Planeta Literatura
Auto da Compadecida
Na antessala do Céu e/ou do Inferno
Reunidos na antessala do Céu e do Inferno, misto de igreja e tribunal em que todo e qualquer ser humano deve ser julgado por ter “errado” pelo mundo dos homens, estão vários personagens ilustres. Conhecidos do grande público desde 1955 - quando Ariano Suassuna, mestre da língua portuguesa, escritor paraibano, membro da Academia Brasileira de Letras - finalizou a obra “Auto da Compadecida”, fazem parte do panteão da cultura nacional.
João Grilo e Chicó, eternizados na memória coletiva dos brasileiros por sua esperteza brejeira, cabocla, de quem sabe contar um “causo” e, literalmente, “dar nó em pingo d’água” encabeçam o elenco dessa magistral obra e nos conduzem pelos caminhos que mais claramente nos falam sobre a brasilidade.
Dão aos brasileiros não apenas indícios, mas em especial, direcionamento para que possam compreender a riqueza na pobreza, de quem nasceu “torto”, desprovido, careca e pelado, mas não se submeteu às agruras da vida e às dificuldades típicas de quem é simples. Por isso, nossos compatriotas despossuídos possuem essa marca tão característica, própria e bela que os faz sorrir, ainda que desdentados, famintos, analfabetos ou violentados pelas circunstâncias de uma vida pobre e, a princípio, fadada apenas a infelicidade.
Rimos junto com João Grilo e Chicó à medida que viramos as páginas não apenas porque os diálogos deste “auto” são afiados, irônicos, de humor fino e precioso, mas porque nos identificamos com eles, percebendo em ambos a esperteza, a alegria e a agilidade de raciocínio que há em cada um de nós, brasileiros.
Esperteza esta que nos coloca em muitas “frias”, ou seja, que nos causa problemas e dores de cabeça reais... E que mestre Suassuna deixa bem claro, ao longo da narrativa, serem indissociáveis de todo e qualquer ato de esperteza suprema associada às mentirinhas santas que por vezes temos que usar como artifício para nos livrar de alguma situação de dificuldade...
Como no caso do cachorro do padeiro, que depois se torna animal de estimação do coronel, para que possa ser enterrado sob as bênçãos do padre e bem recebido no reino dos céus por São Pedro (Se é que cães, gatos e outros bichos vão para o céu, como possivelmente devem pensar alguns incrédulos...).
Convencer o padre João não é fácil e, por isso, os malandros João Grilo e Chicó vão se enrolando cada vez mais, mentira em cima de mentira, tudo para conseguir uma benção para o pobre animal de seu patrão, o padeiro.
Benção essa que com a morte do animal se torna pouco... É preciso mais do que simplesmente as palavras que consagram o pobre cão ao reino dos céus... A morte pede um cerimonial, uma encomenda do corpo, dos restos mortais, dentro das tradições prezadas pela igreja para seus fiéis e, ainda, rezada em latim...
Neste ponto já vimos crescer o elenco e a trama de Ariano Suassuna com o acréscimo de personagens igualmente importantes e deveras significativos para o enredo. Surgiram o padeiro, sua mulher infiel, o padre e o coronel. E de repente começamos a divisar a história de um país no qual as moedas que definem o destino das pessoas são a fé, o pão, as terras e o dinheiro.
Surge no horizonte, através de literatura de alto nível, a compreensão de valores subjacentes em nossa cultura e que continuam, ainda hoje, regulando as relações e definindo caminhos em todas as regiões, a força do poder material e do espiritual.
De um lado o coronelismo, ancorado em suas posses, nas terras que alimentam, mas escravizam e causam dependências, de outro, a religião que, diferentemente daquilo que foi vivido e pregado pelo Messias, o filho de Deus, se escora nas palavras divinas em benefício próprio.
Enquanto isso, a pequena burguesia se preocupa com seus benefícios e luxos, sustentados pela venda de produtos e serviços que fornece como intermediária para o povo simples, de pé no chão e enxada na mão, tanto quanto para os senhores de engenhos reais ou invisíveis.
Se tudo isto não fosse suficiente para tornar o “Auto da Compadecida” um clássico instantâneo, ainda entram na trama o Cangaceiro, o Diabo, Deus e a Compadecida. E cria-se um tribunal em que todos estão em julgamento por seus caminhos e descaminhos pela terra dos homens.
O cangaceiro é o retrato do homem que foi condenado antes mesmo de se por de pé. É o maldito, sem pai nem mãe, escorraçado pela sociedade, que para se vingar e sobreviver, resolve revidar tudo o que lhe faz purgar por estas bandas virando bandido perigoso, mortal, rápido no gatilho e de pouca prosa.
Por seu histórico e perfil, o cangaceiro logo é requisitado pelo diabo. Tem todos os pré-requisitos que o tornaria muito bem-vindo pelas bandas do inferno. Seu destino num mundo pós-vida terrena parece certo...
O problema é que entre o que deseja o diabo e o que as evidências parecem apontar como caminho certo nas mãos de Manoel, o filho de Deus que comanda o juízo final de todos estes personagens vindos das terras áridas do Nordeste do Brasil, ainda há a Compadecida. E não há, certamente - entre a terra, o inferno e o céu - melhor defensora que a Virgem Maria.
E é nesse cenário que o escritor, também presente no palco, travestido de palhaço, como a anunciar quão cômicas, breves, passageiras e pequenas são nossas existências, dignas não de dó, piedade ou misericórdia, mas de risos, muitos risos, vai desfraldando, linha após linha um inesquecível julgamento.
Julgam-se os personagens e, juntamente com eles, julga-se o Brasil, seu povo, sua história, seus costumes, seus valores...
“Auto da Compadecida” é eterno por ser obra que de certa forma, grandiosa como é, consegue revelar, com humor fino e ironia, tanto quanto grandes clássicos da história e da sociologia, como “Casagrande e Senzala” de Gilberto Freyre, a alma do brasileiro – do pobre, do rico, do remediado, do religioso, do bandido... Imortal e mais delicioso a cada nova leitura... Um deleite sempre!