Planeta Educação

Aprender com as Diferenças

 

Deficiência Mental ou Intelectual? Doença ou Transtorno Mental?
Atualizações semânticas na inclusão de pessoas

Este artigo foi inserido nas seguintes publicações: Revista Nacional de Reabilitação, São Paulo, ano IX, n. 43, mar./abr. 2005, p.9-10. Jornal do Sinepe-RJ (Sindicato dos Estabelecimentos Particulares de Ensino no Estado do Rio de Janeiro), Niterói, ano XIV, n. 88, jul./set. 2005, p. 10-11.

            À medida que o movimento inclusivo se espalha pelo mundo, palavras e conceituações mais apropriadas ao atual patamar de valorização dos seres humanos estão sendo incorporadas ao discurso dos ativistas de direitos, por exemplo, dos campos da deficiência e da saúde mental. 

Consideremos, em primeiro lugar, a questão do vocábulo deficiência. Sem dúvida alguma, a tradução correta das palavras (respectivamente, em inglês e espanhol) "disability" e “discapacidad" para o português falado e escrito no Brasil deve ser deficiência. Esta palavra permanece no universo vocabular tanto do movimento das pessoas com deficiência como dos campos da reabilitação e da educação. Trata-se de uma realidade terminológica histórica. Ela denota uma condição da pessoa resultante de um impedimento (“impairment”, em inglês). Exemplos de impedimento: lesão no aparelho visual ou auditivo, falta de uma parte do corpo, déficit intelectual.

O termo “impairment” pode, então, ser traduzido como impedimento, limitação, perda ou anormalidade numa parte (isto é, estrutura) do corpo humano ou numa função (isto é, funções fisiológicas) do corpo, de acordo com a Classificação Internacional de Funcionalidade, Deficiência e Saúde (CIF), aprovada pela 54ª Assembléia da Organização Mundial da Saúde em 22 de maio de 2001. Segundo a CIF, as funções fisiológicas incluem funções mentais. O termo anormalidade é utilizado na CIF estritamente para se referir a uma variação significativa das normas estatísticas estabelecidas (isto é, como um desvio da média da população dentro de normas mensuradas) e ele deve ser utilizado somente neste sentido. 

O conceito de deficiência não pode ser confundido com o de incapacidade, palavra que é uma tradução, também histórica, do termo "handicap". O conceito de incapacidade denota um estado negativo de funcionamento da pessoa, resultante do ambiente humano e físico inadequado ou inacessível, e não um tipo de condição. Exemplos: a incapacidade de uma pessoa cega para ler textos que não estejam em braile, a incapacidade de uma pessoa com baixa visão para ler textos impressos em letras miúdas, a incapacidade de uma pessoa em cadeira de rodas para subir degraus, a incapacidade de uma pessoa com deficiência intelectual para entender explicações conceituais, a incapacidade de uma pessoa surda para captar ruídos e falas. Configura-se, assim, a situação de desvantagem imposta às pessoas COM deficiência através daqueles fatores ambientais que não constituem barreiras para as pessoas SEM deficiência.

Infelizmente para nós, que lutamos há décadas pelo uso de terminologias corretas, a acima referida CIF, em inglês ICF - International Classification of Functionality, Disability, and Health (www.who.int/icf/onlinebrowser/icf.cfm), foi oficialmente traduzida para o português como CLASSIFICAÇÃO INTERNACIONAL DE FUNCIONALIDADE, INCAPACIDADE E SAÚDE (www.fsp.usp.br/~cbcd). A tradução é inconsistente, pois consta na capa o título “Classificação Internacional de Funcionalidades, Incapacidades e Saúde” (no plural) e esse título aparece várias vezes no singular no corpo do documento.

E o pior é que só é utilizada a palavra incapacidade toda vez que, no texto original, aparece o vocábulo “disability” (deficiência). Imaginemos o Brasil inteiro voltando agora, como 50 anos atrás, a falar e a escrever: "Quantos incapacitados existem no Brasil?", "As empresas estão contratando pessoas incapacitadas", "Que tipo de incapacidade seu filho tem?". A tradução espanhola está correta: CLASIFICACIÓN INTERNACIONAL DEL FUNCIONAMIENTO, DE LA DISCAPACIDAD Y DE LA SALUD.

A questão do número. Formalmente, devemos manter a palavra deficiência no singular. Por exemplo: pessoas com deficiência visual (e não pessoas com deficiências visuais). Outro exemplo: pessoas com deficiência intelectual (e não pessoas com deficiências intelectuais). É importante flexionarmos no singular ao nos referirmos à deficiência e/ou ao tipo de deficiência, independentemente de, no idioma inglês, ser utilizado o plural ("persons with disabilities", "persons with intellectual disabilities") ou o singular ("persons with a disability", "persons with an intellectual disability"). Assim, é incorreto escrevermos, por exemplo: "Fulano tem deficiências intelectuais", "Sicrano é uma pessoa com deficiências físicas", "Beltrano é um aluno com deficiências visuais".

Agora, um comentário sobre os vocábulos deficiência mental e deficiência intelectual. Ao longo da história, muitos conceitos existiram e a pessoa com esta deficiência já foi chamada, nos círculos acadêmicos, por vários nomes: oligofrênica; cretina; tonta; imbecil; idiota; débil profunda; criança subnormal; criança mentalmente anormal; mongolóide; criança atrasada; criança eterna; criança excepcional; retardada mental em nível dependente/custodial, treinável/adestrável ou educável; deficiente mental em nível leve, moderado, severo ou profundo (nível recomendado pela Organização Mundial da Saúde, 1968, citado por Sterner, 1976); criança com déficit intelectual; criança com necessidades especiais; criança especial etc. Mas, atualmente, quanto ao nome da condição, há uma tendência mundial (brasileira também) de se usar o termo deficiência intelectual, com o qual concordo por duas razões. A primeira razão tem a ver com o fenômeno propriamente dito.

Ou seja, é mais apropriado o termo intelectual por referir-se ao funcionamento do intelecto especificamente e não ao funcionamento da mente como um todo. Em 1992, a então Associação Americana de Deficiência Mental (AAMR, em inglês) adotou uma nova conceituação da deficiência intelectual (até então denominada “deficiência mental”), considerando-a não mais como um traço absoluto da pessoa que a tem e sim como um atributo que interage com o seu meio ambiente físico e humano, o qual deve adaptar-se às necessidades especiais dessa pessoa, provendo-lhe o apoio intermitente, limitado, extensivo ou permanente de que ela necessita para funcionar em 10 áreas de habilidades adaptativas: comunicação, autocuidado, habilidades sociais, vida familiar, uso comunitário, autonomia, saúde e segurança, funcionalidade acadêmica, lazer e trabalho. A AAMR, em reunião de novembro de 2006, decidiu que, a partir de 1°/1/07, passará a chamar-se Associação Americana de Deficiências Intelectual e de Desenvolvimento (AAIDD, em inglês).

A segunda razão consiste em podermos melhor distinguir entre deficiência mental e doença mental, dois termos que têm gerado confusão há vários séculos. “O primeiro passo no estudo independente da condição da deficiência mental” ocorreu no início do século 19, quando se estabeleceu “a diferenciação entre a idiotia e a loucura” (Enicéia Mendes, in Vivência, n.18, 1996, p.17). Há cinco décadas, especialistas se preocupam em explicar a diferença que existe entre os fenômenos deficiência mental e doença mental (por exemplo: Laura Dittmann, 1959, p.5-6; Ministério da Saúde e Bem-Estar Social do Canadá, in Lente, 1959, p.23-24; A.J. Malin, in Journal of Rehabilitation in Ásia, 1964, p.20; Taylor & Taylor, 1966, p.4; Roger Freeman, in Rehabilitation Literature, 1969, v.30, n.4, p.103-106; Mental Handicap, 1980, p. 26; Henry Cobb & Peter Mittler, 1980, p.1-12; Marcelo Gomes, s/d, p.7).

Pois são termos parecidos, que muita gente pensa significarem a mesma coisa. Então, em boa hora, vamos separar os dois construtos científicos. Também no campo da saúde mental (área psiquiátrica), está ocorrendo uma mudança terminológica significativa, que substitui o termo doença mental por transtorno mental. Permanece, sim, o adjetivo mental (o que é correto), mas o grande avanço científico foi a mudança para transtorno. Em 2001, o Governo Federal brasileiro publicou uma “lei sobre os direitos das pessoas com transtorno mental” (Lei n. 10.216, de 6/4/01), na qual foi utilizada exclusivamente a expressão transtorno mental. Aqui também se aplica o critério do número: pessoa(s) com transtorno mental e não pessoa(s) com transtornos mentais, mesmo que existam várias formas de transtorno mental. Segundo especialistas, o transtorno mental pode ocorrer em 20% ou até 30% dos casos de deficiência intelectual (Marcelo Gomes, “O que é deficiência mental e o que se pode fazer?”, s/d, p.7), configurando-se aqui um exemplo de deficiência múltipla.

Hoje em dia cada vez mais se está substituindo o adjetivo mental por intelectual. A Organização Pan-Americana da Saúde e a Organização Mundial da Saúde realizaram um evento (no qual o Brasil participou) em Montreal, Canadá, em outubro de 2004, evento esse que aprovou o documento DECLARAÇÃO DE MONTREAL SOBRE DEFICIÊNCIA INTELECTUAL. Observe-se que o termo intelectual foi utilizado também em francês e inglês: Déclaration de Montreal sur la Déficiénce Intelectuelle, Montreal Declaration on Intellectual Disability).

A expressão deficiência intelectual foi oficialmente utilizada já em 1995, quando a Organização das Nações Unidas (juntamente com The National Institute of Child Health and Human Development, The Joseph P. Kennedy, Jr. Foundation, e The 1995 Special Olympics World Games) realizou em Nova York o simpósio chamado INTELLECTUAL DISABILITY: PROGRAMS, POLICIES, AND PLANNING FOR THE FUTURE (Deficiência Intelectual: Programas, Políticas e Planejamento para o Futuro). O termo “intellectual disabilities” faz parte do nome de uma entidade, a International Association for the Scientific Study of Intellectual Disabilities, que realizou um megaevento em 2000.

A propósito, uma influente organização espanhola mudou seu nome, conforme notícia publicada em 2002: “Espanha - Resolução exige a substituição do termo deficiência mental por deficiência intelectual. A Confederação Espanhola de Organizações para Pessoas com Deficiência Mental aprovou por unanimidade uma resolução substituindo a expressão ‘deficiência mental’ por ‘deficiência intelectual’. Isto significa que agora a Confederação passa a ser chamada Confederação Espanhola de Organizações para Pessoas com Deficiência Intelectual (Confederación Española de Organizaciones en favor de Personas con Discapacidad Intelectual). Esta organização aprovou também o novo Plano Estratégico de quatro anos para melhorar a qualidade de vida, o apoio institucional e os esforços de inclusão para pessoas com deficiência intelectual.” (in Digital Disnnet Press Agency, Digital Solidarity, n° 535, Bogotá, 3/12/02)

Romeu Kazumi Sassaki, 2006. Consultor e autor de livros sobre inclusão social. E-mail: romeukf@uol.com.br

Referências Bibliográficas

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  • DITTMANN, Laura. “Retarded isn’t mentally ill”. In: The mentally retarded at home: A manual for parents. Washington, DC: US-DHEW, 1959, p.5-6.

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  • COBB, Henry & MITTLER, Peter. Diferenças significativas entre deficiência mental e doença mental. [Documento aprovado pela Liga Internacional de Sociedades Pró-Deficientes Mentais (atual Inclusion International). Traduzido pela Apae-SP]. 1980, p.1-12.
  • CONFEDERACIÓN ESPAÑOLA DE ORGANIZACIONES EN FAVOR DE PERSONAS CON DISCAPACIDAD INTELECTUAL. [Comunicado sobre alteração do nome desta entidade].  Digital Disnnet Press Agency, Digital Solidarity, n° 535, Bogotá, 3/12/02.
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  • GOMES, Marcelo. s/d, p.7. “O que é deficiência mental e o que se pode fazer?”. Folheto da Apae-SP, s/d. Site: www.apaesp.org.br.
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    • WORLD HEALTH ORGANIZATION. International Classification of Functionality, Disability, and Health (ICF). Site: www.who.int/icf/onlinebrowser/icf.cfm.

    • WORLD HEALTH ORGANIZATION. Montreal Declaration on Intellectual Disability. [Adotada em Montreal, Canadá, no dia 6 de outubro de 2004, ao final da Conferência Mundial da Organização Pan-Americana de Saúde com a Organização Mundial da Saúde]. Site: http://www.minsa.gob.pe/portalminsa/destacados/archivos.

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