Aprender com as Diferenças
A situação das pessoas com deficiência na América Latina e no Caribe
Luís Fernando Astorga Gatjens
I. Introdução: O “apartheid” silencioso
Quero, ao longo dos próximos minutos que ocuparei para desenvolver esta palestra, examinar a situação geral das pessoas com deficiência na região, de frente para as silenciosas violações de seus direitos humanos, que ocorrem na extensão de nossa geografia latino-americana e que constituem um verdadeiro “apartheid”.
A partir de uma visão depreciativa sobre a pessoa que tem algum tipo de deficiência (física, sensorial, intelectual ou psicossocial), em nossas sociedades, a discriminação e os diferentes tipos de violações dos direitos humanos têm sido vistos como algo natural, como uma situação que se poderia justificar em virtude de que “estas pessoas” são diferentes e se afastam do modelo de normalidade, que prevalece nos entornos socioculturais de nossos países.
Conseqüentemente, a história das pessoas com deficiência na América Latina e no Caribe, como no resto do mundo, é uma longa história marcada pela discriminação, pela exclusão e pela violação sistemática e reiterada de seus direitos humanos.
Infelizmente, essa visão depreciativa sobre as pessoas com deficiência tem contribuído a que tais violações dos direitos humanos não se situem em sua dimensão real; e a deficiência – até os anos recentes – não tem sido vista como tema de direitos humanos. Inclusive, os mesmos organismos nacionais de direitos humanos em muitos de nossos países não têm colocado em sua agenda este tema ou têm-no feito de maneira marginal e nem sempre com o enfoque adequado.
Também existem poucos estudos, pesquisas, estatísticas e dados, que ofereçam um panorama sobre a situação das pessoas com deficiência e, particularmente, sobre o estado dos direitos humanos deste segmento populacional. Concordo com Armando Vázquez, da Organização Pan-Americana da Saúde (Opas) quando afirma que: “a deficiência nas Américas é um tema complexo, de enorme repercussão social e econômica, mas que não oferece dados confiáveis. Os estudos estatísticos são escassos, estão desatualizados e são pouco precisos; por isto, o trabalho em políticas ou programas relacionados com a deficiência se baseia em dados estimativos e, por vezes, bastante distantes da realidade dos países”.
Não obstante esta limitação geral em relação aos dados e às estatísticas, lançarei mão de alguma informação, que acabei conseguindo e que dá fundamento às minhas análises e considerações.
II. Quantas são as pessoas com deficiência em nossa região?
Em primeiro lugar, é pertinente indicar que a maioria dos países da região continua empregando as definições mais antigas sobre deficiência. A definição mais comum é a que se inclui na Classificação Internacional de Impedimentos, Deficiências e Desvantagens (CIIDD), de 1980, da Organização Mundial da Saúde (OMS), segundo a qual, deficiência é “qualquer restrição ou falta (resultante de um impedimento) da habilidade para desempenhar uma atividade de uma maneira, ou com variância, considerada normal para um ser humano”. Pelo menos a metade dos países da região continua utilizando definições baseadas na CIIDD, apesar de que a OMS publicou a Classificação Internacional Funcionalidade, Deficiência e Saúde (CIF, 2001).
Até o presente, tem sido difícil chegar a uma quantificação precisa sobre a população com deficiência da América Latina e do Caribe. Tal fenômeno se explica tanto pelo que indiquei anteriormente como pela falta de uma definição uniforme de “pessoa com deficiência” entre nossos países e pelas diferentes metodologias empregadas. Esta falta de caracterização comum faz com que o número que oferece um país não seja sempre comparável e semelhante ao que apresentam outros países.
Desta maneira, encontramo-nos com dados muito discrepâncias entre países com características semelhantes. Inclusive entre os organismos da Organização das Nações Unidas (ONU), como o Banco Mundial (BM) e a Organização Mundial da Saúde (OMS), aparecem significativas diferenças quando o BM assinala que há aproximadamente 50 milhões de pessoas com deficiência, enquanto que a OMS estima que em nossa região vivem cerca de 85 milhões. É oportuno enfatizar que a estimativa da OMS se faz partindo de que a população com deficiência é uma porcentagem entre 10 e 15 % da população geral, em países com as características dos latino-americanos.
Eu tendo a confiar mais nos dados oferecidos pela OMS já que, em vários países onde foram desenvolvidos estudos mais profundos sobre a população com deficiência, chegou-se a determinar que esta população era maior que a considerada anteriormente, a partir de censos gerais ou pesquisas domiciliares e as porcentagens se situaram entre 10 e 15%.
Com relação ao crescimento ou não da população, de frente para o futuro, cabe indicar que em nossa região poderia ocorrer um aumento do número das pessoas com deficiência como conseqüência de fatores externos e por doenças não-transmissíveis. “Sem dúvida alguma, os conflitos armados, os acidentes de todo tipo, o uso e abuso de álcool e drogas, e a violência social são também causas de deficiência. Outras condições que favorecem esse aumento das deficiências são o envelhecimento da população, a desnutrição, o abandono infantil, a marginalização de grupos sociais, como os povos indígenas, a pobreza extrema, o deslocamento populacional e os desastres causados por fenômenos naturais” .
III. Os modelos de deficiência e os direitos humanos
Ao longo da história, as pessoas com deficiência têm sido vistas e tratadas de diferentes maneiras em comparação com as pessoas sem deficiência. Podem ser destacados três modelos ou paradigmas e sua relação com o exercício e o desfrute dos direitos humanos, por parte das pessoas com deficiência.
O paradigma tradicional está associado a uma visão que vê e trata as pessoas com deficiência como pessoas inferiores. Neste paradigma, as pessoas com deficiência têm, desde que nascem até morrer, um posto definido entre as pessoas consideradas raras ou anormais e dependentes de outras pessoas através da caridade privada ou pública.
Este paradigma vem desde a antigüidade e ainda está muito presente em nossas sociedades, embora coexistindo com os paradigmas médico e de direitos humanos. Neste modelo, as pessoas com deficiência são consideradas objetos de pena e não sujeitos de direitos. Conseqüentemente, a dignidade inerente de ser humano desaparece ou diminui significativamente. Este paradigma tem uma enorme presença em nossas sociedades e se manifesta através de uma série de estereótipos e preconceitos, que afetam as pessoas com deficiência.
Um estudo realizado no Panamá sobre a situação das pessoas com deficiência desse país centro-americano (Pendis, 2005), determinou – como exemplo — que, devido aos preconceitos prevalentes, existe um forte rechaço e, inclusive, hostilidade no bairro e também no entorno familiar, que afeta as pessoas com deficiência.
Por sua parte, o modelo médico centraliza o problema na pessoa que tem deficiência ou limitações. “O modelo médico compreende uma atitude social mais ampla e profunda, a tendência de associar o problema à pessoa e de considerar esta pessoa um objeto de intervenção clínica” . Considera que, para superar as limitações funcionais do “paciente”, é necessário que uma equipe de profissionais e especialistas ofereça a esta pessoa uma série de serviços e tratamentos. Este enfoque vê a pessoa como receptor passivo de apoios institucionalizados.
Aqui a pessoa é considerada um paciente que, para adaptar-se às condições do entorno que o rodeia (social e físico), deve ser submetido à intervenção dos profissionais da reabilitação. Neste caso, a mudança que deve ocorrer mais no “paciente” que no entorno. A idéia principal neste modelo é que o “paciente” recupere no maior grau possível a sua saúde e funcionalidade para a realização das atividades da vida diária e para sua reincorporação à atividade produtiva (laboral). A aplicação deste modelo também diminui o exercício pleno dos direitos humanos, porque as pessoas com deficiência não são vistas integralmente como sujeitos de direitos humanos.
É oportuno indicar uma boa parte dos profissionais atuantes no campo das deficiências adota este modelo médico e tem muita influência neste âmbito. Isto fez com que muitas leis, políticas e ações em nossos países tenham este selo de modelo médico, mesmo quando muitos dos comportamentos e atitudes em nossas sociedades sejam próprios do modelo tradicional.
O paradigma de direitos humanos, por outro lado, focaliza a dignidade intrínseca ou própria do ser humano, ou seja, a dignidade que ele tem pelo fato de ser um humano, independentemente das características ou condições que possua: Ser homem ou mulher, sua cor de pele (negra, vermelha, amarela, branca etc.), idade, estatura, deficiência, condição social e qualquer outro atributo.
Neste modelo, a deficiência é colocada como uma característica mais dentro da diversidade humana e não como a condição que deve definir a vida de uma pessoa e que totaliza sua existência, pelo referencial da discriminação e exclusão. Neste paradigma, a deficiência é caracterizada como um produto social que resulta da interação entre as pessoas com deficiência e as barreiras atitudinais e do entorno, que evitam a participação plena e efetiva, a inclusão e o desenvolvimento destas pessoas na sociedade onde vivem, em condições de igualdade com as demais.
Neste modelo, o “problema” da deficiência está localizado no entorno sociocultural e físico e resulta da falta de consciência do Estado e da sociedade para com a diferença, que representa a deficiência. Conseqüentemente, o Estado tem a obrigação de fazer frente aos obstáculos criados socialmente, com a finalidade de promover e garantir o pleno respeito da dignidade e da igualdade de direitos de todas as pessoas. Já aqui a pessoa com deficiência deixa de ser um objeto de assistência e reabilitação para ser um sujeito que tem direitos e deveres, pode desenvolver uma vida independente, desloca-se para qualquer lugar livremente porque as sociedades eliminaram os obstáculos e fizeram construções com critérios de acessibilidade, participa nas atividades de sua comunidade e de seu país, pode votar ou ser votado para postos eletivos, tem acesso à educação inclusiva, à saúde, ao emprego, ao lazer, à recreação e ao esporte etc. Ou seja, ela pode desenvolver sua vida, em igualdade de condições com as pessoas que não têm deficiência.
IV. As normas e a deficiência na América Latina
Nos últimos 15 anos, houve um significativo avanço na promulgação de normas, orientadas à proteção dos direitos das pessoas com deficiência nos países da região, ou seja, aquelas se expressam através de leis específicas ou de maneira indireta.
As Constituições nacionais de cerca de metade dos países da região identificam expressamente as pessoas com deficiência como sujeitos de direitos. Um número significativo de países aprovou leis que, de maneira exclusiva, abordam a proteção dos direitos das pessoas com deficiência e outros países sancionaram leis que proíbem sua discriminação.
Muitas destas normas foram influenciadas e inspiradas no documento “Normas sobre a Equiparação de Oportunidades para Pessoas com Deficiência”, adotado pela ONU em 1993. Desta maneira, o caráter não-vinculante destas normas internacionais, foi positivamente canalizado através de normas nacionais, que são (ou deveriam ser) de aplicação obrigatória.
Não obstante, existe uma enorme lacuna entre a normativa e sua aplicação efetiva no âmbito da região. Como se depreende de um estudo realizado pelo Centro Internacional de Reabilitação (CIR), apesar destas tendências alentadoras que observamos na promulgação de leis, “se costuma pensar que as pessoas com deficiência precisam de ações de beneficência mais que de direitos humanos plenos”.
Muitas das leis sancionadas nos últimos anos carecem de dispositivos que exijam seu cumprimento efetivo. Em geral, não se estabelecem sanções pelo descumprimento e, quando algumas leis estabelecem sanções, poucas vezes se aplicam. “Em resumo, podemos afirmar que em termos gerais chegamos a um ponto no qual a criação de proteções legais supera a vontade ou a capacidade das nações de implementá-las e de exigir seu cumprimento”.
Deste pálido cumprimento não escapa a Convenção Interamericana para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Pessoas com Deficiência (Convenção da Guatemala, OEA, 1999), já que o Comitê Antidiscriminação, estabelecido no artigo VI do tratado, foi convocado pela Secretaria Geral da Organização dos Estados Americanos (OEA) com um atraso de quatro anos e seu nascimento em fevereiro de 2007, não foi marcado, precisamente, por causa da força que a discriminação ― que afeta as pessoas com deficiência ― exige.
V. O círculo vicioso
Bengt Lindqvist, ex-Relator das Nações Unidas em Assuntos de Deficiência e Desenvolvimento Social, em seu Relatório do Ano 2002, ressaltou a íntima relação existente entre pobreza e deficiência:
“É óbvio que nos países em desenvolvimento como em áreas mais desenvolvidas, as pessoas com deficiência e suas famílias são mais propensas, que o resto da população, a viver na pobreza. É uma relação de duas vias: A deficiência produz pobreza e as condições de pobreza aumentam o risco de adquirir uma deficiência. O preconceito e o estigma afetam a vida tanto das crianças com deficiência como dos adultos com deficiência. Estas condições e atitudes produzem o isolamento e a exclusão da vida em suas comunidades”.
Partindo de que a pobreza é a condição na qual estão famílias ou pessoas, cujas rendas não são suficientes para satisfazer as necessidades básicas em alimentação e outras necessidades como gastos em saúde, educação, moradia, vestuário, transporte etc., o Prêmio Nobel de Economia de 1998, Amartya Sen assinalou: “A linha da pobreza para as pessoas com deficiência deve levar em conta os gastos adicionais nos quais incorrem quando traduzem suas rendas em possibilidades de viver bem”.
Está claro que as pessoas com deficiência têm gastos adicionais para satisfazer as mesmas necessidades das pessoas sem deficiência. O mesmo Sen afirma que no Reino Unido o índice ou porcentagem de pobreza entre as pessoas com deficiência foi de 23.1% comparado com um índice geral de 17.9% para o país. Mas quando os gastos adicionais associados a ter uma deficiência são considerados, o índice de pobreza para as pessoas com deficiência dispara até 47.4%.
Observemos como a pobreza pode gerar deficiência:
Existem trabalhos muito arriscados e inseguros que as pessoas aceitam pelas condições de pobreza que enfrentam. Muitos destes empregos, ou atividades produtivas, arriscados ou perigosos para a saúde, são uma causa importante de deficiências. Um exemplo: Os mergulhadores artesanais, que pescam lagostas nos mares caribenhos da Nicarágua e de Honduras, se arriscam a adquirir lesões permanentes e até a morte.
Observemos agora três situações do processo inverso:
Normalmente, as pessoas com deficiência terão maiores gastos para comprar bens e serviços relacionados com sua deficiência. Tais gastos devem ser cobertos com recursos da renda familiar, o que reduz ou impede o atendimento de outras necessidades da família.
Este círculo vicioso faz com que as pessoas com deficiência tenham mais possibilidades de ser pobres e de permanecer pobres e, tendo em conta que a deficiência envolve – direta ou indiretamente — cerca de 25 % da população, este tema deveria ser objeto de maior atenção dos Governos e dos Estados.
VI. Direitos econômicos e sociais
Esta onipresente situação de depreciação, discriminação e exclusão, que afeta as pessoas com deficiência em nossos países, se traduz em uma série de violações de direitos econômicos, sociais e culturais. Esta situação, que já é grave nas zonas urbanas, se torna muito mais grave em zonas rurais e remotas. Segundo um estudo do BM, somente 3% a 4% dos serviços impactam as pessoas com deficiência e, em geral, estas procedem das cidades.
Vejamos a situação de maneira mais concreta, em alguns destes direitos da chamada segunda geração.
a. Educação
Os índices sobre o acesso à educação de crianças com deficiência apresentam as mesmas limitações de exatidão estatística que aventei anteriormente. Todavia, a partir dos dados disponíveis, podemos assegurar que as crianças com deficiência tendem a ser excluídas dos sistemas educacionais, violando-se desta forma, o seu direito à educação.
Este tipo de violação ocorre em todos os países da região, em diferentes graus e manifestações. “Na Colômbia, somente 0,32% dos alunos têm uma deficiência. Os índices são semelhantes na Argentina (0,69%) e no México (0,52%), enquanto que no Uruguai e na Nicarágua se informam porcentagens levemente superiores (2,76% e 3,5%, respectivamente). Ao comparar a população infantil com deficiência estimada com a quantidade de criança inscrita no sistema educacional, observa-se que somente 20% a 30% das crianças com deficiência freqüentam a escola.” E há países onde a situação é mais grave, como a Bolívia, onde se estima que entre 74% e 97% das crianças com deficiência não recebem nenhum tipo de educação.
Cabe indicar que o acesso à educação varia segundo o tipo e o grau de deficiência. É uma prática comum que as escolas recusem crianças com deficiência severa. Em nossos países, a educação de crianças com deficiência, em geral, é segregada e não passa do nível fundamental. Há um restritivo acesso às escolas do nível médio, em virtude da escassa oferta de escolas especiais e à muito limitada inserção de jovens com deficiência neste nível educacional.
Como resultado destas práticas discriminatórias, as pessoas com deficiência que freqüentam algum centro educativo, em geral, recebem menos educação e de menor qualidade que as pessoas sem deficiência. Segundo os dados do mencionado relatório do CIR, no Chile, atinge-se, em média, apenas 6,4 anos de escolaridade. No Brasil, somente 10% terminam a 8ª série. Em El Salvador, apenas 5% terminam o ensino médio. Em Honduras, o índice de analfabetismo entre as pessoas com deficiência é de 51%, enquanto que para a população geral o indicador alcança 19%, segundo dados do Banco Mundial.
b. Emprego
O âmbito do acesso ao emprego para as pessoas com deficiência em idade produtiva e em condições para trabalhar, é talvez onde ocorra com maior freqüência a discriminação associada com a deficiência e a violação do direito ao trabalho.
Infelizmente, não existem índices de desemprego mais exatos, porém, segundo estimativas da Organização Internacional do Trabalho (OIT), nos países da América Latina e do Caribe, mais de 85% das pessoas com deficiência, que poderiam trabalhar, não têm emprego.
Este desemprego tão extenso e a marginalização laboral têm como causa principal a depreciação da capacidade produtiva das pessoas com deficiência, situada dentro da depreciação geral que prevalece. A este se somam outros fatores, como a qualidade e a competitividade da mão-de-obra que, devido às limitadas possibilidades formativas, são baixas; a inacessibilidade dos locais de trabalho; a falta de transporte acessível e, em geral, os problemas econômicos que afetam os países da região.
Uma situação bastante comum é aquela em que aos trabalhadores com deficiência são pagos salários inferiores ou nenhum salário é pago. No México, por exemplo, 14% das pessoas que trabalham não recebem salário e 22,6% ganham menos de um salário mínimo. Uma situação semelhante se observa no Brasil, onde 30% das pessoas com deficiência ganham menos de um salário mínimo.
Outro claro exemplo da falta de oportunidades laborais para as pessoas com deficiência é o tipo de trabalho ao qual se pode ter acesso. No Chile, só um terço das pessoas com deficiência ocupadas têm um trabalho de jornada completa. Muitas têm empregos informais, trabalham por conta própria ou estão subempregadas. Na Bolívia, quase 40% são trabalhadores autônomos ou informais, enquanto que em Honduras 73% trabalham como autônomos ou em relação de dependência mas sem receber remuneração alguma.
A fim de tratar de reverter esta situação em alguns países (Argentina, El Salvador, Nicarágua, Panamá, Uruguai e Venezuela), foram aprovadas leis que fixam cotas para o emprego de pessoas com deficiência, que entidades públicas ou empresas privadas de determinados tamanhos devem contratar. Não obstante, segundo a informação de que se dispõe, partindo destas políticas e de outras de incentivo fiscal (como em Costa Rica), os resultados obtidos são tão magros quanto desalentadores.
c. Serviços de saúde e reabilitação
A maior parte das pessoas com deficiência da região não tem acesso aos serviços de saúde e de reabilitação. Inclusive muitos dos edifícios onde se oferecem estes serviços carecem de acessibilidade.
Na maioria dos países da região, o acesso ao seguro médico e à previdência social está condicionado pelo estado ocupacional, daí que as elevadas taxas de desemprego privam de cobertura as pessoas com deficiência. É por isso que 84% das pessoas com deficiência no Equador não têm nenhum tipo de cobertura médica e no Chile apenas 7% contam com um seguro médico privado, enquanto que 60% a 80% recebem assistência através do sistema público de saúde.
Da mesma forma, é uma prática comum que as empresas privadas que oferecem cobertura médica rejeitem as pessoas com deficiência. Tal tipo de discriminação tem dado lugar a uma grande quantidade de denúncias no Uruguai. Em virtude de que muitas pessoas não podem ter acesso a uma cobertura médica, cabe aos governos assumir a responsabilidade de prover-lhes atenção médica e reabilitação às pessoas com deficiência de seus países. Mas mesmo quando os governos aceitem esta responsabilidade, em muitos países, eles carecem dos recursos necessários e, conseqüentemente, os serviços que prestam são insuficientes e de baixa qualidade.
Por outra parte, alguns serviços importantes ou as ajudas técnicas, tais como cadeiras de rodas, não são consideradas necessidades e, por conseguinte, não são providas. Sendo assim, muitos governos passam este trabalho para entidades privadas, que tentam, sem sucesso, atender à demanda. Por outro lado, as especialidades médicas e de reabilitação, que são requeridas para atender a diferentes tipos de deficiência e que se oferecem, são insuficientes.
Por tudo isto, podemos afirmar que o direito à saúde das pessoas com deficiência tem um baixo índice de cumprimento e o que predomina são diferentes manifestações de violação deste direito, que é fundamental para todo ser humano.
VII. Liberdades básicas e cidadania
O exercício pleno das liberdades fundamentais e da cidadania das pessoas com deficiência na América Latina é severamente afetado, fundamentalmente pelos problemas de acessibilidade física que ocorrem no entorno urbano, em edificações públicas ou privadas de uso público e no transporte, assim como no acesso à informação e à comunicação dentro do imperante marco de depreciação.
a. Livre mobilidade
Em nenhum país da região existe uma proibição expressa de que as pessoas com deficiência, com mobilidade reduzida, se desloquem em determinados entornos, mas isto não é necessário porque a inacessibilidade que domina no transporte e nos entornos urbanos produz os mesmos resultados.
A maioria dos países conta com normas mediante as quais os edifícios devem ser acessíveis para as pessoas com deficiência. Não obstante, tais dispositivos só atingem edificações novas ou reformas de edifícios já existentes, mas este não é o principal problema. O real é que raras vezes se exige o cumprimento destas normas. Também é comum a falta de critério técnico com que se busca construir com acessibilidade. Constroem-se rampas que são demasiado inclinadas e sanitários que não são acessíveis. Belize, Honduras e Suriname são alguns dos países que não possuem leis sobre acessibilidade.
A falta de acessibilidade que impede ou afeta o direito à livre circulação, com freqüência se estende aos espaços públicos de nossas cidades. Alguns dos obstáculos comuns são a ausência de rampas nas calçadas, o bloqueio das rampas existentes e a falta de sinais sonoros ou outro tipo de sinalização acessível nos cruzamentos das ruas. A isto se acrescentam a irregularidade das superfícies e a onipresença das barracas de vendedores ambulantes.
Na região, os países que impulsionaram algum avanço nos sistemas de transporte público são ainda escassos. Brasil, Jamaica e Colômbia contam com sistemas de ônibus acessíveis em algumas cidades. Em muitos casos, como na Argentina, Chile, Colômbia, Equador, México, Costa Rica e Venezuela, o transporte é parcialmente acessível, com uma quantidade reduzida de unidades ou estações de trem adaptadas. O sistema de transporte em geral continua sendo inacessível sob o ponto de vista funcional devido a que as adaptações não são padronizadas.
b. Direito à informação e à comunicação
O direito de informar-se e de receber informação através de meios acessíveis, do qual deveriam desfrutar as pessoas com deficiência sensorial, se cumpre de maneira muito limitada na região. Os governos publicam escassa informação em formatos alternativos. Uma amostra concreta disto é que somente 40% dos países têm uma versão em formato alternativo de sua Constituição federal e apenas uns poucos deles convertem outros documentos de interesse nacional a tais formatos.
O uso do braile em documentos públicos importantes é uma prática muito limitada e o uso da língua de sinais em entidades públicas prestadoras de serviços é mais exceção que regra.
São poucos os países que contam com sistemas para que as pessoas com deficiência possam comunicar-se com as autoridades em caso de emergências complexas. Existem alguns países que fizeram avanços oferecendo um sistema de telefonia acessível para as pessoas surdas, mas sua cobertura é limitada. Tal é o caso de Brasil, Costa Rica, Chile e Panamá.
Os meios de televisão (geralmente de caráter privado), mesmo quando existam normas que os obriguem a oferecer programas noticiosos e de interesse educativo com interpretação em língua de sinais ou com legendas, poucas vezes as cumprem. E, quando o fazem, é de maneira pontual; por exemplo, apenas nos noticiários matutinos.
c. Cidadania pendente
O exercício de uma cidadania plena para as pessoas com deficiência, em idade adulta, é um tema pendente em nossos países.
No que se refere ao direito de votar, mesmo quando este é um direito universalmente reconhecido na região, apenas um reduzido grupo de países se esforça para garantir às pessoas com deficiência o exercício pleno e efetivo deste direito.
Na maioria de nossos países, muitas pessoas com deficiência que desejam votar se vêm impossibilitadas de fazê-lo devido à inacessibilidade dos locais de votação, à falta ou escassez de informação sobre o processo político eleitoral e, por vezes, devido à falta de interesse das autoridades eleitorais. E mais grave ainda: alguns países têm dispositivos legais que lhes permitem declarar uma pessoa juridicamente incapaz pelo simples fato de ela possuir uma deficiência. Conseqüentemente, a algumas pessoas com deficiência se proíbe exercer seu direito à votação e muitos outros direitos. Com freqüência, as pessoas que têm deficiência múltipla ou deficiência intelectual recebem este tipo de tratamento. Na Argentina, Bolívia, Perú e Uruguai, as pessoas "surdomudas" são consideradas juridicamente incapazes. Em outros países, as pessoas com deficiência intelectual ou psicossocial podem ser destituídas de seus direitos. Podem receber este mesmo tratamento as pessoas com deficiência sensorial — as pessoas cegas, por exemplo — em El Salvador, Guatemala e Guiana.
Como resultado deste estado de exclusão e discriminação prevalentes, e da generalizada falta de acessibilidade no espaço físico e de serviços, as pessoas com deficiência têm tido escassas possibilidades de participação social. Tal é um obstáculo bastante generalizado na região para que as pessoas com deficiência se organizem em movimentos associativos, capazes de promover, proteger e defender seus direitos humanos. Têm uma presença significativa em vários países da região as associações intermediárias, que realizam seu trabalho inspiradas na caridade e na filantropia ou orientadas pelo assistencialismo social.
Conseqüentemente, a população com deficiência de nossos países, através de movimentos sociais, conscientes, ativos e orientados pelo modelo social, não tem marcado significativamente as políticas públicas dos Estados com suas ações de influência. A influência política e social das organizações de pessoas com deficiência, empoderadas politicamente, é apenas emergente, esporádica e fraca. Ainda não têm um domínio amplo sobre aspectos conceituais e práticos de direitos humanos. Seu trabalho tem se voltado mais para a promoção geral dos direitos das pessoas com deficiência e menos para práticas consolidadas de proteção e defensoria.
VIII. A Convenção da ONU
Em assuntos de direitos das pessoas com deficiência, a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, adotada pelas Nações Unidas há quase um ano através do consenso, é um verdadeiro divisor de águas.
É importante destacar que, a partir deste tratado, o modelo ou paradigma dos direitos humanos e de desenvolvimento social, conta com uma base jurídica de aplicação obrigatória ou vinculante universal, situação esta que não ocorria anteriormente.
Este primeiro tratado temático de direitos humanos do século 21 é o primeiro instrumento deste âmbito que inclui uma clara perspectiva de desenvolvimento. Também, pela primeira vez na história da negociação de tratados de direitos humanos dentro da ONU, a sociedade civil (em nosso caso, particularmente, as organizações de pessoas com deficiência) participou da negociação desde o início, junto com os governos, de maneira tão ativa, pertinente e propositiva.
Também é digno destacar que, em seus mecanismos de seguimento ou monitoramento (além dos que se incluem no âmbito internacional), se estabelece, pela primeira vez, que os Estados Partes devem criar estruturas nacionais independentes, responsáveis pela implementação da Convenção, devendo incluir as pessoas com deficiência e suas organizações nestas estruturas.
É alentador que, a partir de 30 de março (data em que se abriu a assinatura da Convenção) até hoje, sejam os Estados latino-americanos e caribenhos os que totalizam o maior número de ratificações. Jamaica, Cuba, Panamá, México, El Salvador, Nicarágua, Perú e Honduras formam parte desse grupo e tudo indica que logo se acrescentarão Brasil e Argentina.
A partir desta relevante contribuição regional, estamos muito perto de que se materializem as 20 ratificações que fariam entrar em vigor este importante tratado para as pessoas com deficiência de nossa área geográfica e de todo o universo.
É desejável, então, que este compromisso político e jurídico, que assumiram os mencionados países, também seja assumido pelo resto da região, buscando fechar a brecha entre o que dita esta norma internacional e as práticas de respeito aos direitos humanos, de não-discriminação e de oportunidades de desenvolvimento inclusivo para as pessoas com deficiência.
IX. A década das Américas
Da mesma maneira que, para conseguir avanços, na região, nos direitos das pessoas com deficiência e na melhoria de suas condições de vida, é necessário esgrimir o citado instrumento internacional, faz-se necessário também aproveitar ao máximo a Declaração e o Plano da Década pelos Direitos e pela Dignidade das Pessoas com Deficiência, aprovados pela OEA em 2006 e 2007, respectivamente.
Este plano, formulado com boas contribuições de organizações e entidades regionais interessadas nos direitos das pessoas com deficiência, corre o perigo de não superar a transcendência de uma saudação da bandeira se não se exercer uma forte influência tanto nos Governos como na OEA, para obter avanços concretos e mensuráveis.
Todos nós, que estamos reunidos nesta magna assembléia, devemos trabalhar em função de que os objetivos e metas desta Década em educação, saúde, emprego, acessibilidade, participação política e nas demais rubricas, se convertam em um tema de transcendência prática, que sirva para reduzir a pobreza associada com a deficiência, que afeta todos os países da região.
X. Uma nova prática, uma nova agenda
Após esta apreciação situacional de estado dos direitos das pessoas com deficiência na América Latina e no Caribe, que ― por enquanto ― oferece mais sombras que luz, é imprescindível trabalhar em uma agenda transformadora orientada a fazer com que as pessoas com deficiência sejam, efetivamente, incluídas na agenda do desenvolvimento de nossos países.
Esta agenda deve ser formulada a partir da inerência da dignidade e dos direitos humanos das pessoas com deficiência, entendendo-se os direitos de uma maneira interdependente e integral e que incluam tanto os direitos civis e políticos como os econômicos, sociais e culturais.
Até o presente, os direitos têm sido um referencial teórico mais que um motor prático para avançar em levar justiça e eqüidade às pessoas com deficiência. Hoje, a promoção, a defensoria e a proteção devem ser desenvolvidas tendo como base a utilização dos novos instrumentos jurídicos e a aplicação de conhecimentos e habilidades que os movimentos associativos e as entidades públicas ― que trabalham em e pelos direitos das pessoas com deficiência ― devem adotar.
Todos ― enquanto entidades públicas e da sociedade civil interessadas em superar de uma vez e para sempre este “apartheid” silencioso que, por tanto tempo, possibilitou a discriminação, a exclusão e a marginalização das pessoas com deficiência e, com isto, as sistemáticas violações de seus direitos, ― devemos edificar uma aliança potente e construtiva.
É importante e necessário que as entidades públicas envolvidas ativamente no campo da deficiência, contribuam para o fortalecimento das organizações da sociedade civil, que trabalham pelos direitos das pessoas com deficiência, a fim de que se abram maiores espaços de participação e que sua gravitação e sua influência sejam maiores. Igualmente, é chave que estes movimentos ― oxalá cada vez mais empoderados ― apóiem os esforços das entidades públicas, a partir desta agenda comum, centrada na vigência plena dos direitos das pessoas com deficiência.
Somente percorrendo este caminho, poderemos avançar para melhores sociedades, onde as pessoas com deficiência sejam consideradas pessoas, desfrutem os mesmos direitos e cumpram os mesmos deveres que as demais pessoas.
Termino minha apresentação com uma idéia muito acertada, que expressou Lisa Kauppinen, Presidente da Federação Mundial de Surdos: “Uma sociedade que é boa para as pessoas com deficiência é uma sociedade melhor para todas as pessoas”.
Luis Fernando Astorga Gatjens - Diretor Executivo para a América Latina e o Caribe, do Instituto; Interamericano sobre Deficiência e Desenvolvimento Inclusivo (IIDI); Brasília, 30 de novembro de 2007; Tradução: Romeu Kazumi Sassaki.
Armando Vázquez. La discapacidad en América Latina. Organización Panamericana de la Salud.
Gerard Quinn, Theresia Degener. Derechos Humanos y Discapacidad. Escritório do Alto Comissariado das Nações Unidas, Nações Unidas, Nova York e Genebra, 2002.
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