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Vera Lúcia Camara F. Zacharias  Mestre em educação, pedagoga, diretora de escola aposentada, com vasta experiência na área educacional em geral, e, em especial na implantação de Cursos Técnicos de Nível Médio e pós-médio, assessoria e capacitação de profissionais para a utilização de novas tecnologias aplicadas à educação e alfabetização.

A criança e o faz-de-conta
Vera Lúcia Camara F. Zacharias

No presente artigo estaremos usando a expressão faz-de-conta com o seguinte sentido: uma conduta lúdica da criança que usa a representação dramática sem as preocupações que a palavra representar tem no seu sentido usual, ou seja, para um público, para ser apreciada por observadores.

É uma atividade psicológica de grande complexidade, é uma atividade lúdica que desencadeia o uso da imaginação criadora pela impossibilidade de satisfação imediata de desejos por parte da criança.

Essa atividade enriquece a identidade da criança, porque ela experimenta outra forma de ser e de pensar; amplia suas concepções sobre as coisas e as pessoas, porque a faz desempenhar vários papéis sociais ao representar diferentes personagens.

Quando brinca, a criança elabora hipóteses para a resolução de seus problemas e toma atitudes além do comportamento habitual de sua idade, pois busca alternativas para transformar a realidade. Os seus sonhos e desejos, na brincadeira podem ser realizados facilmente, quantas vezes o desejar, criando e recriando as situações que ajudam a satisfazer alguma necessidade presente em seu interior.
Vygotsky assinalou que uma das funções básicas do brincar é permitir que a criança aprenda a elaborar/ resolver situações conflitantes que vivencia no seu dia a dia.

E para isso, usará capacidades como a observação, a imitação e a imaginação.

Essas representações que de início podem ser "simples", de acordo com a idade da criança, darão lugar à um faz de conta mais elaborado, que além de ajudá-la a compreender situações conflitantes ajuda a entender e assimilar os papéis sociais que fazem parte de nossa cultura ( o que é ser pai, mãe, filho, professor, médico, ... ). Através desta imitação representativa a criança vai também aprendendo a lidar com regras e normas sociais. Desenvolve a capacidade de interação e aprende a lidar com o limite e para tanto, os jogos com regras são fundamentais, principalmente a partir dos 06 anos aproximadamente.

Quando Vygotsky discute o papel do brinquedo, refere-se especificamente à brincadeira de "faz-de-conta", como brincar de casinha, brincar de escolinha, brincar com um cabo de vassoura como se fosse um cavalo. Faz referência a outros tipos de brinquedo, mas a brincadeira "faz-de-conta" é privilegiada em sua discussão sobre o papel do brinquedo no desenvolvimento.

As crianças evoluem por intermédio de suas próprias brincadeiras e das invenções das brincadeiras feitas por outras crianças e adultos. Nesse processo, ampliam gradualmente sua capacidade de visualizar a riqueza do mundo externamente real, e , no plano simbólico procuram entender o mundo dos adultos, pois ainda que com conteúdos diferentes, estas brincadeiras, possuem uma característica comum: a atividade do homem e suas relações sociais e de trabalho. Deste modo, elas desenvolvem a linguagem e a narrativa e nesse processo vão adquirindo uma melhor compreensão de si próprias e do outro, pela contraposição com coisas e pessoas que fazem parte de seu meio, e, que são portanto, culturalmente definidas também.

Para Vygotsky, ao reproduzir o comportamento social do adulto em seus jogos, a criança está combinando situações reais com elementos de sua ação fantasiosa. Esta fantasia surge da necessidade da criança, como já dissemos, em reproduzir o cotidiano da vida do adulto da qual ela ainda não pode participar ativamente. Porém, essa reprodução necessita de conhecimentos prévios da realidade exterior, deste modo, quanto mais rica for a experiência humana, maior será o material disponível para as imaginações que irão se materializar em seus jogos.

A construção do real parte então do social ( da interação com outros), quando a criança imita o adulto e é orientada por ele, e paulatinamente é internalizada pela criança. Ela começa com uma situação imaginária, que é uma reprodução da situação real, sendo que a brincadeira é muito mais a lembrança de de alguma coisa que de fato aconteceu, do que uma situação imaginária totalmente nova. Conforme a brincadeira vai se desenvolvendo acontece uma aproximação com a realização consciente do seu propósito.

Vygotsky coloca que o comportamento das crianças em situações do dia a dia é, em relação aos seus fundamentos, o contrário daquele apresentado nas situações de brincadeira. A brincadeira cria zona de desenvolvimento proximal da criança que nela se comporta além do comportamento habitual para sua idade, o que vem criar uma estrutura básica para as mudanças da necessidade e da consciência, originando um novo tipo de atitude em relação ao real. Na brincadeira, aparecem tanto a ação na esfera imaginativa numa situação de faz-de-conta, como a criação das intenções voluntárias e as formações dos planos da vida real, constituindo-se assim, no mais alto nível do desenvolvimento pré-escolar. ( Vygotsky, 1984, p.117).

Outro aspecto importante colocado por Vygotsky (1984) é que, no jogo de faz-de-conta, a criança passa a dirigir seu comportamento pelo mundo imaginário, isto é, o pensamento está separado dos objetos e a ação surge das idéias. Assim, do ponto de vista do desenvolvimento, o jogo de faz-de-conta pode ser considerado um meio para desenvolver o pensamento abstrato.

A interpretação de Vygotsky atribui ao jogo imaginário uma dupla tendência - com ações subordinadas ao real, pelos seus vínculos com acontecimentos e regras daquilo que é vivenciado, e com a transformação do real, pelas possibilidades de recombinação criativa das experiências, conforme salienta Rocha (1994). No entanto, segundo a mesma autora, a primeira tendência foi enfatizada por outros autores da abordagem histórico-cultural, tendo sido subestimado aquilo que o teórico esboçou como processo de criação imaginativa. Tanto a atividade lúdica quanto a atividade criativa surgem marcadas pela cultura e mediadas pelos sujeitos com que ela se relaciona.

Mas além de ser uma situação imaginária, o brinquedo é também uma atividade regida por regras. Mesmo no universo do "faz-de-conta" há regras que devem ser seguidas. Ao brincar de ônibus, por exemplo, exerce o papel de motorista. Para isso tem que tomar como modelo os motoristas reais que conhece e extrair deles um significado mais geral e abstrato para a categoria "motorista". Para brincar conforme as regras, tem que esforçar-se para exibir um comportamento ao do motorista, o que a impulsiona para além de seu comportamento como criança. Tanto pela criação da situação imaginária, como pela definição de regras específicas, o brinquedo cria uma zona de desenvolvimento proximal na criança. No brinquedo a criança comporta-se de forma mais avançada do que nas atividades da vida real e também aprende a separar objeto/significado.

Vygotsky vem quebrar a dicotomia de mundo-adulto-sério-real e mundo-infantil-lúdico-fantasioso. Fantasia e realidade se realimentam e possibilitam que a criança - assim como os adultos - estabeleça conceitos e relações; insira-se enquanto sujeito social que é. Ele sinaliza que, ao brincar, a criança não está só fantasiando, mas fazendo uma ordenação do real; tendo a possibilidade de ressignificar suas diversas experiências cotidianas. Não podemos nos esquecer de que para ele, a imitação, o faz-de-conta, permite a reconstrução interna daquilo que é observado externamente e, portanto, através da imitação são capazes de realizar ações que ultrapassam o limite de suas capacidades.

Pois, se através da imitação (no sentido atribuído por Vygotsky, um instrumento de reconstrução), a criança aprende, nada mais positivo que a escola promova situações que possibilitem a imitação, a observação e a reprodução de modelos.

Logicamente o sentido de imitação explícito nas idéias no autor, não pode ser confundido com o que podemos constatar ainda em tantas escolas: proposição de atividades que visam tão somente a reprodução, descontextualizadas, imitações mecânicas de modelos fornecidos pelos professores, as "famosas cópias" de desenhos fornecidos pelos docentes ou retirados de alguma cartilha. As situações de imitação precisam intervir e desencadear um processo de aprendizagem.

A promoção de atividades que favoreçam o envolvimento em brincadeiras, principalmente aquelas que promovem a criação de situações imaginárias, têm nítida função pedagógica. A escola e, particularmente a pré-escola, poderiam a partir desse tipo de situações, atuar no processo de desenvolvimento das crianças. Principalmente na pré-escola, a brincadeira não deveria ser considerada uma atividade de passatempo, sem outra finalidade que a diversão.

Para tanto, é preciso, inicialmente, considerar as brincadeiras que as crianças trazem de casa ou da rua e que organizam independentemente do adulto, como um diagnóstico daquilo que já conhecem, tanto no diz respeito ao mundo físico ou social, bem como do afetivo e, é necessário que a escola possibilite o espaço, o tempo e um educador que seja o elemento mediador das interações das crianças com os objetos de conhecimento.

Bibliografia:
ROCHA, M.S.P.M.L. (1994) A constituição social do brincar: Modos de abordagem do real e do imaginário no trabalho pedagógico. Dissertação de Mestrado, UNICAMP
Vygotsky. A formação social da mente. Martins Fontes, 1984.

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