Universo Escolar
Para Educador, Escola Formal não serve para Educar
Uirá Machado Coordenador de Artigos e Eventos da Folha de S.Paulo
Entrevista concedida em 26/11/07 - Folha de São Paulo
"A
Escola formal não está só na forma.
Está dentro da fôrma. O pior é quando
está no formol. É um cadáver."
É assim que o educador mineiro Tião
Rocha, 59, vê o
ensino convencional, de cujos métodos e conteúdos
se afastou há mais de 20 anos para experimentar processos
alternativos de educação.
À frente do Centro Popular de Cultura e Desenvolvimento desde 1984, Rocha sempre persegue "maneiras diferentes e inovadoras" de educar, alfabetizar, gerar renda. Ele distingue educação de escolarização e busca um sonho: escolas que sejam tão boas que professores e alunos queiram freqüentá-las aos sábados, domingos e feriados. "Se ninguém fez, é possível", diz.
Folha - Toda a sua
história como educador é feita do lado de fora
das escolas convencionais. Qual é o seu problema com a
escola formal?
Tião
Rocha - Se eu tivesse um
analista, isso seria um prato cheio para ele. Comecei a ter problemas
com a escola desde que entrei, aos sete anos. Logo no primeiro dia de
aula, no Grupo Escolar Sandoval de Azevedo, Belo Horizonte, a
professora Maria Luiz Travassos nos levou para a sala de leitura, pegou
um livro, "As Mais Belas Histórias", da dona
Lúcia [Monteiro] Casasanta, e começou a ler: "Era
uma vez um lugar muito distante, onde havia um rei e uma rainha (...)".
Eu levantei a mão e falei: "Professora, eu tenho uma tia que é rainha". Ela desconversou, pediu para eu ficar quieto. Ela prosseguiu a história. Depois que a interrompi duas ou três vezes, ela me mandou calar a boca e ir falar com a diretora, dona Ondina Aparecida Nobre. Ela me deu um tranco, perguntou se eu queria ser expulso. A partir daí, eu sempre inventava coisa para matar a aula.
Nunca
tive uma escola boa. Nunca tive prazer na escola, mas sempre quis
aprender. Quando fui para a faculdade, estudei história e
antropologia, fui resgatar a história da minha tia, que era
rainha do congado. Para pagar os estudos, eu precisava trabalhar. Fui
dar aula e me dei conta de que, se eu achava aquilo chato, meus alunos
também, porque eu era um reprodutor da mesma chatice.
Folha - E você
conseguiu mudar?
Tião
Rocha - Não.
Criava jeitos diferentes de trabalhar com os alunos, inovava, mas, no
fim, era uma experiência muito reformista. Ela
começou a ser transformadora quando aconteceu o fato com o
Álvaro, minha primeira grande perda [o garoto, excelente
aluno, se suicidou].
Aí
eu falei: "Opa! Não adianta querer que os meninos aprendam
história se eu não consigo aprender a
história da vida deles". Então comecei a deixar
de lado não só a forma, mas também o
conteúdo.
Por
exemplo, pedia aos alunos para pesquisarem em casa: sobre cantiga de
ninar, expressões populares, jogos etc. Um pai chegou para
mim e disse: "Vim te agradecer, porque eu tinha um problema de
relacionamento com meu filho, mas agora ele apareceu querendo saber
sobre as brincadeiras de quando eu era criança e
começamos a conversar, a brincar". Eu nem sabia que aquele
negócio estava ajudando a aproximar pais e filhos.
Aí
eu fui me libertando dos conteúdos cheirando a mofo e
comecei a ver que estava partindo para uma outra coisa. Esse processo
foi evoluindo na reflexão sobre o que é deixar de
ser professor e virar educador. O professor ensina, o educador aprende.
Folha
- E então o
senhor começou seus projetos fora da escola, debaixo do
pé de manga. Mas o senhor acha que a escola formal serve
para alguma coisa?
Tião
Rocha - Ela serve para
escolarizar. Ela dá um determinado tipo de
informação e de conhecimento que atende um
determinado tipo de demanda, um determinado tipo de modelo mental de
uma sociedade que aceita, convive e não questiona.
Folha
- Essa escola educa?
Tião
Rocha - Não. Ela
escolariza. Uma coisa é falar em
educação, outra é falar em
escolarização. A maioria das pessoas que
estão cometendo grandes crimes são pessoas
escolarizadas. Então, que escola é essa? Para que
ela serviu?
Não
ajudou nada, mas escolarizou. E essa escola continua sendo branca,
cristã, elitista, excludente, seletiva, conformada. Ela
seleciona conteúdos, seleciona pessoas, mas não
educa.
Folha - O que significa a escola
ser branca?
Tião
Rocha - Por exemplo, eu
nunca tive aula sobre os reis do Congo, mas tinha aula sobre todos os
Bourbons, reis europeus.
Folha - E conformada?
Tião
Rocha - A escola
não permite inovação. Ela é
reprodutora da mesmice. A escola formal não está
só na forma. Ela está dentro da fôrma.
O pior é quando ela está dentro do formol.
É um cadáver. O conteúdo da escola
está pronto e acabado.
Os
meninos que vão entrar na escola no ano que vem,
independentemente de quem sejam, aprenderão as mesmas
coisas, do mesmo jeito. Aprendem o que alguém determinou que
tem que ser aprendido.
Folha - O que está
errado com o conteúdo?
Tião
Rocha - Recentemente, uma
menina de nove anos, lá em Curvelo, virou para mim e disse:
"Tião, vou ter prova e esqueci o que é
hectômetro". Eu disse a ela que ninguém precisa
saber o que é isso, que não se preocupasse, isso
não cairia na prova.
Perguntei
se ela sabia o que era centímetro, metro,
quilômetro. Ela sabia. "Pronto, está bom demais,
você vai viver a vida inteira mais 15 dias e não
vai acontecer nada", disse para ela. Passados uns dias: "Me
ferrei.
Caiu
na prova e eu não sabia". Peraí:
criança de nove anos tem que saber isso? Isso é
conhecimento morto. Mas se eu pergunto se eu posso ensinar outra coisa,
não posso. O que posso é ensinar as mesmas coisas
de uma forma diferente.
No
conteúdo não pode mexer. O vestibular cobra.
É um processo seletivo que vai determinando e excluindo,
afunilando, dizendo que, para entrar aqui, precisa pensar desse jeito,
nessa lógica. Do ponto de vista da
escolarização, está indo muito bem.
Agora, se está educando ou não,
ninguém discute.
Quando
uma criança é entrevistada e diz que é
de determinado projeto porque quer ser alguém na vida,
já sei que ela foi pessimamente educada. Um menino que aos
12 anos acha que não é ninguém na vida
não tem mais auto-estima. Ele não é
ele. Ela vai ser. É sempre um projeto adiado para o futuro.
Folha - Como deveria ser a
educação?
Tião
Rocha - Um projeto de vida,
não de formação para o mercado. A
lógica da vida não é ter um emprego.
Será que é possível construir um
processo de uma escola que incorpore valores dignos, que passe a
perceber que a ciência precisa estar condicionada a esses
valores, que a tecnologia precisa estar condicionada a esses valores,
que elas não podem ser determinantes dos valores
humanos?
Ter
analfabetos não pode ser um problema econômico,
é um problema ético. A experiência que
a gente vem desenvolvendo no CPCD é saber se é
possível fazer educação de
qualidade.
Claro
que é. Só que você tem que
botar uma pergunta que a gente sempre faz. É o MDI: "de
quantas maneiras diferentes e inovadoras eu posso"... O resto
você completa com uma ação: educar,
alfabetizar, diminuir a violência, gerar mais renda.
Quando
a gente começa a fazer isso, aparecem 70
sugestões para alfabetizar, por exemplo. Vamos tentando uma
por uma. Funcionou? Não? Risca. E vamos para a
próxima. Quando chega na última, já
tem mais tantas outras. Você não esgota o seu
potencial de soluções para as crianças
aprenderem.
Folha - Até onde
vale criar soluções?
Tião
Rocha - Na
educação, qual é a melhor pedagogia?
É aquela que leva as pessoas a aprender. Na
escolarização, a melhor pedagogia é
aquela que dá mais sentido para quem a aplica. O CPCD foi
secretário da Educação de
Araçuaí. Lá tinha um problema: os
meninos demoravam duas horas no ônibus.
O
que a gente fez? Colocou educadores no ônibus. Qualquer
secretaria de Educação pode fazer. É
só sair da caixa. Uma outra questão é
o acesso aos livros. Há muitos anos, acompanhei a
trajetória de dez crianças em Ouro Preto num
período de seis, sete anos.
Como
eu sei se um aluno é da primeira, da segunda, da terceira
série? É pelo tamanho da pasta. No primeiro ano,
traz até uma mala. Leva tudo. Depois, vai deixando. No
ginásio [quinta a oitava série], eles
não levam quase mais nada. No colegial, às vezes
leva só uma canetinha.
Eu
me perguntei se os livros perderam o encantamento ou se foi
à escola que não soube mantê-los
encantados. Juntei um monte de livros em baixo da árvore e
mandava a meninada ir lendo. Em volta, deixava montinhos de sucata e
escrevia uma placa: música, teatro, artes
plásticas, literatura.
Tudo
que o menino lesse, tinha que ir numa direção e
fazer música, teatrinho etc. É um jogo. Ler e
transformar, do seu jeito. Eles ficavam lá a tarde inteira.
Vinha gente de longe. Agora, por que será que esses meninos
nunca tinham entrado numa biblioteca da escola?
Porque
ele não tinha prazer em entrar na biblioteca. Quando ia ler
um livro, tinha que dissecar a obra, classificar o texto, responder a
dez perguntas sobre aquele negócio. Em baixo da
árvore, ele não tinha que responder a pergunta
nenhuma.
Era
prazer, e não dever. Os livros não perderam o
encantamento, portanto. Eu nunca li e detesto Machado de Assis. Por
quê? Porque tive que fazer anatomia do livro. Achava um saco.
Até hoje não consegui romper com isso.
Folha - Como enfrentar a falta
de leitura?
Tião
Rocha - Faz chover livro na
cabeça dos meninos. De todo jeito. Bornal de livros,
algibeira de leitura, folia do livro, banco de livros, livro no ponto
de ônibus. É igual propaganda. Como você
quer que o cara não tome Coca-Cola? Vamos botar esse apelo
para o livro.
A gente foi tirando os meninos do estado de UTI. Vale tudo.
É ético? É. Então, vale. Se
nunca foi feito, a gente faz. Se errar, não tem problema.
Temos que aprender.
Folha - Como você
mexe no conteúdo? Tem um conteúdo
básico?
Tião
Rocha - Claro. Tem que ter
alguma coisa para começar. Precisa aprender os
códigos de leitura, a raciocinar e fazer cálculo,
as quatro operações básicas. Mas
não precisa saber o que é hectômetro.
Folha - Como diversificar? Ou
por que diversificar?
Tião
Rocha - Há uns
20 anos, eu trabalhava bem no sertão. Tinha um projeto do
governo para combater a doença de chagas na
região. Parecia muito bom, as casas de adobe seriam
substituídas por casas de cimento com
condições de pagamento bem
favoráveis.
Mas
não houve adesão dos moradores. O que os
engenheiros não percebiam é que as casas pareciam
um forno de tão quente.
O
pessoal do projeto dizia: "É uma questão de
adaptação". Eu respondia: "Não
começa, não. A casa de adobe resolve muito bem a
questão térmica. Por que não fazem
casa de qualidade com adobe naquele sertão?".
Eles
disseram que não sabiam fazer, que não aprendiam
isso na faculdade de engenharia. Fiquei imaginando: eles não
foram formados para fazer casas dignas para a
população. Querem fazer em São Paulo e
no sertão uma casa do mesmo tipo.
Que
lógica é essa? É a lógica
do modelão. Hoje, entrou na moda fazer casa de adobe,
é ecológico. Engraçado. Antes, as
pessoas faziam casa assim. Aí vieram, cortaram a
tradição, impuseram o modelão e,
agora, querem voltar ao que se fazia antes, mas travestido de conversa
nova.
Folha - Você
é contra todo tipo de forma universalizante?
Tião
Rocha - Como
padrão único, claro.
Folha - Você
é a favor de uma transformação
constante?
Tião
Rocha - Da diversidade
permanente.
Folha - De uma pedagogia
específica para cada pessoa?
Tião
Rocha - Não. O
que não pode é aprender uma única
coisa, todo mundo igual. Mas não é "cada um faz o
que quer". O que não pode é dar pesos desiguais,
ou seja, negar ou excluir coisas em função de
critérios que são absolutamente
ideológicos.
É
possível criar uma sociedade polivalente, diversificada?
É, porque não foi feito ainda. Se
ninguém fez, é possível. Isso
é o que eu chamo de utopia. Utopia para mim não
é um sonho impossível. É um
não-feito-ainda, algo que nunca ninguém
fez.
É
possível aprender brincando? A escola tem que ser o
serviço militar obrigatório aos sete anos ou pode
ser prazerosa? Aí eu coloco um indicador: a escola ideal
deve ser tão boa que professores e alunos desejem aulas aos
sábados, domingos e feriados. Hoje, temos exatamente o
contrário.
Os
meninos estão no século 21 e a escola
está Idade Média. A escola é a
única instituição
contemporânea que têm servos, tem serventes,
pessoas que estão lá para nos servir. Nem em
banco tem isso, lá são "auxiliares de
serviços gerais".
Quando
eu trabalhava na Universidade Federal de Outro Preto, por acaso eu
virei pró-reitor. Acabei indo a uma reunião de
pró-reitores com o Secretário da
Educação. Aquele discurso enfadonho estava me
enchendo o saco, até que eu disse:
“Nesse
país, uma escola nunca teve crise de aprendizagem: a escola
de samba”. Uma assessora do secretário disse que
aquilo era inadmissível e perguntou se eu achava que a
escola pública tinha que ser "aquela bagunça". Eu
respondi: "Estou vendo que a senhora não entende nada de
escola de samba.
Na escola tem disciplinador, não tem? Pois na escola de
samba tem diretor de harmonia". Entende? Uma coisa é cuidar
da disciplina, outra coisa é cuidar da harmonia.
Folha - Como nasce uma nova
forma de ensinar?
Tião
Rocha - Ou da dificuldade
ou da pergunta. Somos movidos por uma pergunta, que vira um desafio,
que vira uma encrenca. É possível educar debaixo
do pé de manga? É possível criar
agentes comunitários de
educação?
Vamos
ficar pensando ou vamos aprender fazendo? Vamos aprender fazendo. A
primeira coisa que a gente fez foram os "Não Objetivos
Educacionais". Porque formular um objetivo é muito simples:
basta colocar um verbo na forma infinitiva e depois encher de
lingüiça.
O
nosso verbo é o "paulofreirar", que só se conjuga
no presente do indicativo: eu "paulofreiro", tu "paulofreiras" e por
aí vai. Não existe "paulofreiraria",
"paulofreirarei". Ou faz agora ou sai da moita.
Ação e reflexão, agora. As respostas
vão sendo testadas e viram novas metodologias,
pedagogias.
Assim
surgiu a pedagogia da roda, por exemplo, como um jeito de combater a
evasão dos meninos. Não podemos perder os alunos,
precisamos mantê-los interessados.
Folha
- Seus métodos
são tão abertos a ponto de aceitar que uma
criança queira aprender na escola formal? Ou você
quer acabar com a escola?
Tião
Rocha - Eu não
quero acabar com a escola. Ela é muito mais importante do
que parece. Ela está longe de esgotar seu
repertório, não usou nem 10% das possibilidades.
Mas, para isso, ela precisa ter a ousadia de experimentar.
É
uma lástima dar às crianças
só o que a escola formal oferece. É muito pouco.
As pessoas querem tirar os meninos da rua e levar para a escola
--só se for para prender, porque para aprender
não serve. É muito chato. Por que, em vez de
tirar da rua, não mudamos a rua?
Lugar
de criança é na escola, na rua, em todos os
espaços. Todos os espaços podem ser de
aprendizado. Há experiências de cidades educativas
muito legais.
Folha - Como é sua
relação com os governos?
Tião
Rocha - Eu não
vejo muita diferença. Todos eles estão dentro da
mesma caixa, só muda a cor. A escola que tem agora
não é muito diferente da de oito anos ou 20 anos
atrás. Vai só pintando a fachada. A
lógica, o processo, a metodologia muda muito pouco, no
geral.
A
gente não consegue estabelecer alianças com os
governos porque incomoda pensar fora da caixa. Se incomoda,
são refratários. Então a gente vem
aprendendo a fazer política pública
não-governamental.
As Pedagogias do Centro Popular de Cultura e Desenvolvimento
Folha - Como surgiu a pedagogia
da roda?
Tião
Rocha - No
exercício de manter os alunos interessados e combater a
evasão, descobrimos a pedagogia da roda. Todo mundo se
vê, não tem dono, a roda tem uma idéia
que pertence a todo mundo, todo mundo é educador e a roda
não faz eleição, faz consenso.
Tudo que é levado à roda pode ser estudado e
aprendido, só tem que organizar o momento. O que
não queremos aprender hoje vamos aprender amanhã.
Não exclui nada, não joga nada fora.
Não tem seleção, não tem
exclusão, não tem vitória da
maioria.
A
roda constrói uma pauta, estabelece um processo, uma
avaliação e faz a memória. Ela pensa,
age e volta. Foi um jeito de praticar Paulo Freire. Isso surgiu como
uma experiência, não foi uma
solução mágica.
Eleição
é legal do ponto de vista democrático, mas, do
ponto de vista educacional, é excludente. Quem
propõe uma idéia e é derrotado duas ou
três vezes, acaba não voltando. Mas não
podemos perder ninguém.
O
que a gente faz? Vamos mudar o jeito. Tudo o que for falado a gente vai
estudar. As pessoas começam a ter uma
participação qualitativa, todo mundo querendo
trazer boas contribuições. E paramos de perder
gente da roda.
Folha - E a pedagogia do
sabão?
Tião
Rocha - Ela surgiu
há 23 anos lá em Curvelo (MG). Eu fui chamado
para interagir com as escolas públicas da prefeitura. Recebi
uma pilha de relatórios. Todos listavam as necessidades:
material de limpeza, água, comida e por aí vai.
Até que a dona Margarida, uma professora leiga, chegou perto
de mim e falou: "Na minha lista tem um bocado de coisa que eu posso
fazer. Sabão, detergente".
Eu estranhei e perguntei como fazia sabão. Ela falou: "Eu
não acredito que um cara que estudou até na
universidade não sabe fazer sabão". Pois eu
não sabia. Logo ela contou que, para fazer sabão,
não ia precisar de nada, pois tinha tudo na escola.
Ora,
e por que ela não fazia? "Pode?", ela perguntou. Eu
respondi: "Pode, pode tudo". Passadas umas duas semanas, o
sabão que ela fez com os meninos da quarta série
rendeu tanto que metade ficou para a escola e metade foi para as
famílias dos meninos.
Os
pais queriam mais. E eu disse: "Vai fazer sabão com eles".
Passado um tempo, ela tinha feito 15 tipos de sabão: de
abacate, de mamão, de pequi etc. Em três meses,
eram 85 itens. Hoje são mais de 1.700 itens de tecnologia de
baixo custo.
Depois
eu percebi que aquilo tinha virado um pretexto para falar da vida.
Passei a usar pretexto para as reuniões de comunidade: fazer
sabão, fazer remédio etc. Virou um ritual em que
as pessoas deixam um lugar de consumidor e passam a um lugar de
produtor.
Comecei
a adotar isso em tudo. Com os meninos do projeto Ser
Criança, que eu juntei pela primeira vez há 22
anos lá em Curvelo, propus uma aposta: no dia em que a gente
não conseguisse inventar os próprios brinquedos,
eu começaria a comprar.
Nunca
perdi. O lixo limpo vira sucata, a sucata vira
matéria-prima. Até que virou negócio,
uma fabriqueta de brinquedo. A partir da pedagogia do sabão,
criamos uma cooperativa que cria brinquedos.
Folha - E aí surgiu
a pedagogia do brinquedo?
Tião
Rocha - Esse processo gerou
esses jogos todos, a "damática", por exemplo, que surgiu
para resolver problema de aprendizado. Hoje temos os bornais de jogos,
com mais de 150 jogos diferentes. E a gente podia fazer isso com os
recursos disponíveis.
E
tudo tem que ter pelo menos duas funções. No caso
dos brinquedos, eles são aproveitados para o ensino.
É muito mais gostoso aprender brincando. O que a gente faz
é pensar como o brinquedo pode ser construído e
como ele pode ser usado para tornar o aprendizado divertido,
encantador.
Folha
- E a pedagogia do
abraço?
Tião
Rocha - Ela surgiu em 1995,
quando a gente teve uma crise conceitual grande. Na
avaliação de final de ano, fomos falando da
horta, da brinquedoteca. Até que eu perguntei por que
estávamos falando de horta se o objetivo daquele projeto era
promover a auto-estima.
Deu
aquele branco em todos nós. Resolvemos fazer uma parada
estratégica. Por que a gente falou que queria promover a
auto-estima? Como eu sei se uma pessoa está com a
auto-estima alta ou baixa? Qual é o indicador? Pronto, o
projeto parecia uma enganação...
Listamos
uns indicadores que eram consenso na roda e fomos ver se as atividades
ajudavam na auto-estima. O futebol, por exemplo, se não
tivesse nada a ver com auto-estima, precisaria ser tirado do projeto.
Mas isso era um problema: significaria perder os meninos.
Então mudamos as regras do jogo.
No
futebol da Fifa, o grosso não se dá bem. Como
incluir? Inventamos um futebol amarrado pelos braços e pelas
pernas. Duas pessoas formam um único jogador. No jogo
amarrado, a primeira coisa é aprender a andar. Depois, a
respeitar o outro, ser solidário.
Era
muito divertido, fazia um bem. A partir daí, inventei outro
jogo. Eu chegava perto de um menino ou uma menina e, se estivesse bem
arrumado, eu dava um abraço bem apertado. Se não
tinha se cuidado, eu cumprimentava de longe.
Era
uma brincadeira, uma provocação. Mas isso foi
fazendo com que eles se arrumassem para conseguir o abraço.
A conta de água aumentou, demandaram xampu, queriam pintar
as paredes. Aquilo fazia bem. Virou a pedagogia do
abraço.
Quando
chegava em grupos que tinham mais dificuldade, fazia oficina de
cafuné, pois tinha gente que não sabia o que era
cafuné. O que chamamos de pedagogia do abraço
é esse exercício permanente de acolhimento em
relação ao outro.