Aprender com as Diferenças
Todo mestre é sempre um aprendiz
Depoimento de professora
O grupo de professores da escola municipal onde trabalho foi comunicado em outubro de 2002, em um Centro de Estudos, que receberia, no ano seguinte, uma aluna DV.
A princípio houve muitos protestos, inclusive da minha parte. Eram comuns perguntas do tipo: Vão jogar a garota aqui e pronto? Os cegos não têm que estudar no Instituto Benjamin Constant? Por que ela vai vir para cá? Quem vai nos capacitar? Quem vai me ensinar a dar aula pra cego? E o material didático? Ela vai receber os livros em Braille? Eu vou ter que aprender Braille? Eu sou obrigado a dar aula pra ela? Posso escolher outra turma? O problema maior foi que, na hora da reunião, não havia ninguém para responder as perguntas.
O tempo foi passando, as angústias aumentando, as perguntas sem
respostas. Muitas estão sem resposta até hoje. Diziam-nos para ter
calma, porque, quando a aluna chegasse, as coisas iriam se esclarecer, teríamos apoio necessário. Com o tempo, percebemos que o apoio e a orientação pedagógica não chegariam sem que nós fôssemos buscá-los e, principalmente, estivéssemos abertos a recebê-los. Só com o tempo percebemos também que ninguém tinha as “respostas”, simplesmente porque teríamos que buscá-las dentro de nós mesmos.
Dizer pra uma pessoa ansiosa como eu que teria que esperar até o ano seguinte para saber o que fazer era demais. Comecei, então a buscar informações na Internet. Descobri o site do Instituto Benjamin Constant.
Fiz o download da fonte Braille Kiama, o que me permitiu conhecer o
alfabeto Braille. A fonte fica disponibilizada como uma fonte qualquer
e, ao ser acionada, permite a visualização dos caracteres em Braille
durante a digitação. Depois, eu imprimia, colocava do avesso em cima de um emborrachado e furava os pontos com a ponta de uma caneta fina.
Preparei um pequeno diálogo de apresentação para o primeiro dia de aula da Lindinha (nome fictício). No dia, enquanto ela lia (acompanhando o que eu falava) e ria, eu me segurava para não chorar. Perguntei: "Dá pra entender?" Ela respondeu: "Está pequeno (se referindo ao tamanho da letra), mas dá." Perguntou: "Os sinais de pontuação são diferentes? Não tem letra maiúscula?"
Depois descobri que teria que aumentar o tamanho da fonte para 30 e descobrir as teclas corretas para os sinais de pontuação e letra maiúscula, pois havia ficado tudo errado. Ela comentou ainda: "É a primeira vez que alguém, sem ser a tia Rosinha (se referindo à professora que a alfabetizou) escreve algo em Braille pra mim. Nem minha mãe sabe. A senhora vai poder corrigir meus trabalhos?" Fiquei sem responder. Como explicar pra ela que eu não sabia Braille, que o computador tinha feito tudo pra mim?
A partir do site do IBC descobri também que poderíamos solicitar material didático para a Lindinha. A diretora fez um ofício e depois alguém foi buscar. Nesse meio-tempo, não lembro exatamente quando, recebemos a visita de pessoas do Instituto Helena Antipoff. Confesso que até então desconhecia a existência e função do Instituto.
Tivemos a oportunidade de conhecer a professora Isabel e o professor Ivan (DV). Participei de algumas reuniões e as coisas começaram a se esclarecer.
Uma delas foi de suma importância. Nela uma professora de outra CRE (não lembro o nome) nos contou sobre sua experiência com DVs e nos apresentou muitos materiais adaptados. Lembro-me até hoje do OVOBRAILLE.
Com uma caixa de ovos cortada ao meio, sem tampa e seis tampinhas de refrigerante, nos ensinou como alfabetizava as crianças. Um dia levei as tais caixas e as tampinhas para a sala. Achei que era importante que os alunos da turma compreendessem como o Braille funcionava. Lindinha adorou. Todos queriam aprender com ela.
Muitas das informações que recebia nas reuniões passava para os colegas. Muita coisa a gente inventava. Me lembro da professora de Geografia querendo explicar fuso horário. Montei uma tabela no Excel, dividida em 24 colunas, representando os fusos. Colei tiras de contact transparente nas colunas de forma alternada.
Furei os caracteres em Braille representando algumas cidades do mundo. Passei exercícios orais e Lindinha conseguia resolvê-los com a ajuda da tabela. Depois a tabela acabou sendo usada por outros alunos da turma que também não conseguiam fazer os exercícios de fuso horário de forma tradicional.
No primeiro ano, Lindinha ficou em uma turma com 28 alunos. Na turma havia muitos alunos com baixo nível de letramento, oriundos de classes de aceleração de outras escolas. Lindinha acabou sendo o destaque da turma.
Depois percebemos que tinha sido um erro colocá-la naquela turma. O tempo que parávamos para ditar e soletrar coisas pra ela fazia falta, pois os demais alunos precisavam de um atendimento individualizado até mais do que ela. Alguns professores sugeriram que, para o ano seguinte, ela fosse para uma turma com melhor aproveitamento.
Em 2004, Lindinha foi matriculada na turma 601. A turma a recebeu muito bem desde o início, com o único problema de quererem fazer tudo pra ela. Eles tinham que perceber que ela era deficiente e não incapaz. A turma era muito barulhenta e muitas vezes eu tinha que dizer: "Vocês não perceberam que tem uma deficiente visual na sala? Ela precisa me ouvir. Vocês estão vendo no quadro. Ela não." Não há nada mais constrangedor do que ficar toda hora falando pra turma que há um DV na sala com ele presente, mas muitas vezes isto foi necessário.
Disponibilizei na sala um cartaz com o alfabeto Braille e muitos aprenderam com facilidade. Agora Lindinha podia passar bilhetinhos que os outros conseguiam ler. Ela inclusive ensinou algumas colegas a escrever com a máquina Parkson.
Com o tempo, meus textos de inglês foram ficando grandes e não dava mais pra ficar furando todas as letras. Surgiu, então, a ideia de começar a gravar os textos em áudio. Isso facilitava, pois oferecia certa autonomia a Lindinha, principalmente durante as avaliações. Ela trazia o fone de ouvido e transcrevia para o Braille à medida que ouvia a fita.
O problema era pra corrigir depois. Ter que ler em Braille, usando os olhos é bem complicado. Demorava, pois tinha que comparar cada caractere com a tabela que eu tinha. Alguns alunos da turma já liam bem melhor do que eu. Às vezes eu mandava por ela as avaliações para a professora da sala de recursos para que fossem transcritas, mas nem sempre isso era possível. Surgiu, então, a ideia de incluir Lindinha digitalmente. O problema foi que não tínhamos laboratório de informática, nem nenhum computador disponível...
Em julho de 2004, fiz o download do DOSVOX para o computador da minha casa pra descobrir como ele funcionava. Veio outro problema: Como ensinar uma cega a digitar corretamente se eu mesma “catava milho”? Perguntei ao meu marido as posições corretas dos dedos nas teclas. Arrumei um teclado velho, que não funcionava. Lindinha fez em Braille algumas letras com contact transparente com a máquina Parkson e colamos nas teclas. Ela levava aquele teclado pra casa e toda semana tinha que me mostrar que já dominava um exercício de digitação. Prometi a ela que, quando já estivesse dominando o uso do teclado, a ensinaria a usar o computador.
Ela dominou o teclado mais cedo do que poderia supor. Tinha que cumprir a promessa. Convenci a minha diretora a permitir a instalação do DOS VOX em um computador da secretaria da escola.
Comecei a dar aula pra ela nos meus tempos de complementação uma vez por semana. O som era horrível, mas ela achava tudo ótimo.
Fui ao NCE da UFRJ conversar com o professor Antônio Borges, responsável pelo desenvolvimento do programa. Consegui alguns sintetizadores de voz. Agora o computador já lia em inglês, francês, espanhol, voz de homem, mulher e criança; era só configurar.
No Natal de 2004, Lindinha ganhou o computador dela e as coisas foram ficando mais fáceis. Fui à casa dela instalar o programa. Lembro até hoje da alegria dela ao escrever uma carta para um tio agradecendo o computador. Estou devendo outra visita a ela, pois agora ela já tem linha telefônica em casa e quer acessar a Internet.
As professoras de História, Português, Geografia e Ciências já utilizam material em disquete pra ela. A maior dificuldade é matemática, pois os caracteres são diferentes.
Dizer que a inclusão de Lindinha à escola foi fácil é mentira.. Foi muito difícil. Cheia de erros e alguns acertos. Diria que muitas vezes ela foi cobaia das nossas experiências. Mais difícil ainda foi a nossa
inclusão a ela. Até hoje há pessoas que se sentem tão incomodadas com a presença dela na sala que simplesmente a ignoram. Não querer enxergar a deficiência do outro, mesmo sendo tão clara, muitas vezes demonstra a nossa dificuldade de enxergar as nossas próprias deficiências.
Ao longo de todo este trabalho, muitas vezes foi a própria Lindinha que nos mostrou o caminho, o como fazer. Com certeza, a inclusão dela não teria ocorrido se, além da deficiência visual, ela também apresentasse outros tipos de deficiência.
No ano seguinte, Lindinha acabou ficando em uma turma com 48 alunos, o que dificultou muito o trabalho. Passou por problemas de saúde que muitas vezes a impediam de ir à escola. Às vezes nos comunicávamos por e-mail.
Por falar nisso, acabei não indo a casa dela configurar a conexão com a Internet. Ela se virou sozinha. Telefonou para alguém do NCE (projeto DosVox) e obteve as informações necessárias.
No final de 2006, Lindinha concluiu o Ensino Fundamental, prestou concurso para uma escola técnica estadual pra cursar "Processamento de dados" e foi aprovada. Por dificuldades de locomoção, Lindinha resolveu fazer o Ensino Médio na modalidade a distância e apenas o curso técnico de forma presencial. Segundo informações do último e-mail enviado por ela em 07 de novembro de 2008, seu aproveitamento tem sido muito bom.
No início de 2008, recebemos outra aluna DV total: Mari. Mari é tão inteligente quanto Lindinha e já é incluída digitalmente. Usa um laptop em sala de aula (sem acesso à Internet). Textos e exercícios são enviados e corrigidos por e-mail ou disponibilizados em pen drives ou disquetes.
A maioria dos professores usa as NTICs para trabalhar com Mari. Com certeza, nossa experiência com Lindinha "deixou as coisas mais fáceis" para o trabalho com ela. Por coincidência ou não, voltei a estudar depois de conhecer Lindinha. Fiz especialização em Informática Educativa (concluída em 2005) e mestrado em Lingüística Aplicada (concluído em 2008). A história acima retrata o olhar retrospectivo de uma professora e (hoje) pesquisadora, certa de que tudo teria sido mais fácil se o grupo de professores tivesse sido previamente capacitado para o trabalho com a aluna DV.
Na ausência de uma formação em serviço, busquei pessoalmente atualizar minha formação profissional.
"Todo mestre é sempre um aprendiz" escrito em Braille.
Simone da Costa Lima é professora de inglês da rede pública municipal do RJ e professora de Informática Educativa do Colégio Pedro II.
http://agenciainclusive.wordpress.com/2009/02/09/depoimento-de-professora-todo-mestre-e-sempre-um-aprendiz/
Fonte: http://www.comunica r.pro.br/ historias/