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Um zero para as professoras
Texto gentilmente enviado pela escritora Regina Drummond

Era uma vez... Ai, é só a gente deixar que as histórias comecem sozinhas que elas vão direto para o "Era uma vez.."

Está bem. Hoje, vou deixar.

Era uma vez, uma menininha que adorava brincar de professora.

Quando as amigas chegavam, ela dizia:

"Vamos brincar de escolinha? Eu sou a professora."

E, se naquele dia ela estivesse brincando sozinha, não tinha problema: ela sentava as bonecas em fileiras a sua frente e ficava dando aula para elas, a voz pausada e grave, o dedo em riste:

"Hoje, nós vamos falar de..."

Ela imitava a sua professora na escola, igualzinha, porque admirava-a muito. Tudo era "a minha professora". Todos os dias, a menina contava para a mãe o que tinha acontecido na escola, com os mais miúdos e específicos detalhes que conseguia — e vice-versa, claro, porque sentia que a professora era sua amiga de verdade, uma pessoa em quem ela podia confiar. Sentada no chão com uma, debruçada na mesa da outra, histórias e mais histórias, reais e imaginárias, eram tecidas com os fios castanhos dos cabelos da princesa...

"A minha professora disse que..." era uma frase com a força de mil cavalos. Podia ser o que fosse — nem Deus contestava! (mesmo porque até Ele sabia que não iria adiantar nada!).

Um dia, o pai viu quando ela colocava, disfarçadamente, uma maçã na mochila.

"Eu já pus a sua merenda.", disse ele.

"Esta é para a minha professora", respondeu a menina.

O pai começou a rir:

"Xi, essa de levar maçã para a professora é manjada...! Acho que não funciona mais, não!"

Ela empinou o nariz e não disse nada.

No final do dia, estava exultante:

"Você disse que não adiantava levar uma maçã para a minha professora, é? Pois vou lhe dizer uma coisa: ela a-d-o-r-o-u!"

Quando a professora lhe dizia que ela era linda, era assim que ela se sentia.

Quando a professora lhe dizia que ela era inteligente e capaz, era assim que ela se via.

Quando a professora lhe dizia "Eu tenho orgulho de ter uma aluna como você!", era com a maior alegria que ela se esforçava mais um pouquinho para ser sempre digna da professora que tinha — e dos elogios, é claro!

"O que você vai ser quando crescer?", perguntavam as pessoas.

Ela enchia o peito de orgulho e respondia sem piscar: "Professora."

Seu destino estava selado!

Ela bem que poderia ter escapado! Mas quem resiste ao canto da sereia do prazer de se fazer o que se gosta? Por que ela não foi ser médica-engenheira-advogada-dentista como todo mundo?

Não precisaria, diariamente, levantar-se antes do sol, enfrentar os ônibus e os engarrafamentos, tourear 40 crianças com necessidades individuais — e todas com uma mãe que as achava dignas das mais especiais atenções, e todas com um pai, duas avós, várias tias e inúmeras amigas dando palpite em tudo! E ainda tinha a diretora, sempre exigindo mais, e as colegas, com as suas picuinhas e as suas dificuldades, e a vida normal que não parava, marido, casa, filhos... Ela passava batom no sorriso e seguia em frente, levando alegria e entusiasmo para todos a sua volta, ajudando um, amparando outro, dando mais atenção a um terceiro...

De vez em quando, bem que dava vontade de desistir! Mas aí, justo quando ela estava assim, meio desanimada, devagar-quase-parando, aquela menininha quietinha do cantinho à esquerda levava uma maçã para ela e oferecia-a, timidamente, como quem pede desculpas. Era a maçã do amor mais verdadeira — e ela se esquecia de tudo, e ficava feliz outra vez, e achava que a sua vida era maravilhosa, porque ela estava sempre recebendo triplicada a alegria que dava e ela, então, atiçava a coragem e o desprendimento que sempre tinha de reserva no coração, para que eles empunhassem as suas espadas e atacassem, prontos para destruir todos os monstros que ameaçavam impedi-la de seguir a sua vocação, que era o seu prazer maior.

Há certas coisas que a gente só faz por amor. No sorriso e na espontaneidade das crianças, ela tirava o seu verdadeiro sustento — pois nem mesmo o salário baixo conseguia arrefecer o seu entusiasmo! Ela aprendera a valorizar o que as pessoas têm por dentro, ignorando as belas embalagens cheias de vento, para assim fazer menores as suas próprias necessidades e conseguir ser feliz com o que tinha.

Queridas professoras, ainda bem que Deus as faz professoras ainda crianças — caso contrário, o que seria dos nossos filhos?

Sempre gostei de brincar de ser uma bruxa poderosa. E não posso deixar de pensar em como gostaria que isso fosse verdade, nem que fosse por um instante só, apenas para fazer uma única magia: dar um zero a cada uma de vocês — no salário, é claro!


Regina Drummond, autora de livros infantis, contadora de histórias e tradutora, vem desenvolvendo, há anos, projetos de estímulo à leitura e eventos para professores e alunos, com palestras, cursos, oficinas pedagógicas, shows e narração de histórias em escolas, bibliotecas, livrarias, centros culturais, clubes, supermercados, shopping-centers, etc, além de participar de feiras e bienais de livros, nacionais e internacionais.

Foi coordenadora do Espaço das Atividades Infantis da Bienal Internacional do Livro de São Paulo desde sua inauguração, em 1992, tendo coordenado inclusive o Salão Internacional do Livro/99 e a Primeira Feira Infantil, Juvenil e de Quadrinhos de São Paulo/2003. Há anos vem participando ativamente dos projetos “O Escritor na Cidade”, “Gosto de Ler”, “O Escritor na Biblioteca”, “Paixão de Ler” e “ProLer”, entre outros. Contou histórias em programas de rádio e televisão; escreveu várias peças de teatro infantil, tendo, inclusive, atuado como atriz em algumas delas.

Entre outros, tem publicados "A história da Bíblia para jovens", "O passarinho Rafa", "Uma nova vida para o passarinho Rafa", "Uma companheira de viagem para o passarinho Rafa", "Menino brinca com menina?", "Um avião de avô", "Uma menina caprichosa", "Vovô Regina", "Gente miúda e gente graúda", "Eu, bruxa" e "Fábulas de Esopo".

Nascida em Minas Gerais, “no meio dos livros”, como gosta de dizer,
Regina Drummond nunca trabalhou com outra coisa que não envolvesse livros. É formada em Letras, fala inglês, francês e alemão; atualmente, mora em Munique, na Alemanha, onde coordena o “Espaço Cultural Carlos Drummond de Andrade”, mas está sempre no Brasil para atender sua agenda de muitos compromissos. (http://www.releituras.com/rdrummond_menu.asp)

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