A Semana - Opiniões
A Revolução Digital
Dez anos depois de Matrix
Se você neste momento está lendo este texto é porque já embarcou na Era Digital. E como em todas as grandes revoluções pelas quais passou a humanidade, também esta tem seus marcos culturais, materiais, humanos...
Se na Inglaterra dos primeiros tempos da industrialização o grande invento era a máquina a vapor, fator tecnológico decisivo para a implantação de um sistema de trabalho ininterrupto que permitisse às fábricas exponenciar suas capacidades produtivas, a Era Digital se sedimentou com o advento da Internet, a rede mundial de computadores.
Se a Independência dos Estados Unidos, que emancipou aquele país e posteriormente influenciou os passos políticos de praticamente todas as demais nações do continente em sua luta contra as metrópoles europeias, teve líderes marcantes como George Washington e Thomas Jefferson..., a Revolução Digital firmou no horizonte o espaço virtual colaborativo a partir de trabalhos como a Wikipédia, criada por Jimmy Wales ou os Blogs, celebrizados a partir da maior plataforma de criação destes instrumentos, o Blogger, idealizado por Evan Williams.
Se na Revolução Francesa, por exemplo, falávamos dos pensadores iluministas e de suas obras (como Rousseau e o Contrato Social, Montesquieu e o Espírito das Leis ou da Enciclopédia organizada por Diderot e D’Alembert), hoje nos lembramos de Larry e Andy Wachowski, criadores de Matrix. Se ainda no contexto revolucionário Francês podemos nos lembrar das manifestações populares, das disputas entre a burguesia e os sans-cullottes (o terceiro estado cindido entre os proprietários dos meios de produção e os proletários que, para sobreviver, tinham de vender sua força de trabalho, para lembrar-se de Marx e de seus conceitos) e, por sua vez, podemos destacar o ciberativismo do século XXI, com suas manifestações globais a partir da rede, em prol do meio-ambiente e de tantas lutas legítimas.
Com a Revolução Industrial vimos o mundo modificar as bases de seu modo de operação técnica e isso redundou em inúmeras outras transformações, que modificaram aspectos sociais, políticos, jurídicos e culturais. Deixamos, progressivamente, de viver no campo e nos estabelecemos nas cidades, as fábricas se tornaram o local de trabalho mais característico, criaram-se redes através das quais a produção industrial era escoada para os quatro cantos do mundo, a tecnologia foi aperfeiçoada para que os transportes e a comunicação fomentassem o esforço econômico em andamento...
Ainda na Inglaterra do século XVIII foram modificadas as bases políticas com a Revolução Gloriosa que sacramentou a ascensão burguesa com a criação da Câmara dos Comuns emparelhada à Câmara dos Lordes. As propriedades rurais foram abandonando, por força de decretos e leis, a estrutura feudal e, em seu lugar, começaram a funcionar propriedades agrícolas que tinham como objetivo vender seus produtos nos mercados europeus e de além-mar.
A Era Digital, como o industrialismo ascendente na Grã-Bretanha dos séculos XVIII e XIX, sem quer percebêssemos, foi modificando as bases de funcionamento da economia. Foram estabelecidas condições para que tudo funcionasse de forma conectada, globalizada e alheia a qualquer impedimento espacial ou temporal. Os investidores financeiros operam de olho em monitores que lhes permitem acompanhar o fechamento dos negócios em Wall Street (Nova Iorque) - Dow Jones ou Nasdaq - enquanto ao mesmo tempo acompanham os rumos da Bovespa (SP), os dados de Tóquio ou ainda os mercados europeus...
Aviões e transatlânticos cortam os céus e os oceanos enquanto carretas enormes, puxadas por potentes caminhões, ou expressos velozes atravessam continentes levando matérias-primas, produtos industrializados, alimentos, conhecimento, cultura e pessoas... Não podemos mais nos dizer cidadãos brasileiros, americanos, alemães, japoneses ou australianos... Somos todos seres globalizados, que a qualquer momento, pelas vias reais ou virtuais, se transportam para destinos próximos ou distantes...
Se na França revolucionária se definiram as bases do mundo burguês que ainda hoje prevalecem, consolidando o capital como o elemento crucial ao redor do qual giram as relações humanas, o terceiro milênio, estruturado em bases virtuais e digitais, propõe e realiza o sonho da onipresença. Vivemos uma época em que é possível a noite virar dia pela web, na qual Morfeus (o mitológico Deus do Sono) pode ser trocado pela comunicação instantânea (via celular, Wi-Fi ou rede 3G, de qualquer lugar do mundo civilizado), ou ainda em que não mais precisemos dormir por termos interlocutores que nos permitam contato e troca durante todas às 24 horas do dia...
O dinheiro deixou de ser sonante, virou plástico e caminha cada vez mais para a virtualização. Recebemos salários e pagamos contas sem que nenhuma nota ou moeda tenha que passar por nossas mãos. O que era aparentemente só devaneio de alguns escritores de ficção científica ganhou vida. Isaac Asimov, Arthur C. Clarke ou Phillip K. Dick acertaram em inúmeras de suas “previsões” literárias...
Até mesmo a política consolida suas novas bases operacionais utilizando-se do conceito de convergência das mídias e celebrando o computador e a internet como os grandes beneficiários desta nova realidade tecnológica. Barack Obama que o diga... Há, no mundo de hoje, mais de um bilhão e seiscentos milhões de internautas, o que equivale dizer que aproximadamente um quarto da humanidade está conectada ao mundo virtual... Nenhum outro recurso tecnológico teve tamanho impacto sobre a humanidade em tão pouco tempo...
Cabe, no entanto, refletir sobre tudo isso com mais calma e tempo do que a Era Digital nos compele a fazer. Tudo hoje é expresso, rápido, acelerado – daquilo que comemos em nossos horários de almoço a informação transmitida ao vivo dos locais onde os fatos acontecem.
E é exatamente neste ponto que ainda não se fez uma leitura necessária e pontual sobre o questionamento central de Matrix, produção cinematográfica dos irmãos Wachowski que, de certa forma, inaugurou enquanto marco cultural a Era Digital. A pílula vermelha e a azul simbolizam não apenas a revolução e o imobilismo, a mudança e a continuidade, a transformação e permanência...
Seu significado vai além de simplesmente pertencer, compactuar, agir, usufruir ou utilizar os recursos da tecnologia, do mundo virtual. Também, certamente, referendam-se a partir da inserção da humanidade nesta nova realidade (ou virtualidade, ou ambas, de preferência), mas exigem uma leitura analítica, detalhada do que está sendo proposto, e crítica, para que possamos dizer sim, não ou talvez, de acordo com nossa consciência e clareza a respeito do mundo em que estamos vivendo.
Não podemos simplesmente aderir. Não podemos ser corporificados pela tecnologia e pela Era Digital que a compreende. É imprescindível compreender, mapear, discernir seus elementos, selecionar, rejeitar, participar opiniões, entrar e sair de acordo com nossas escolhas pessoais e/ou grupais. Caso não façamos isso o que estará acontecendo, e que penso ser o que está se processando na maioria dos casos, é a escolha (ainda que inconsciente) da pílula azul. Migramos de uma realidade analógica para uma digital, mas ainda que percebamos a presença e até mesmo o impacto das tecnologias sobre nossas existências, pouco ou nada mudou, apenas trocamos os tipos de ferramentas que usamos...
Se, por outro lado, resolvermos assumir aos questionamentos e as dúvidas, demonstrar nossas inseguranças e fraquezas, nossos medos e incertezas, ingerindo a pílula vermelha para descobrir “até onde vai a toca do coelho”, por mais dor e angústia que isso possa provocar, estaremos realmente nos posicionando e lutando por um mundo no qual a humanidade não estará abrindo mão de seu mais precioso bem, a liberdade...
A pílula vermelha de Matrix, enquanto simbolismo nos faz recordar de outros elementos emancipatórios:- Como o totem surgido do “nada” que estabelece a mudança de comportamento dos hominídeos do “alvorecer da humanidade”, do clássico 2001 – Uma Odisseia no Espaço (do genial cineasta Stanley Kubrick) ou mesmo da hóstia sagrada, do pão e vinho da última ceia, como elemento de comunhão entre os homens que a estes elementos tiverem acesso.
E o que tudo isto significa, ou seja, o totem, a hóstia (pão e vinho) ou a pílula vermelha? Em suma, significam a consciência, a clareza, a capacidade de interpretar e perceber, dando real significado aos fatos, personagens, transformações e elementos daquilo que acontece ao nosso redor.
Fazem-me igualmente lembrar a proclamação da República no Brasil, que descrita por cronistas da época, rememoram a participação popular caracterizando aqueles que tudo viram, mas que não tinham real compreensão dos acontecimentos, como elementos passivos, alienados, “bestializados” (palavras de Aristides Lobo).
A proposta presente na pílula vermelha simbólica é a de que não sejamos apenas os bestializados, que a tudo assistem passivos, sem participação real... Que não nos tornemos os apertadores de botões que movimentam linhas de produção e ao final não compreendem o processo produtivo no qual estão inseridos... Mas a interpretação não pode e não deve ser feita por outrem, seja quem for, e sim por cada um de nós... Não há arautos, profetas e nem tampouco devem existir intermediários... A leitura e compreensão daquilo que está diante de nós é pessoal, intransferível, inalienável...