foi justamente neste período que surgiram elementos sociais, culturais e econômicos que a patrocinaram. A junção de variáveis - como a ascensão da burguesia, o absolutismo e o movimento renascentista que agitavam a economia, as instituições políticas e a cultura da época - foi decisiva para que também o elemento ideológico prevalente a partir da religiosidade fosse questionado e reformado (ou reformulado com o surgimento de alternativas ao poder central do Catolicismo?).

No Brasil de hoje também há uma conversão de fatores internos e externos que nos conduz a alterações em variados segmentos, entre os quais a Educação. A globalização e a crise são significativos vetores econômicos que indicam os caminhos e alternativas de futuro que se revelam a todos os países, inclusive ao Brasil. E não há perspectivas favoráveis no horizonte para aqueles que não investirem fortemente em suas escolas – da educação infantil a universidade. Este indicativo externo influencia as políticas internas – das discussões no Congresso às conversas de botequim – falando alto a todos, sem exceção porque se referem à sobrevivência do país e de cada um de seus cidadãos. Estudar significa empregabilidade, produtividade, capacidade de gerar recursos, provimento de divisas, possibilidade de novos investimentos...

Os governos (federal, estaduais e municipais) aparentemente já entenderam a mensagem. A sociedade civil também está atenta e demanda mudanças na educação. Os órgãos de comunicação acenderam a luz vermelha e já tornaram a educação pauta de suas reportagens e editoriais. As empresas privadas estão preocupadas com a qualidade da educação no país, pois temem que no futuro possam sofrer com um verdadeiro apagão da mão de obra (escassez de profissionais qualificados para realizar os trabalhos disponíveis e necessários à evolução de seus negócios). Há o risco de, até mesmo, investidores externos migrarem as aplicações nos setores produtivos que aqui fariam para países em que a educação seja de alto padrão.

Diante destas perspectivas, com a faca no pescoço, creio que todos sabem que qualquer perda de tempo quanto às necessárias e prementes reformas educacionais significará penúria, desemprego, mais gente passando necessidade, menor arrecadação para os governos, menos divisas para as empresas...

Podemos ainda destacar que as mudanças no ENEM, ao definirem como objetivos à democratização do acesso ao ensino universitário, a mobilidade acadêmica e a reestruturação do Ensino Médio no país também por isto se aproximam da Reforma Protestante, ao menos em sua essência. Se não é possível afirmar isto quanto à prática, que se revelou em certas ocasiões pouco propícias à aproximação com o conceito de democracia ou mobilidade, o paralelo é válido quando o comparamos com o que foi concebido ou pensado inicialmente pelos reformadores (exceto Henrique VIII, movido por interesses claramente pessoais que se imiscuíam as questões de estado).

E, certamente, entre os nobres propósitos explicitados quanto ao ENEM, todos valiosíssimos enquanto ideias propostas, temos que assinalar como o mais importante à reestruturação do Ensino Médio, transformado durante tantos anos apenas numa ponte cuja travessia era necessária para se chegar à universidade e desprovida de maior valor por ter se tornado apenas um agregado de saberes que permitiriam a consecução de tal travessia. Até agora o que vemos (ainda) é uma etapa decisiva da formação educacional - durante a qual se realizam trabalhos com adolescentes, em ebulição e efervescência hormonal, física, emocional e cultural – sendo utilizada apenas como repositório de informações e dados.

Voltando a ideia da ponte, seria como se passássemos os três anos no Ensino Médio a ensinar estes alunos as senhas necessárias para que eles, ao final da travessia, pudessem utilizar-se delas no momento de um “pedágio” ou cobrança equivalente para entrar na universidade sem que depois tivessem que se preocupar com tais saberes porque eles teriam se tornado desnecessários, supérfluos e pouco ou nada significativos para suas experiências posteriores.

Neste sentido, outra reforma anunciada pelo MEC, através do Conselho de Educação, anunciando reformas na estrutura do Ensino Médio, com a proposição de quatro eixos de trabalho ao redor do qual funcionarão os currículos (Trabalho, Cultura, Ciência e Tecnologia) e a ampliação da carga horária para 3 mil horas constitui importante parte do esforço de consolidação de uma nova etapa de vida para este momento da formação de nossos estudantes. Esforço este que somente tem valor quando percebido, assim como as mudanças do ENEM, enquanto parte de um conglomerado de ações (governamentais ou não) que, conjuntamente irão reformular ou reformar não apenas o Ensino Médio ou o acesso à universidade, mas a educação e, como conseguinte, a própria sociedade.

Somente assim nossos jovens deixarão de ingressar nas universidades sem os essenciais subsídios culturais, emocionais, humanitários, científicos e técnicos demandados pela sociedade para a constituição de um futuro melhor para todos e para o país. Aí sim poderíamos ter uma clara visão daquilo que surgiu com a efetivação de Reformas ou Reformulações na educação brasileira, com a escola que esperamos finalmente de pé, reconstruída, modernizada, reestilizada...

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