A Semana - Opiniões
Trote Universitário
Quando a zombaria vira caso de polícia
Trote – Zombaria a que os veteranos das escolas sujeitam os calouros. [Dicionário Aurélio]
Trote estudantil (ou simplesmente Trote) é uma tradição brasileira, em alguns aspectos, similar à praxe em Portugal, que consiste em um conjunto de atividades, que podem ser leves (brincadeiras) ou graves (humilhações ou agressões). Costuma ocorrer nos dias de calourada (que acontecem no início de um semestre ou ano letivo) em escolas, faculdades e universidades pelos estudantes mais antigos (denominados veteranos) nos recém-chegados (denominados calouros ou bixos) [Wikipédia]
Inicio o presente texto trazendo a tona duas definições sobre Trote de fácil acesso a qualquer cidadão brasileiro, que buscam esclarecer, de princípio, no que consiste tal ato. Gostaria, inclusive, de iniciar a presente reflexão analisando algumas palavras que considero essenciais para a compreensão deste fenômeno. Na definição dada pelo Dicionário Aurélio, por exemplo, o Trote é qualificado de “zombaria”, vocábulo que no mesmo volume é explicado como sendo “manifestação malévola, irônica ou maliciosa”, através da qual “se ridiculariza ou expõe ao desdém uma pessoa”. São também termos que explicam o que seria uma zombaria as seguintes palavras: caçoada, chacota, ludíbrio, malhação, troça...
Indo um pouco além e buscando apoio na definição que consta na Wikipédia, gostaria de adicionar a nossa consideração inicial a qualificação do Trote como sendo uma “tradição brasileira”. Concordo com a terminologia, pois, realmente, desde 1831, quando o Brasil ainda era um Império, já existem registros de trotes em faculdades brasileiras [Cabendo a Olinda, em Pernambuco, um dos primeiros registros de que se têm notícia].
Nada disso seria digno de nota se a definição dada pela mais popular enciclopédia da Web terminasse sua definição dizendo que os Trotes [ou praxes, em Portugal] “consistem em um conjunto de atividades leves”... O problema é que, ao invés disso, o que ocorre é que este “conjunto de atividades” pode até ser “leve”, ocorrendo através de brincadeiras, como também ocorre através de atos de brutalidade, selvageria, com agressões e humilhações por parte dos veteranos em relação aos calouros ou bixos...
Temos, portanto, locais onde há “brincadeiras” que não se constituem em “zombarias” e, tantos outros em que o que deveria ser um ritual de passagem a ser celebrado conjuntamente pelos estudantes que já têm algum tempo de casa com os recém-chegados, acabam se transformando em casos de polícia, verdadeiros pesadelos para os egressos e que, para os veteranos, também pode se tornar dor de cabeça de inigualáveis proporções...
A questão é que o Trote, em algumas localidades deixou de ser apenas a tal “zombaria” e acabou descambando para o Bullying, com alguns grupos de veteranos resolvendo suas mágoas, maus resultados, infelicidades ou mesmo sua total falta de adequação a um ambiente acadêmico e partindo para atos vis, brutais, de violência descabida e de total falta de caráter e humanidade.
Para percebermos como a questão é séria, basta lembrar alguns casos recentes a partir de manchetes de jornais brasileiros no recém finalizado mês de fevereiro ou ainda no início de março, a saber:
- Grávida é vítima de trote violento no interior de São Paulo [Folha de São Paulo, 11/02/09]
- Calouros de medicina são obrigados a ficarem seminus durante trote em Catanduva (SP), [Folha de São Paulo, 12/02/09]
- Veteranos respondem por lesão corporal após trote com fezes em Leme (SP), [Folha de São Paulo, 18/02/09]
- Estudante de Santa Fé admite prática de trote violento [Estadão, 27/02/09]
- Jovem revela que usou produto químico em trote em São Paulo [Estadão, 27/02/09]
- Calouros são pisoteados em trote na Universidade Estadual de Londrina [Estadão, 03/03/09]
Os trotes surgiram na história da humanidade ainda na Idade Média, por volta do século XIV, em algumas das mais antigas universidades europeias, por isso são considerados tradicionais em algumas localidades. Há, felizmente, em algumas instituições educacionais brasileiras do 3º Grau a preocupação com os trotes que, por conta disso, acabaram gerando iniciativas por parte de alguns grupos de faculdades ou universidades o chamado Trote Solidário. Através desta ação os calouros [ou bixos] participam de ações de solidariedade, com a doação de sangue, alimentos, trabalho, livros...
Condenar os trotes e tentar, por decreto ou ação policial, varrê-los da realidade universitária nacional não é, a meu ver, medida que irá resolver o problema das violências registradas nos jornais brasileiros. Punir, nos conformes e rigores da lei, os responsáveis por iniciativas de tal calibre e gravidade, por seu lado, é imperativo. Assim como, conforme defendem alguns especialistas, tornar as faculdades e universidades responsáveis por aquilo que acontece em seus domínios e arredores, é medida que merece atenção, estudos e aprovação para que também, os gestores das instituições universitárias, sejam responsáveis e mais engajados na luta contra o Trote violento.
A possibilidade da institucionalização do Trote Solidário, acompanhado pelos responsáveis pelas faculdades e universidades brasileiras, mas composto em suas bases a partir de comum acordo com os Centros Acadêmicos, com a responsabilização destes quanto aos eventos e atos a serem desenvolvidos quando da integração dos calouros é, sem dúvida alguma, uma alternativa saudável, que demanda mais estudos e aperfeiçoamento, assim como o exame das práticas de tal natureza já existentes em algumas instituições.
A ação da Câmara dos Deputados em Brasília, em imediata resposta a profusão de casos que tomaram os noticiários, com a aprovação do projeto de lei nº 1.023/95, na forma de emenda, com a criação de Lei que disciplina o Trote nas universidades, apesar de fortuita, demanda maior discussão para que tal aparato jurídico tenha real valor e aplicabilidade, não sendo então apenas uma forma dos deputados demonstrarem “preocupação” com a questão.
De qualquer forma, o que se espera é que medidas contra os excessos cometidos no início deste ano de 2009 e que nos fizeram lembrar outras ocasiões infelizes de anos passados relacionadas também ao Trote, se tornem ações efetivas e permanentes. Sabemos que, para tal, o confronto com a “tradição zombeteira” dos trotes demandará permanência, consistência e, em especial, consciência de todos os responsáveis. O que se quer é que, ao final, estes ritos de passagem sejam aquilo que realmente devem ser, momentos de celebração e festa para todos, calouros e veteranos...