Universo Escolar
Aprender e Ensinar como Diálogo com o Futuro
Prof. Dr. Bernd Fichtner Universidade de Siegen, Alemanha
Fábio Adiron, generosamente partilhou este texto, transcrito de palestra apresentada pelo Dr. Fichtner recentemente, em São Paulo.
Gostaria de apresentar de forma resumida três exemplos de uma prática pedagógica e um conceito teórico.
1. Escola e Violência
No ano passado nós enfrentamos, numa sala de primeira série de uma escola de minha cidade, este problema: um aluno sem pai e com uma mãe que trabalha e que vive em um bairro extremamente violento e, portanto, deve aprender a defender-se.
Porém, chegando à escola, ele é obrigado a aprender que a violência é uma falta grave. Para tanto, a escola assume com todo o rigor seu papel pedagógico, chamando a mãe e advertindo a criança de mil formas possíveis. A criança nesse caso sente que, por um lado, a escola é mentirosa, pois sabe que, na sua realidade, se ela não se defende da violência dos outros, corre sérios riscos. Por outro lado, a valorização social da escola faz com que sua mãe aceite o princípio da não-violência, deixando seu filho à mercê da violência do bairro, e ao mesmo tempo ela muda o seu sentimento de orgulho pelo seu filho forte por uma certa vergonha por seu filho violento.
O aluno, neste duplo vínculo, tem como alternativas:
a) a hipocrisia: na escola ele não é violento, porém na rua continua sendo violento, sem dizer nada nem a sua mãe, nem aos professores da escola,
b) o aluno aceita a ideologia da não violência e passa a ser um mártir do bairro;
c) a criança fica esquizofrênica.
Este pequeno exemplo nos mostra que na verdade o tema violência dentro da escola tem uma perversão. É também uma violência fazer com que uma criança abandone uma linguagem de sobrevivência. É para mim o mesmo caso de fazer que uma criança aprenda que ter fome é uma vergonha.
2. O ladrão da primeira série
Este caso me foi narrado exatamente assim por uma professora alemã das séries iniciais de uma escola pública.
Um dia um lápis e um apontador se extraviaram e exigi que as crianças os procurassem. Todas as crianças procuraram.
Eles engatinhavam no chão, olhavam nas mochilas e gavetas. De repente descobri que Geraldinho tinha escondido o lápis e o apontador no bolso traseiro de seu jeans.
O que deve fazer um professor quando descobre um ladrão em sala de aula? Eu nem julguei seu comportamento, mas mandei parar a procura.
E disse: "Eu já sei onde estão as coisas". Geraldinho agarrou rapidamente o bolso com os objetos. "Não, não... não é verdade... ninguém sabe onde estão as coisas."
"Eu sei", disse eu, "e você também".
Geraldinho não disse nenhuma palavra, colocou os objetos na minha mão e andou furtivamente para o seu lugar. Eu me senti de repente muito mal. Geraldinho tinha desmascarado a minha própria indiferença, ele me envergonhou profundamente, com a sua resignação para entregar os objetos.
Geraldinho não tinha nada. Ele foi deixado num orfanato porque sua mãe não podia sustentá-lo. A sua roupa usada era ou muito grande ou muito pequena, mas nunca limpa, raramente inteira. No verão ele usava botas. Eu via seu rosto pálido, seus olhos profundos e tristes. Eu sabia que ele raramente tinha algo com que escrever. Seu estojo estava sempre vazio. Eu sabia que ele tinha que mendigar para que lhe dessem coisas, e que raramente alguém lhe dava.
O que eu deveria fazer neste momento? Então mostrei às crianças o estojo vazio de Geraldinho sem palavras.
"Geraldinho não tem nada", disseram as crianças em voz baixa e surpresas.
Lentamente algumas da turma foram levantando-se e colocavam no estojo algumas das coisas que ele precisava.
Geraldinho as olhava enquanto seu rosto ficava vermelho. "Se vocês me dão algo então vou ter algo" disse ele. O estojo vazio tinha "falado" com as crianças. Graças a isto elas tinham entendido algo sobre este fato.
Geraldinho não era o ladrão da turma; era o orfanato que não tinha nada. Nós não somos anjinhos, mas sim possuidores em relação à Geraldinho. Esta experiência possibilitou a compreensão de outras relações e criou uma nova consciência para cada um e construiu assim uma nova realidade.
3. Quatro anos dar aulas sem Ensinar - o Projeto do Professor Falko Peschel
Esse foi um projeto concreto de 4 anos, que consistiu na práxis numa escola elementar, onde um professor deixou nas mãos dos alunos da primeira a quarta séries a organização do processo de ensino-aprendizagem. Neste projeto não existiam livros didáticos, nem currículo, nem material didático, nem jogos pedagógicos, etc. etc. etc.
Existiam só folhas em branco que as crianças deveriam preencher com suas idéias, seus conceitos, suas necessidades e seus desejos. Claro que existiam auxiliares neste processo, mas eram os instrumentos mais simples, o básico: listas de letras, de números, de posições para sistema numérico, etc.
Eram 32 alunos que começaram com seis ou sete anos uma primeira série muito diferente das outras: eles deveriam organizar seu dia de escola: conteúdos, organização, disciplina, horário e, sobretudo relações com o conhecimento.
As diferenças existentes entre as crianças, respeitadas e aceitas, foram as bases para esta forma de auto-organização e auto-regulação. A abertura foi o princípio fundamental desta aprendizagem, onde todos os alunos aprenderam a ler e escrever - foi um processo de aprender e ensinar ao mesmo tempo entre eles. Quando os alunos queriam aprender, eles mesmos se ocuparam esclarecendo o conteúdo e organizando os materiais necessários.
Eles aprenderam a escrever e através do escrever aprenderam a ler. A ortografia não foi aprendida por leis gramaticais ou exercícios repetitivos e cansativos, mas pela prática de escrever e ler e olhar. Ao final de 4 anos, o professor pediu uma avaliação externa, muito rígida e severa de acordo com os padrões da educação formal na Alemanha e o resultado de todas as crianças com respeito à capacidade de escrever, compreensão de texto, ciências naturais e exatas foi 30 por cento melhor do que a média nacional. O mais importante foi que todas as crianças entraram na segunda etapa do ensino médio com uma bagagem de segurança e auto–estima não contabilizada na avaliação externa.
Muito mais surpreendente do que os resultados obtidos no currículo foram os resultados da integração social destas crianças que, em vez de apresentar padrões e regras comportamentais, cada minuto da convivência era determinada pelo direito de opinar e decidir e por um respeito verdadeiro pela decisão da maioria, sem demagogia.
Neste exemplo o que nos surpreendeu verdadeiramente foi a veracidade das relações existentes entre aluno e professor: este conjunto de indivíduos se debruçou num problema real, como aprender o que a sociedade manda sem ferir a originalidade, a univocidade, o tempo individual e a necessidade social de cada um de seus membros, sem usar essa pedagogia arrogante que se outorga o direito de definir o que é bom para o outro.
4 – Passado e Presente
Carlos Maldonado, Secretário da Educação de Cuiabá no informou que povos indígenas no Estado de Mato Grosso cultivam uma representação bidimensional do tempo. O tempo aqui é constituído apenas de passado e futuro. O passado é o que está na frente e o futuro é o que está na gente.
Por que o passado na frente? O passado, o experimentado, o vivido, é a experiência, imagem ou sensação que já conhecemos, o único que podemos enxergar. É a vida já vivida que nos dá a visão da existência, das suas possibilidades, limites e fronteiras. É o acúmulo das vivências, processos, interações e trocas com os outros e com as coisas que nos possibilita a invenção da cultura, em sua dinâmica de destruição e criação permanentes, e a nossa identidade dentro dela.
O que é o futuro que está na gente? O futuro não está ao lado, nem atrás, nem na frente. Ele está na gente. O futuro guarda um compromisso em sua possibilidade e existência: criar mais passado. Significa dizer, renovar a tradição, superar o já andado, transformando tudo que está à frente (a árvore; o fruto; o conhecimento) em algo do futuro, em algo que está dentro de mim, transformando–o num sentido pessoal.
Assim, o futuro impregna a ação com a necessidade de sentido pessoal. Como o futuro está em nós, podemos ou não realizá-lo, mas ele não depende do outro, senão para as utopias coletivizadas. Passamos a ser depositários dos nossos sonhos, senhores dos nossos desejos, responsáveis únicos pelo que somos e pelo que viermos a ser. Passamos a ser seres humanos.
Nos quatro exemplos apresentados de culturas completamente diferentes a lógica da pedagogia vigente é questionada fundamentalmente. E aparece aqui uma outra lógica, além de uma perspectiva de métodos novos. Em todos os exemplos se encontra o direito de aprender a ser um ser humano (negrito meu).
A reação lógica da Educação Pública tradicional está determinada e influenciada pela lógica do Estado e da sua sociedade. Trata-se da lógica do poder, que o filósofo Espinosa descreveu na sua "Ética" como lógica do tirano e do escravo.
Os homens livres encontram uma base nos afetos e emoções de alegria e felicidade, que aumentam a capacidade de agir, quer dizer de viver. Também encontramos em Espinosa uma negação muito forte de qualquer forma de dualismo, seja o dualismo mente /corpo, individuo /sociedade, espírito /matéria.
E para concluir nos identificamos com duas frases de Agostinho Reis Monteiro:
“Com que legitimidade podem as gerações mais velhas (a sociedade/ o Estado) pretender moldar as gerações mais novas á sua imagem e semelhança?
Com que direito é que alguns seres humanos fazem o que fazem a outros seres humanos, a título da educação?
Com que direito educar?
O direito à educação tem o alcance de uma revolução copernicana que pode ser resumida nestes termos metafóricos: a educação já não está centrada na terra dos adultos, nem no sol da infância, mas projetada no universo dos direitos do ser humano, onde não há maiores e menores, pais e filhos, professores e alunos, mas sujeitos iguais em dignidade e direitos. Sendo assim, a razão pedagógica já não é a razão biológica da Família, nem a razão política do
Estado, mas a razão ética do educando, que limita tanto o arbítrio parental como a onipotência estatal.
A ética do direito de aprender é uma ética cujo valor específico é o pleno desenvolvimento da personalidade humana como centro de gravidade de todo o desenvolvimento.
O conceito de "zona de desenvolvimento proximal" em Vygotsky
Vygotsky construiu o famoso conceito de "zona de desenvolvimento proximal" para esclarecer as relações entre ensino/aprendizagem e desenvolvimento [1]. Ele denomina a capacidade de realizar tarefas de forma independente como o nível de desenvolvimento real de uma criança.
O nível de desenvolvimento potencial representa a sua capacidade de desempenhar tarefas com a ajuda de adultos ou de companheiros mais capazes. Vygotsky define a distância entre o nível de desenvolvimento real e o nível potencial como "a zona de desenvolvimento proximal" (1984, 92).
Com esta concepção podemos medir não só o processo de desenvolvimento até o presente momento e os processos de maturação que já aconteceram, mas também os processos que ainda estão ocorrendo, que só agora estão amadurecendo e se envolvendo. A área de desenvolvimento potencial permite-nos ver o amanhã da criança, os seus futuros passos e a sua dinâmica de desenvolvimento.
Em todas as versões desta concepção [2] Vygotsky mostra uma orientação para algo que até agora não existia, com uma direção para o futuro que ostenta a sua dinâmica já na interação social, na colaboração com adultos ou companheiros mais capazes.
Mas para encontrar "zonas de desenvolvimento proximal" deve-se fazer mais do que analisar a criança através de testes: é preciso interagir, cooperar com ela, mostrar-lhe os pontos de referência certos, deve-se estabelecer relações múltiplas, que Vygotsky denomina de "ensino - aprendizagem". Isto é exatamente oposto aos famosos métodos clínicos que Piaget brilhantemente domina. Piaget questiona a criança à base dos erros dela, Vygotsky questiona a criança a partir das respostas que ele deu a ela.
Um exemplo pode ilustrar isso: nossas crianças aprendem a caminhar, porque nós, os adultos, caminhamos. Elas têm uma resposta literalmente à sua frente, que está acima de suas necessidades internas e externas. Nós adultos estamos interpretando estas necessidades internas ou/e externas da criança de aprender a caminhar como pergunta: "O que devo fazer para caminhar"? Ou "Me ajuda a caminhar?" Cada criança transforma esta resposta, esta nossa ajuda na sua própria maneira de caminhar. Nós conhecemos também as conseqüências se esta resposta não existe ou não está disponível. Isso se mostra dramaticamente nos casos de um Kaspar Hauser ou da "criança selvagem de Aveyron" (França).
Dar uma resposta, ser uma resposta, apresentar ou viver uma resposta para fazer possível o novo, algo que não existia, isto sempre é de fato uma coisa prática. As respostas, que nós pedagogos estamos dando às crianças e adolescentes são para eles meios, com os quais eles constroem as próprias perguntas. Esta perspectiva é exatamente oposta a uma interpretação dogmática da "zona de desenvolvimento proximal", onde pedagogos e psicólogos pensam que podem determinar precisamente os conteúdos destas zonas. Aqui a perspectiva metodológica de Vygotsky é reduzida a uma receita que é simplesmente o ensino em grupos ou/e o trabalho em grupos na sala de aula.
A "zona de desenvolvimento proximal" refere-se ao caminho que o indivíduo percorrerá para desenvolver novas funções. Assim a zona apresenta uma área em constante transformação, uma área de problemas, de insegurança, de perspectivas novas e, ao mesmo tempo, desconhecidas para o indivíduo. Entrar numa "zona de desenvolvimento proximal" significa sempre entrar numa área não totalmente esclarecida nem conhecida. Conflitos, distúrbios, problemas, comportamentos problemáticos, falta de coordenações nas atividades atuais de um indivíduo, etc., podem ser compreendidos como sintomas importantes desta entrada.
A "zona do desenvolvimento proximal" é um diálogo entre a criança e o seu futuro, nunca é um diálogo entre a criança e o passado de um adulto, de um professor ou de uma sociedade.
Notas:
[1] Essa concepção significa também uma transição ou transformação importante na própria teoria. O foco de interesse se desloca da atividade mediada pelo signo para a atividade socialmente mediada. O conceito de "zona de desenvolvimento proximal" integrou a atividade social à teoria, enquanto retinha o significado da mediação do signo e do instrumento na compreensão da aprendizagem e do desenvolvimento humano (Moll 1996 e Keiler 1996).
[2] Veja Vygotsky 1977 e 1987.