Aprender com as Diferenças
Minha primeira aventura com a bengala
Sonia Hoffman e Eduardo Paes
Depois de algumas aulas de Orientação e Mobilidade, me senti mais confiante para realizar um desejo que sempre tive: sair sozinho à rua. E que motivo melhor para começar a fazer isto do que ir à festa de aniversário do Renato, meu melhor amigo, sem que meus pais precisassem me levar até lá?
Conversei com eles sobre isto e senti que, no começo, não ficaram muito satisfeitos com esta minha ideia. Insisti com meus pais, dizendo que já me sentia seguro para sair sozinho, principalmente a lugares próximos da nossa casa. Finalmente, usei um argumento bastante convincente:
"Não se preocupem! Não preciso atravessar rua alguma para chegar lá. Depois, já conheço bem o caminho porque muitas vezes vocês me levaram até a casa dele. Lembram?"
Eles pensaram um pouco e, finalmente, permitiram que eu fosse, pedindo apenas que eu telefonasse para eles quando chegasse lá e quando eu decidisse vir embora.
"Eba, vai ser uma grande surpresa para o Renatinho. Por esta ele não está esperando!"
Fui para o quarto me arrumar para esta minha "grande aventura". Abri o armário e escolhi a roupa mais legal que eu tinha. Não foi difícil encontrá-la, pois minha mãe sempre organiza minhas roupas do jeito que combinamos ser o mais prático para mim.
Calcei meu tênis mais novo e procurei dar um laço bem firme, como meu pai havia ensinado, para não correr o risco de ele se desfazer e eu pisar no cadarço e cair.
Peguei a Sandy, minha bengala, que a partir de hoje tinha a certeza de que passaria a ser minha constante companheira de saídas. Despedi-me dos meus pais e ouvi deles aquelas recomendações que tantas e tantas vezes fizeram para meu irmão mais velho e que, muitas vezes, imaginei e desejei que fossem dirigidas também para mim.
Apanhei o presente na mesa, abri a porta, atravessei o jardim e cheguei ao portão que dava para a rua. Já na calçada, com o coração batendo forte, respirei fundo e pensei: "João Vítor, agora é contigo! Coragem e vamos em frente!" Com isto, posicionei a bengala à frente do meu corpo, fiz a primeira varredura e dei início à caminhada, ativando todos os meus sentidos para perceber e interpretar todas as informações que auxiliassem ou atrapalhassem o trajeto.
Depois de alguns passos, percebi que estava em frente a casa de dona Sofia, pois sua calçada era feita com pedras portuguesas - como meu avô havia me explicado.
Logo em seguida, identifiquei a calçada do seu Joaquim que, ao contrário de dona Sofia, não estava nem aí para a sua conservação e a calçada apresentava altos e baixos - o que me obrigou a ser mais lento em meus movimentos. Eu sabia que a parte mais complicada do trajeto era justamente a inicial, pois lembrava que as outras calçadas até a casa de Renatinho eram planas.
Um cheirinho gostoso de pão me indicava que eu estava próximo à padaria da esquina, na qual eu deveria virar à direita e caminhar até a outra esquina a mais ou menos 150m, onde eu deveria virar novamente à direita.
Quando passava pela padaria, o Sr. Nestor, que era o dono, gritou do balcão para mim:
"Ei, João Vítor, andando sozinho pela rua? Cadê sua mãe?"
Rapidamente, me virei em direção de sua voz e respondi com um sorriso orgulhoso:
"Olá, Sr. Nestor. Ela ficou em casa. Hoje, estou fazendo minha primeira saída sozinho. Já tenho 11 anos e fui muito bem orientado no uso da bengala. Amanhã venho aqui pra comprar meu doce preferido!".
Fui em frente, imaginando a cara de espanto que ele deve ter feito ao receber aquela informação... as pessoas não estão acostumadas a ver crianças andando de bengala sozinhas nem mesmo pelas ruas do seu bairro.
Mais adiante, me dei conta de que já estava no meio da quadra por causa do som estridente vindo da serralheria do seu Manuel. Como o som era muito forte, fiquei por algum momento sem poder captar outras informações auditivas e isto me deu um medo de perder a orientação. Procurei me concentrar um pouco mais e continuar meu caminho em linha reta, como até então vinha fazendo. Uma senhora que passava, talvez por ter notado minha preocupação, me perguntou se eu precisava de ajuda. Agradeci gentilmente, como me havia sido ensinado, e disse que estava tudo bem.
Quando cheguei na próxima esquina, ouvi crianças jogando bola no pátio de um grande prédio. Percebi que elas pararam seu jogo e comentaram baixinho:
"Olha lá aquele menino ceguinho que sempre passava por aqui de mão dada com a sua mãe. Agora ele usa a bengala e está só!" "Será que ele não tem medo de andar sozinho?" "Que legal! Assim, ele pode ir pra tudo que é lado como a gente!"
Ouvi estes comentários e pensei que muitos mais eu ouviria ainda neste mesmo dia e em todos os demais da minha vida. Mas meu desejo de ser cada vez mais independente era muito forte e, por isto, não deixaria que nenhum comentário me desanimasse a seguir em frente.
Com passos mais rápidos porque me sentia mais seguro, entrei na rua onde morava Renatinho. Sua casa ficava a poucos metros, logo após dois degraus que marcavam o início da ladeira. Felizmente, ele morava bem no começo dela! Em todo caso, seria fácil achar a casa de qualquer modo, pois no jardim havia um grande viveiro de pássaros e, especialmente naquele dia de festa, eu já começava a identificar algumas vozes conhecidas que se aproximavam.
Posicionei a bengala corretamente para a subida dos degraus e, em frente ao portão, nem tive tempo de achar a campainha porque sua mãe, entre surpreendida e contente por me ver ali sozinho, veio logo me receber e me conduziu até o Renatinho. Abraçamos-nos e eu lhe contei minha pequena aventura. Ele ficou muito feliz e mais feliz ainda ficou quando lhe entreguei meu presente: uma bengala igual a minha, pois ele também é cego.
Texto elaborado por Sonia B. Hoffmann e Eduardo F. Paes para a Oficina de Deficiência Visual do Curso de Formação Continuada na Modalidade Educação Especial, promovido pela Divisão de Educação Especial - Secretaria da Educação do Estado do Rio Grande do Sul.
Porto alegre, RS, agosto de 2007.