A Semana - Opiniões
15/9/2003 - Erradicar o analfabetismo?
É possível alfabetizar com R$ 15,00 por mês?
O que significa alfabetizar? Seria simplesmente permitir que o educando conheça as letras e saiba que ao uni-las formam-se palavras? E que essas palavras, articuladas a outras, formam sentenças que explicam, justificam, comparam ou medem? Ou ainda, que a composição de textos (reunião de várias palavras), também pode ser compreendida e realizada a partir de um processo de alfabetização?
Alfabetizar não seria também permitir que o educando crie condições de analisar, criticar, discutir, apresentar idéias ou ainda entender conceitos?
A inserção do indivíduo na sociedade, com plena capacidade de entender as leis, participar dos processos políticos e integrar-se ao mercado de trabalho, também não deveria ser uma conseqüência da alfabetização?
Sei que ainda parece um pouco distante, mas não seria adequado alfabetizar com o intuito de promover a inclusão digital? Dessa forma não estaríamos nos antecipando e concluindo dois grandes objetivos ao mesmo tempo?
Há muito mais por trás da capacidade de identificação de letras, palavras e sentenças do que nossa vã filosofia é capaz de perceber. Trata-se de um autêntico passaporte para a cidadania, que muitos de nossos compatriotas, infelizmente, até hoje não puderam conseguir (segundo os dados oficiais, existem no Brasil aproximadamente 17 milhões de analfabetos).
Por esse motivo (e inúmeros outros), a alfabetização desse enorme contingente de excluídos sociais deve ser encarada com a máxima seriedade possível. Imaginar que com apenas R$ 15,00 por mês é possível legar aos alfabetizandos toda essa variada gama de possibilidades mencionadas anteriormente, me parece um tanto quanto surreal.
Mesmo sabendo que as intenções do projeto são as melhores possíveis e levando-se em conta que o propósito inicial, de acordo com a declaração do secretário de Erradicação do Analfabetismo, João Luiz Homem de Carvalho, é o de permitir que os educandos sejam alfabetizados em níveis elementares, seria adequado um investimento de recursos calculado como sendo 5 vezes maior para se atingir os resultados que a sociedade realmente espera.
A idéia de dissociar o projeto da rede escolar formal, com o período de aulas jamais excedendo um tempo máximo de 2 horas e sendo realizado por entidades terceirizadas credenciadas pelo MEC, tendo em vista atingir resultados semelhantes aos da Índia, deveria ser repensado, analisado com profundidade e percebido a partir de suas possibilidades e limitações.
Não podemos nos permitir a adoção de um novo projeto na área que venha a ser um fracasso ou que tenha resultados que fiquem distantes das metas traçadas. Um novo fracasso condenaria uma ou mais gerações a pobreza, a exclusão social. Seríamos irresponsáveis se admitíssemos que por medida de economia, aplicássemos recursos em quantidade inferior ao necessário.
É claro que passamos por dificuldades, que temos compromissos a saldar com o FMI e com governos, bancos e instituições financeiras dos países do G7 (Grupo dos sete países mais ricos do mundo), que temos responsabilidades quanto à manutenção da estabilidade econômica dentro do país...
Nossa maior dívida, entretanto é com o povo. Suas carências e seu empobrecimento ao longo das últimas décadas, a despeito de expressivos avanços obtidos por alguns governos anteriores na área social, continuam sendo grandiosos. Há um contingente de desempregados cada vez maior, conseqüentemente, a fome se tornou um flagelo assustador.
A educação, sem qualquer sombra de dúvidas, é o elemento essencial para que a população carente desse país possa superar a desesperança e atingir uma condição estável e justa de vida. Não se trata, evidentemente, de prorrogar os discursos e abortar a ação prática. Há dados que comprovam a afirmação anterior sendo apresentados mundo afora por países que investiram com seriedade no setor e desfrutam, algumas décadas depois, de uma maior estabilidade sócio-econômica.
Economizar na alfabetização desse contingente expressivo de adultos tem efeito semelhante a comprar uma passagem de avião pagando apenas metade do preço e tendo que saltar (de preferência de pára-quedas), no meio do caminho. Além disso, com toda a defasagem acumulada por anos e anos de distanciamento da escola, o processo de ensino-aprendizagem tende a ser lento entre esses alfabetizandos.
Resumir todo o processo em um prazo de seis meses me parece uma temeridade. Em muitos casos, as aulas terão que se estender por um período de tempo superior, assim como, em alguns (poucos) o prazo pode ser até inferior ao previsto pelas autoridades.
De qualquer forma, antes de qualquer iniciativa precipitada, o governo deve refazer suas contas e verificar até que ponto poderia melhorar os investimentos a serem feitos na área para, então, partir para uma efetiva realização, que renda os "dividendos" sociais que legitimamente se aguardam há tanto tempo...
Obs.-
Na semana passada, entre tantos eventos que resgataram
a memória dos mortos no trágico
atentado de 11 de Setembro de 2001, que resultou
na queda das torres gêmeas do World Trade
Center, não se abriu muito espaço
para comentar os 30 anos do golpe de estado no
Chile, que ocasionou a morte do presidente socialista
Salvador Allende. A Folha de São Paulo,
porém abriu uma coluna especial escrita
pelo ex-ministro da Saúde e ex-candidato
a presidência da república, José
Serra, que vivia no Chile na época do
golpe. A coluna é imperdível, por
isso, podendo conseguir o jornal ou acessar pela
internet (http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mundo/ft1109200322.htm),
o façam.