A Semana - Opiniões
Democracia, o melhor regime político?
Reflexões acerca da experiência democrática brasileira
“Cresce a cada eleição a sensação de que a democracia não está funcionando, e só permanece como instituição na falta de melhor opção.” [Stephen Kanitz, no artigo “As vantagens da democracia negativa”, publicado pela Revista Veja]
Democracia, na acepção mais objetiva da palavra, significa o governo do povo [Demos=povo; Cratos=Governo]. Isso de certa forma explica, por exemplo, um fenômeno eleitoral e político como o presidente do Brasil, o ex-metalúrgico e sindicalista, Luís Inácio Lula da Silva. A representatividade e aprovação popular de Lula têm como uma de suas mais importantes explicações a sua origem humilde, de migrante nordestino, que em luta contra todas as adversidades veio para São Paulo, se estabeleceu, criou seus filhos, profissionalizou-se e acabou se engajando numa das mais importantes e relevantes lutas empreendidas pelos brasileiros nos últimos 50 anos, a batalha pela democracia, por direitos plenos, contrária a ditadura e suas arbitrariedades.
A palavra democracia, ao longo da década de 1960 e 1970, culminando com o movimento pelas eleições diretas nos primeiros anos da década 1980, revestiu-se de uma aura e significado que transcendiam a simples noção de governo do povo. Transcendeu e criou, no seu entorno, para a população do Brasil, a compreensão de um milagre verdadeiro, legítimo e muito mais que necessário.
Milagre este que, aos olhos de muitas e muitas pessoas, começou a se configurar com a eleição presidencial de 1989 e que, para todos os que viveram aquela celebração do exercício de cidadania, se desfez em mil pedaços com a vitória do caçador de marajás e criador do mirabolante e desastroso plano econômico que foi nomeado em sua própria homenagem, Fernando Collor de Mello.
A democracia mal havia ressurgido e já se mostrava frágil, para muitos, um engodo, uma farsa. Existiam aqueles que acreditavam que estávamos despreparados para essas práticas de civilidade, que a ausência de liberdades individuais e a verdadeira lavagem cerebral impetrada ao povo brasileiro durante a ditadura militar, nos haviam tornado incapazes de separar o joio do trigo, de distinguir as melhores propostas, de perceber as reais intenções dos candidatos.
Como compensação pelo desgaste sofrido com a Era Collor, seu substituto na presidência, o ex-senador por Minas Gerais, Itamar Franco, conseguiu reequilibrar a administração pública e, com o surgimento do Plano Real, criar bases para o ressurgimento e reestruturação econômica que seriam vividas pelo país nas administrações de seus sucessores, Fernando Henrique Cardoso e Luís Inácio Lula da Silva.
Petistas [partidários do PT, de Lula] e Tucanos [Partidários do PSDB, de Fernando Henrique] consolidaram-se, então, como as principais forças políticas no cenário nacional. Nesse período [entre 1994 e 2008] foram criados expedientes mais rígidos como a Lei de Responsabilidade Fiscal, aplicada a todos os níveis de administração pública no país, para tentar regular a atuação de governadores, prefeitos e dos representantes do legislativo para que, gradualmente, se saneassem as finanças e se ensejassem condições para um real crescimento nacional.
Apesar do embate feroz, por vezes raivoso e cheio de ressentimentos, entre os principais partidos desse período, não há como negar que as conquistas alcançadas pelo país ao longo dos últimos 15 anos contam com a marca das duas bandeiras políticas, PT e PSDB. Isso não impediu, porém, que desilusões e amarguras fossem vividas e presenciadas por todos. A abertura democrática aliada à expansão vertiginosa dos meios de comunicação de massa, em especial depois da explosão da Internet, possibilitaram que a população soubesse mais, conhecesse com detalhes até então nunca antes revelados, os bastidores do poder, as artimanhas e interesses dos mandatários da república.
Essas revelações chamuscaram políticos de todas as colorações e legendas políticas. Abriram-se processos e “tiroteios” entre os partidos e seus principais representantes. Alguns foram cassados e sumiram de cena, abrindo espaço para que outros viessem e ganhassem os holofotes [ainda que temporariamente]. Até mesmo Fernando Henrique e Lula foram alvejados e, durante algum tempo pareciam destinados a sucumbirem com seus partidos. O escândalo do mensalão, por exemplo, tirou José Dirceu de cena, justamente ele que era [e ainda é] considerado por muitos como o principal articulador das viradas que levaram Lula ao poder. O PSDB também foi alvo de investigações e teve questionados e/ou processados “caciques” como o ex-governador de Minas, Eduardo Azeredo e o ex-ministro da saúde, José Serra.
Nesse sentido, ao encerramento de mais uma pleito eleitoral no Brasil, em nível municipal, com a eleição de prefeitos e vereadores [com alguns municípios tendo ainda pela frente a batalha do segundo turno, como em São Paulo, entre Gilberto Kassab e Marta Suplicy], analisando-se com brevidade a história recente de nosso país, desses 20 e poucos anos de exercício regular do voto para os principais cargos eletivos do executivo e legislativo, cabe refletir sobre a frase de Stephen Kanitz que abre esse artigo.
Será que a democracia realmente só permanece por não termos outra opção melhor para a política e a administração do país? Se pensarmos a democracia a partir dos avanços da área econômica [a estabilidade econômica, o controle sobre a inflação, a criação de reservas econômicas de vulto pelo país, a expansão da atividade produtiva, o aumento do poder de compra dos brasileiros, o crescimento do mercado interno e a ampliação das exportações], da questão das liberdades individuais [direito de livre expressão das idéias, de participação política, de ir e vir sem restrições] ou ainda do acesso a algumas benfeitorias sociais [aumento da quantidade das crianças que chegam as escolas, ampliação da oferta de medicamentos a preços populares, criação de projetos como o bolsa-família, expansão da oferta de iluminação pública a regiões que antes não possuíam essa facilidade], passamos a crer que a democracia representativa é, certamente, o melhor modelo político disponível no mundo em que vivemos.
Se, por outro lado, nos orientarmos pelos escândalos políticos e corrupção [mensalão, anões do congresso, dólares na cueca...], pela pobreza que ainda impera em várias regiões do país [nos morros do Rio de Janeiro, nas favelas de São Paulo, no interior do Nordeste...], pela distribuição desigual de riquezas [que cria bolsões de riqueza e zonas de exclusão, totalmente miseráveis] ou ainda pela qualidade duvidosa ou ruim dos serviços públicos prestados a população [a qualidade da educação que nos coloca sempre nos últimos lugares das avaliações internacionais, as filas de espera dos serviços de saúde pública, as estradas esburacadas, a violência que assusta e mata, a burocracia que emperra novos empreendimentos...], possivelmente passemos a achar que a democracia, como preconiza Kanitz em seu artigo, só continua a prevalecer por ainda não conhecermos melhor alternativa de governo.
O que fazer? Em primeiro lugar creio ser imprescindível que a população não apenas vote e delegue poderes aos representantes eleitos... É imperativo que exista um acompanhamento e fiscalização regular das atividades político-administrativas em todas as instâncias e poderes, ou seja, ao povo compete, em nome da democracia na real acepção da palavra, verificar e cobrar dos políticos eleitos a efetivação de leis e ações que realmente melhorem a qualidade de vida da população em seus respectivos estados e municípios. Sem isso, não podemos dizer que estamos, de fato, vivendo um sistema democrático de fato e de direito.
Outro aspecto fundamental é que entre os poderes exista também uma fiscalização e cobrança quanto aos compromissos e responsabilidades que cabem e competem a cada um deles – executivo, legislativo e judiciário. E que não sejam permitidos e estimulados acordos entre os poderes com a finalidade de facilitar ou permitir qualquer tipo de prática em benefício de pessoas ou grupos que caracterize e evidencie emparceiramento, apadrinhamento, troca de favores...
Cabe ainda, para finalizar [ao menos nesse momento, pois este assunto carece de mais e maiores discussões e aprofundamento], compreender que a democracia prevê direitos e deveres e somente será plena em seu funcionamento quando as pessoas entenderem que o seu exercício deve contemplar os interesses da coletividade e não os individuais, particulares, de pequenos grupos. Essa compreensão é, talvez, um dos maiores empecilhos ao pleno exercício da democracia, pois somos educados ao longo de toda a nossa existência, dentro do capitalismo neo-liberal a lutar a partir de fronts individualizados, personalistas ou, na melhor das hipóteses, de nichos específicos [família, religião, trabalho...].