Planeta Educação

Assaltaram a Gramática

Prof. Eduardo Fernandes Paes  Formado em Letras (Português-Literatura) pela Universidade Gama Filho - RJ -, com especialização em Tiflopedagogia. Promove cursos de Atualização em Língua Portuguesa, Informática para cegos e Sistema Braille.

Um toque na Língua
Lições de 1 a 3

Lição 01

Lição 02

Lição 03

Prezados companheiros e companheiras de Internet,

Muitos de vocês devem ainda se lembrar das bem-humoradas aulas de Língua Portuguesa da série "Um Toque na Língua", que andei publicando na lista DOSVOX e em outras listas de discussão da Internet, no ano de 2004, as quais tinham o objetivo de apresentar, sempre de uma forma simples, concisa e descontraída, informações elucidativas sobre certos pontos gramaticais de nosso idioma, que normalmente apresentam mais dificuldades em nosso dia-a-dia. 

Todavia, tenho percebido ainda um fato que continua me preocupando bastante como professor de Língua Portuguesa. Acredito que pelo uso intensivo do computador e dos livros gravados e digitalizados, como ferramentas preferenciais de seus mais diversificados gêneros de leitura, boa parte dos cegos que trafegam pela Internet, através de listas de discussão, ou mensagens privativas, tem cometido sérios erros de ortografia, de pontuação e de acentuação. 

Constato igualmente algumas falhas no que se refere ao emprego correto das concordâncias e regências nominais e verbais. 

Por isso, a fim de mais uma vez tentar, de algum modo, dar a minha modesta contribuição ao aprimoramento gramatical, tanto daquelas pessoas que estão prestes a realizar seus vestibulares e concursos públicos, como dos que somente desejam possuir uma boa e correta escrita, venho informar-lhes que a partir desta semana, e em todas terças e sextas-feiras das próximas semanas, estarei postando novamente, na lista DOSVOX e em outras listas, as lições da série "Um Toque na Língua", que foram modificadas, em alguns pontos, e que também serão ampliadas.

Para quem não conhecia esta série, quero dizer que ela se compõe de pequenas aulas, contendo "dicas" e orientações gramaticais, as quais são apresentadas por meio de um formato bem mais leve e agradável, que se traduz em diálogos fictícios entre "um tal professor Edu" e jovens estudantes, tanto das escolas em que leciona quanto vizinhos do prédio onde reside e que vivem interrogando-o (muitas vezes nas situações mais inusitadas) sobre as mais diversas questões de Língua Portuguesa. 

Tudo se passa numa linguagem bem coloquial e num clima de muita descontração e bom - humor. Pelo retorno que tive de colegas que já se valeram destas aulas para seus aprendizados ou esclarecimentos de certos aspectos da Língua Portuguesa, pude constatar que este novo formato de aulas se revelou muito mais atraente e divertido para aprender e se apreender certas regrinhas gramaticais, as quais podem parecer muito maçantes à primeira vista, mas que com "um toque certo" poderão facilmente fazer parte do nosso acervo lingüístico. 

Por isso, a escolha do nome "UM TOQUE NA LÍNGUA", que deu título a esta série, para a qual comentários, críticas e sugestões serão sempre bem-vindos.

Para terminar, gostaria apenas de lhes dizer que o bom domínio da Língua Portuguesa é inegavelmente um fator decisivo para a abertura de novos horizontes nos mais diversificados campos e áreas do Conhecimento e do Saber, aplicado a inumeráveis atividades humanas. 

E, para isso, os cegos brasileiros já podem contar com vários instrumentos para este fim: computador, escâner, gravadores digitais, bibliotecas de livros gravados, digitalizados e em Braille..., Ah, o velho amigo Braille! Decerto nenhum cego que não possua qualquer problema com o tato de seus dedos poderá deixar de aprender e de sempre se utilizar deste fantástico sistema de leitura e escrita, em nome de mais independência em sua vida diária. 

E especificamente sobre o assunto em questão, revela-se o Sistema Braille como o melhor processo pelo qual um cego poderá aperfeiçoar os três pontos gramaticais que citei acima, ou seja, acentuação, pontuação e ortografia, principalmente este último, sobre o qual o professor e gramático Pasquale Cipro Neto fazem as seguintes considerações:

“A competência para grafar corretamente as palavras está diretamente ligada ao contato íntimo com essas mesmas palavras. Isso significa que a freqüência do uso é que acaba trazendo a memorização da grafia correta. Além disso, deve-se criar o hábito de esclarecer as dúvidas com as necessárias consultas ao dicionário. Trata-se de um processo constante, que produz resultados a longo prazo".

Dicionários e corretores ortográficos já estão à disposição dos cegos que estudam e trabalham com o auxílio de computadores; porém duvido muito que a maioria se utilize dessas ferramentas a todo instante para verificar se está correta a grafia de algumas palavras sobre as quais teve alguma dúvida quando, por exemplo, estiver digitando uma simples mensagem para um amigo ou para uma lista de discussão.

Posso afirmar isso com conhecimento de causa, pois já pude observar erros crassos até de companheiros com mestrado e doutorado, que já ouvi criticarem o Braille, cometendo a insensatez de dizer, em alto e bom som sintetizado, que ele é um sistema de leitura antiquado e já superado. 

Tenho plena certeza de que se esses mesmos críticos tivessem adquirido o hábito de ler pelo menos uma revista e/ou um livro em Braille por ano, não teriam cometido as barbaridades ortográficas que vêm cometendo, porque simplesmente a memorização da grafia correta das palavras se dá por duas fontes: pela visão ou pela sensibilidade do tato, no caso das pessoas cegas. 

Nenhum cego, por mais que leia os melhores autores brasileiros, ficará sabendo corretamente a grafia de determinadas palavras se somente realizar suas leituras através de livros gravados ou digitalizados.

Por isso, volto a afirmar que o aprendizado do Braille e seu uso constante são atitudes imprescindíveis à aquisição de uma escrita correta. Mas errar é humano, Eduardo, muitos dirão. Sim, cometer erros é característica inerente ao ser humano, e é normalmente com os erros que aprendemos a evoluir moral e intelectualmente; entretanto, persistir nos erros e ainda se achar o dono da verdade absoluta são atos imperdoáveis e pura burrice. 

Ninguém é perfeito. Todo mundo comete seus enganos uma vez ou outra. E falando especificamente sobre Língua Portuguesa, até os melhores professores, mestres e doutores do nosso rico e belo idioma igualmente cometem seus equívocos e gafes em algum momento. Nobre gesto será o de se reconhecer que errou e ser humilde suficiente para pedir desculpas por tal engano e procurar fazer certo da próxima vez.

Por último, desejo informar às entidades de e para cegos que se interessarem em imprimir em Braille as lições da série "Um Toque na Língua", a fim de servirem de apoio ou reforço em aulas de Português a seus alunos regulares e/ou transcritores e revisores de Braille, como algumas instituições já o fizeram, que têm minha total autorização. 

Informo também que estou à disposição dessas entidades para ministrar um curso presencial de atualização de Língua Portuguesa, quando houver o interesse.

Um forte e fraterno abraço a todos!
Prof. Eduardo Paes

PROCURE LER TAMBÉM EM BRAILLE, ELE O AJUDARÁ A FIXAR MELHOR A GRAFIA DAS PALAVRAS.

“Ensinar é um exercício de imortalidade. De alguma forma, continuamos a
viver naqueles cujos olhos aprenderam a ver o mundo pela magia da nossa palavra. O professor, assim, não morre jamais..." – (Rubem Alves)

O Prof. Eduardo Fernandes Paes preocupado com o rápido e fácil acesso à informação e ao conhecimento pelos seus companheiros de deficiência, o Prof. Eduardo Paes decidiu criar uma página na Internet, a fim de torná-la uma fonte permanente de consulta de assuntos referentes à Língua Portuguesa, à Educação e à Literatura Brasileira. 

Sendo também cego, produziu esta página com a ajuda do programa Intervox (software para geração de home pages), o qual integra o Sistema DOSVOX - um ambiente operacional específico para deficientes visuais - desenvolvido pelo Núcleo de Computação Eletrônica da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), sob a coordenação do Prof. José Antonio Borges.

UM TOQUE NA LÍNGUA - Lição 01 [06 de maio de 2008]

Naquele início de tarde, o Professor Edu, ao sair do prédio onde mora, após ter feito uma rapidíssima refeição, como era de costume, encontra um de seus jovens vizinhos, que o cumprimenta sorridente:

- Olá, Professor Edu! Tudo bem com o Senhor?

- Olá, Zeca! Tudo bem. E você, como vai?

- Estudando muito para o vestibular do fim do ano. Tá duro, viu, Professor?! Tenho tanta matéria pra estudar que minha cabeça às vezes fica fervendo... parece que vai explodir!

- É, meu caro Zeca, eu sei muito bem como é isso, pois a maioria de meus alunos também reclama bastante da excessiva quantidade de matérias que tem que estudar nesta fase pré-vestibular. Mas você é um bom aluno e tenho certeza de que vai superar esta etapa com sucesso.

- É, Professor, eu também espero... Sabe, eu costumo ter muitas dúvidas em português, principalmente em ortografia. Olha só: ontem mesmo eu estava digitando uma mensagem para enviar por e-mail para um amigo e fiquei em dúvida se escrevia discurção ou discussão, quer dizer, se escrevia com r ou sem r; e também se devia escrever com c e cedilha ou com dois s... Na dúvida, acabei trocando esta palavra danadinha por debate. Mas afinal, Professor, qual é o certo?

- Veja bem, Zeca. O ato de se discutir é chamado discussão, palavra que deve ser escrita sem o r e com dois s. Discursão, com muita boa vontade, poderia ser o aumentativo de discurso; mas, neste caso, ela seria escrita com um s somente. Guardou?

- Guardei, sim, Professor. Valeu! Mas escuta: tem alguma dica esperta pra gente saber quando se usa o c com cedilha ou os dois s?

- Existe, sim, Zeca, e é o toque que vou lhe dar agora. Olha, devemos empregar os dois s em todos os substantivos derivados de verbos terminados em gredir, mitir, ceder e cutir. Preste atenção nestes exemplos que vou lhe dizer agora. Com a terminação GREDIR, podemos pegar os verbos AGREDIR, PROGREDIR, REGREDIR, TRANSGREDIR, que dão origem aos substantivos AGRESSÃO, PROGRESSÃO, REGRESSÃO e TRANSGRESSÃO. 

Com verbos finalizados em MITIR, temos, por exemplo, ADMITIR, DEMITIR, OMITIR, PERMITIR, TRANSMITIR, que dão origem a ADMISSÃO, DEMISSÃO, OMISSÃO, PERMISSÃO, TRANSMISSÃO. Com a terminação CEDER, os exemplos de verbos podem ser ACEDER, CEDER, CONCEDER, EXCEDER, SUCEDER, que originam os substantivos ACESSO, CESSÃO, CONCESSÃO, EXCESSO, EXCESSIVO, SUCESSÃO. 

E, por fim, com a terminação CUTIR, poderemos encontrar as formas verbais PERCUTIR e REPERCUTIR, das quais se derivaram os substantivos PERCUSSÃO e REPERCUSSÃO; e ainda a sua palavra danadinha: DISCUSSÃO, que se originou do verbo DISCUTIR. Guardou, meu caro Zeca?

- Puxa, Professor Edu, esse toque foi dez! Mas sem querer abusar da sua boa vontade, será que o senhor poderia me enviar essa dica por e-mail, já que tem um montão de verbos e substantivos para guardar assim na hora, de cabeça?

- Envio, sim, meu rapaz; porém só poderei fazer isso no fim de semana, pois ando com o tempo curtíssimo até para colocar em dia meus e-mails. Pode ser assim?

- Claro que pode, mestre! Também não estou com tanta pressa assim...

- Bem, deixe-me ir agora, porque já estou meio atrasado para as aulas da outra escola onde leciono.

- É, vida de Professor não é nada fácil, não é mesmo mestre?

- Sim, é uma vida bem corrida e cansativa; mas, para quem gosta de lecionar como eu, ela é muito prazerosa e gratificante. Até a próxima, Zeca!

- Até mais ver, Professor Edu.

- Ah, só a título de curiosidade: o termo discussão tem como sinônimo a palavra discutição; só que esta é grafada com c cedilha. Guardou?

- Xiiii, mestre! Não confunda mais minha pobre e tumultuada cabecinha de aluno pré-vestibulando... Aliás, o Senhor também poderia me dar um toque de quando se deve usar palavras com o c cedilha, como acabou de fazer com as que levam dois s, hein, querido teacher?

- Bem, agora não vai dar, porque, como já lhe falei, estou um pouco atrasado para o meu outro emprego. Você tem o telefone da minha casa, não tem?

- Sim, Professor, tenho, sim.

- Então me ligue no domingo pela manhã que eu lhe darei este outro toque
com mais tempo e detalhes, combinado?

- Combinado! Ligarei, sim. Até lá, Professor Edu!

- Até lá, Zeca! E bons estudos!

UM TOQUE NA LÍNGUA - Lição 02 [09 de maio de 2008]

Manhã ensolarada de domingo. Bandos de sanhaços e bem-te-vis brincam, alvoroçados, entre as escassas árvores de um bairro da Zona Norte da cidade do Rio de Janeiro, outrora bastante arborizado e hospedeiro de um casario bem mais amistoso e feliz. 

Na varanda de seu apartamento, embalado pela atmosfera quase bucólica da paisagem e pelo nostálgico cenário de sua época inocente e despreocupante de infância, que lhe vinha à mente naquele momento, o Professor Edu cantarola uma linda canção, composta por Nonato Buzar e Chico Anísio, intitulada Rio Antigo: "Quero um bate-papo na esquina, eu quero o Rio antigo com crianças na calçada, brincando sem perigo, sem metrô e sem frescão, o ontem no amanhã..."; quando o telefone toca, inconvenientemente alto, como para despertá-lo de um passado sem condições de resgate e trazê-lo à realidade de um presente repleto de indagações sobre um brevíssimo futuro de 24 horas, que atualmente a tão decantada Cidade Maravilhosa ironicamente nos oferece.

O Professor Edu atende o telefone, ainda meio entorpecido pelo choque térmico das sensações temporais (pois o passado de nossa infância é, quase sempre, "bem quentinho", aconchegante, como colo de mãe...; o presente, mormente frio, inquietante...). Mas ao reconhecer a voz jovial e vivificante de um de seus alunos, ele rapidamente desperta, esboça um sorriso de corpo e alma e cumprimenta o jovem rapaz:

- Muito bom dia, Zeca, como vai passando? Pensei que a esta hora, com este sol que está fazendo hoje, você já estivesse na praia curtindo o mar, o futebol e as gatinhas.

- Que nada, mestre! Este ano eu estou levando mesmo a sério os meus estudos, porque quero passar de qualquer jeito para a Faculdade de Medicina da UFRJ; e o Senhor sabe muito bem que para se passar para essa Faculdade, a gente tem que ralar muito, né?!

- Sim, o vestibular para a UFRJ é um dos mais concorridos e difíceis do Brasil. Como você disse, tem que ralar bastante para conseguir entrar nessa Universidade. Mas a que devo a honra do seu telefonema?

- Ué, Professor! O Senhor não se lembra de que foi o Senhor mesmo que me pediu para ligar no domingo para me dar mais alguns toques sobre ortografia?

- Ah, é mesmo! Tinha me esquecido disso. Me desculpe.

- Tudo bem, mestre! Sei que sua cabeça previlegiada às vezes dá um BUG de tanto que o Senhor trabalha e também de aturar uns alunos-malas como eu, né?!

- Opa, Epa, Opa!!!

- O que foi, mestre? Falei alguma besteira?

- Besteira propriamente dita, não; mas pronunciou uma palavrinha de forma inadequada, a qual, acredito, você talvez a escreva também do mesmo jeito que a pronuncia.

- E que palavrinha foi essa, Professor?

- Previlegiada! O correto é se falar e se escrever privilegiada, com a letra i e não com e na primeira sílaba, como no verbo privilegiar, que significa conceder privilégio ou privilégios a alguém, ou ainda considerar-se ou tornar-se privilegiado. Guardou?

- Grande Professor Edu! Sabe que eu escrevia mesmo todas essas palavras com a letra e na primeira sílaba?! Que desastre! Acho que foi por isso que a Norminha não quis namorar comigo...

- Rapaz, não entendi a relação que uma coisa possa ter com a outra...

- Eu explico, Professor. É que quando pedi à Norminha para namorar comigo, eu disse a ela que, no caso de ela aceitar, eu seria um previlegiado, porque o sim que ela me desse seria um previlégio para mim. Pô, que mico que eu paguei, hein, mestre?! Agora que eu entendi porque ela não me respondeu nada na hora. Ela simplesmente me deu um sorrisinho amarelo, me deu as costas e foi embora, rindo baixinho. Fiz papel de burro logo na frente da garota mais bonita e estudiosa da escola... Puts!

- Liga não, Zeca. Você ainda terá outras oportunidades de reverter essa situação e de também ter a possibilidade de mostrar os talentos que você possui a ela, como o de, por exemplo, ser um aluno igualmente esforçado e estudioso como ela. Todo mundo comete suas mancadas de vez em quando e garanto que, depois de passar esse susto , a Norminha vai pensar em suas verdadeiras qualidades e, quem sabe, lhe dar uma resposta positiva...

- Espero que sim, Professor Edu, porque eu estou muito a fim dela. Obrigado pela força! Bem, mas como não quero tomar muito seu tempo de descanso, vamos logo ao que interessa. O Senhor hoje ficou de me dar um toque de como saber quando agente usa o c cedilha em certos substantivos, lembra?

- Sim, lembro. Então preste atenção, meu rapaz. Devemos empregar o c cedilha em todos os substantivos que se derivam dos verbos terminados em TER e TORCER, mais os derivados destes. Por exemplo: do verbo ABSTER, deriva-se o substantivo ABSTENÇÃO; de ATER, ATENÇÃO; do verbo DETER, DETENÇÃO; de MANTER, MANUTENÇÃO; e dos verbos RETER, TORCER, DISTORCER, e CONTORCER, originam-se os substantivos RETENÇÃO, TORÇÃO, DISTORÇÃO, e CONTORÇÃO. Anotou tudinho aí, Zeca?

- Anotei, mestre! Puxa, este toque foi muito legal também. Vou passar agora mesmo a limpo as anotações que fiz rapidinho enquanto o senhor falava e juntar com aquelas que o senhor me mandou por e-mail. Valeu, Professor Edu! Brigadão por mais este toque!

- Não precisa brigar comigo, não, meu caro Zeca! Sempre que precisar, estamos por aqui. Um abraço e um bom domingo pra você!

- Pode deixar que não vou brigar com o Senhor mais não! Um bom domingo pro Senhor também.Tchau!

UM TOQUE NA LÍNGUA - Lição 03 [13 de maio de 2008]

Ao se aproximar da primeira escola onde lecionava, o Professor Edu avistou uma pequena multidão à porta do estabelecimento de ensino, num burburinho bem mais agitado que o dos dias normais de aula. Pressentindo, diante daquele cenário inusitado, que o dia lhe reservaria surpresas, as quais decerto ainda não tinha condições de prever de que espécie seriam, instintivamente foi diminuindo o ritmo de seus passos, pois, em sua direção, vinha um bando de alunos agitados e apreensivos. 

O primeiro aluno a chegar perto dele foi o Andrezinho, que sempre fazia questão de dar, em primeira mão, as notícias de tudo que se passava na escola. Ainda meio ofegante pelo esforço da corrida que fizera para chegar na frente dos outros alunos, Andrezinho, engolindo as letras finais das palavras junto com bocados de ar para se recuperar da correria, tenta explicar o que estava acontecendo:

- Profess.. Edu..., o Senho.. nem sab... o que aconteceu!...

- Calma, Andrezinho! Respira primeiro um pouco mais e me conte direito o que está acontecendo. Por que essa correria toda de vocês? E o que significa aquele tumulto na porta da escola?

- Ah, Professor! É que hoje de madrugada mataram o dono da boca de fumo do morro que fica atrás da escola, e os outros traficantes que trabalhavam pra ele andaram fechar o comércio e a nossa escola!

- De novo! Mas já é a terceira vez que acontece isso este ano...

- Pois é, Mestre. Toda vez que matam um dos chefes deles, eles mandam fechar o comércio e as escolas daqui do bairro. Quando encontra-se totalmente cercado por seus alunos, ainda bastante nervosos e preocupados com os acontecimentos e já achando terem perdido mais um dia de aula, aproxima-se a Diretora da escola, à frente de cinco professores não menos assustados que os jovens estudantes. Com um misto de medo, indignação e impotência no olhar, Dona Dulce encara o Professor Edu e diz:

- Professor, os alunos já devem ter-lhe dito o que está acontecendo, não?

- Sim, já me contaram. E acho lamentável que isso se repita mais uma vez. Já é a terceira este ano, não é verdade?

- Exatamente. E desta vez a ordem é para ficarmos fechados durante dois dias.

- Mas isso é um absurdo! Ficar dois dias sem darmos aulas por ordem do tráfico!? Isso não pode acontecer. A Senhora já chamou a polícia?

- Sim, eu já informei a eles o ocorrido, mas... sabe como é. Eles vêm hoje, permanecem o dia todo na porta da escola, voltam amanhã em menor número, prometem que está tudo sob controle, que podemos dar nossas aulas tranqüilamente, porém, no terceiro dia, não vemos mais nenhum policial por aqui e tudo volta ao Deus dará... O Senhor já sabe muito bem como é isso. Sendo assim, não posso colocar em risco a segurança dos nossos alunos, professores e demais funcionários. O negócio é fechar mesmo e esperar a coisa esfriar...

- É... e enquanto esperamos as coisas esfriarem, o ânimo e o gosto de estudar da maioria de nossos alunos vão esfriando junto, não é mesmo Dona Dulce!?

- Lamento, Professor Edu; mas realmente não posso fazer mais nada além do que já fiz. Sinto muito!

- Eu também sinto muito, Dona Dulce. No entanto, eu já sei o que vou fazer para meus alunos não perderem dois dias de aulas, que podem significar muito para eles.

- E o que o Senhor pretende fazer, Professor? Não vá colocar em risco a vida desses jovens com alguma novidade pedagógica revolucionária, como as que o Senhor costuma empregar em sua sala de aula, ouviu bem!?...

- Ora, ora, Dona Dulce! Não sabia que a Senhora me via como um revolucionário perigoso!... É óbvio que não desejo, em momento algum, colocar em risco a vida de meus alunos. Eu simplesmente vou ministrar minhas aulas como o filósofo Sócrates fazia em seu tempo, ou seja, vou para o belo jardim daquela pracinha em frente à nossa escola dar normalmente minhas aulas de língua portuguesa. 

Os traficantes podem ordenar que se fechem as lojas, as fábricas, as escolas e até o Palácio do Governo; mas eles não têm a força, não possuem o poder de fechar as praças onde a voz do povo é livre, forte e autêntica! Afinal, Dona Dulce, alguém já não falou um dia que a praça é do povo!? E virando-se para os jovens , que observavam calados e ansiosos por saber o desfecho daquele insólito embate , brada o Professor Edu aos seus atentos alunos o inesperado convite:

- Vamos lá, galera! Quem for brasileiro, livre e amante do nosso rico e belo idioma, que me siga!

- E aonde vamos, Mestre? - pergunta Luana, meio assustada.

- Não é aonde vamos, minha linda e inteligente lourinha. O certo é onde vamos! Acho que você tá precisando escurecer um pouco os seus cabelos, gatinha!Não é mesmo, Professor Edu?

- Lucas, meu rapaz, veja bem: nós estamos indo para a pracinha ali em frente. E se estamos indo para a praça, estamos certamente indo para algum lugar, não concorda?

- Mas isso tá na cara, Mestre. E daí?

- Bem, se estamos em movimento, nos dirigindo a algum lugar, o correto será perguntar para onde nós vamos, ou aonde nós vamos. Guardou, Lucas?

- Guardei, Mestre. Mas a palavra onde também não indica um lugar?

- Sim, também indica. Porém, um lugar em que alguém ou alguma coisa está, permanece. Por exemplo: se eu quiser saber em que lugar você mora, a pergunta será: Lucas, onde você mora? Ou ainda: Onde fica sua casa, Lucas?

- Ihihih, Professor. Minha casa fica tão longe que nem vale a pena dizer...

- Gostei do gracejo, meu rapaz! Mas você agora percebeu que sua colega Luana, a loirinha linda e inteligente com quem você quis fazer chacota, estava certa em sua pergunta a mim?

- É, Mestre, fazer o quê, né!? Até as lourinhas de vez em quando acertam, não é mesmo!?

- Professor Edu, não fique dando atenção a esse idiota do Lucas, que é recalcado porque não é louro também. Ele fica o tempo todo sacaneando as garotas louras da escola com piadinhas de mau-gosto em vez de levar os estudos a sério. É por isso que vive tirando notas baixas!!!

- Calma, Luana! Não precisa ficar tão irritada assim. Creio que o Lucas estava realmente só brincando, sem a intenção de ofendê-la. Não é mesmo, meu rapaz!? E que também está querendo garantir o seu pontinho por bom comportamento no final do ano, não é verdade!?...

- Mas é claro, meu bom Mestre! Foi tudo só brincadeirinha, viu, Luaninha! Me desculpe, tá legal?

- E afinal de contas, Luana, o Lucas acabou me proporcionando uma oportunidade de esclarecer a vocês a diferença de emprego dos advérbios onde e aonde. E ainda sobre este tema, alguém aqui já ouviu em algum lugar o termo donde?

- Ok, o silêncio já me respondeu. Vejam bem: será que algum de vocês nunca perguntou a uma outra pessoa de onde ela vinha? Ou mesmo de onde algo havia surgido?

- Claro que sim, Professor! Mas o que essas perguntas têm a ver com o tal do donde?

- Tudo a ver, meu caro Fred. O termo donde nada mais é do que a contração da preposição de com o advérbio onde. Assim sendo, quando você pergunta donde alguém veio, é a mesma coisa do que perguntar de onde essa pessoa veio. Guardou, meu rapaz?

- Mais ou menos, Mestre, acho que a coisa ficou meio confusa...

- Vou recapitular, então, para ficar bem entendido para todo mundo. Devemos usar o advérbio aonde com verbos que indicam movimento, como ir, dirigir-se, etc. Exemplos: Aonde você vai? Aonde aquele ônibus se dirige? Aonde você quer chegar? Empregamos onde com formas verbais que indicam permanência, como os verbos estar, ficar, permanecer... 

Exemplos: Onde nós estamos? A casa onde moro fica ao lado de uma igreja. Permaneça onde está. E por fim, donde, que é a mesma coisa que de onde, deve ser empregado com verbos que indicam procedência, origem: Donde vieram seus pais? Donde enviaram esses livros? Tudo certinho, gente?

- Legal, Mestre! Acho que agora deu pra guardar tudo direitinho.

- Que bom, Fred!

- Mestre, O Lucas com suas gracinhas sobre mulheres louras acabou me colocando outra dúvida na cabeça...

- E qual foi, Luana?

- É que ele e muita gente falam louras, lourinhas; e o Senhor usou a palavra loirinhas, como também já ouvi muitas pessoas falarem... Afinal, o certo é loura ou loira?

- Querida Luana, as duas formas estão corretas. As palavras loira, loirinha, que eu acho sonoramente mais agradáveis, são variantes das formas loura e lourinha. Podemos perceber esta variação do ditongo ou, para oi, em numerosos vocábulos. Por exemplo, em calouro e caloiro, dourado e doirado, balouçar e baloiçar, forma verbal que, para quem achou estranha, é o mesmo que balançar. Guardaram?

- Ei, Mestre, essa foi dez! Gostei também de saber disso aí. E olha só: eu não sou recalcado coisa nenhuma porque não sou louro... Estou muito satisfeito com a minha morenice mesmo!

- Tudo bem, Lucas, vamos encerrar este assunto por aqui, ok?

-Certinho, Mestre, por mim...

- Professor Edu, como eu acho que todos nós temos muitas dúvidas que às vezes não conseguimos esclarecer com o Senhor na sala de aula por causa dos outros assuntos que temos que estudar, porque então o Senhor não tira um dia por mês para esclarecer agente sobre essas coisinhas? Poderíamos até chamar este dia de o Dia do Tira-Dúvidas. Que tal?

- Legal, Norminha, gostei dessa idéia! Se todos concordarem com ela, podemos separar um dia no mês para fazer isso, sim. O que acham dessa idéia, turma? Com muitos alunos aplaudindo e acenando positivamente com a cabeça, e outros assoviando ou gritando palavras e expressões como legal! Valeu!
É isso aí!. 

O Professor Edu sorri satisfeito e decide, falando aos alunos num tom alegre e com gestos meio teatrais, proclamar o Dia do Tira-Dúvidas, que se iniciava naquele mesmo momento, na pracinha em frente à escola, lugar que seria, mais tarde, escolhido também por unanimidade entre os alunos que não estavam presentes nesse primeiro dia, como o local perfeito para se realizar esses elucidativos e descontraídos encontros, fato igualmente aprovado pela direção do colégio.

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