Planeta Educação

Filosofando

Dalva Aparecida Garcia Docente do Ensino Médio na Rede Pública Estadual. Coordenadora Pedagógica do Centro Brasileiro de Filosofia para Crianças; Graduada em Filosofia pela Universidade Estadual Paulista - Marília, UNESP; Mestra em Filosofia e Educação pela Faculdade de Educação da USP/SP, FEUSP; e-mail: dalva@cbfc.org.br

O Universo Infantil, a Literatura e as Novelas Filosóficas
O universo infantil – a importância do lúdico

1. O universo infantil – a importância do lúdico

A imagem da criança é sempre um mundo de encantamento e mistério. Freqüentemente nos perguntamos: o que será que essas criaturinhas pensam? Será que verdadeiramente nos entendem? Será que as entendemos? Inúmeras vezes nos surpreendemos com as relações inusitadas que elas fazem.

Algumas dessas relações, consideramos manifestação de brilhantismo intelectual dos nossos pupilos e, outras, pura ingenuidade que nos faz rir durante meses ou anos. Muitas vezes, guardamos registradas na memória essas proezas para aborrecê-los quando adolescentes.

A intriga diante do universo infantil mobilizou pesquisadores e fez nascer teorias valiosas sobre o desenvolvimento cognitivo e afetivo da criança. Dentre essas pesquisas, não podemos negar as contribuições de Piaget ou Vygotsky no campo da psicologia cognitiva. E à psicanálise devemos inúmeras contribuições nos estudos sobre as relações entre a imaginação e a formação da identidade da criança.

Esses estudos permitiram aos educadores e à pedagogia reavaliar o uso dos recursos utilizados na escola, como os jogos, brincadeiras e as histórias infantis. Brincar e contar histórias ganharam novos significados que ultrapassam a idéia de deixar os pequenos intrigados e sossegadinhos por um bom período de tempo.

Constatamos que as brincadeiras e histórias desempenham um papel fundamental no desenvolvimento afetivo e cognitivo das crianças.

Os estudos sobre o jogo infantil possibilitam identificar a construção da função simbólica que se faz através da representação e permite destacar o pensamento da ação.

Segundo Vygotsky, na brincadeira os objetos perdem sua força determinadora sobre o comportamento da criança, pois a ação, numa situação imaginária, ensina a criança a dirigir seu comportamento não apenas pela situação que a afeta de imediato, mas pelo significado destas situações.

A brincadeira fornece um estágio de transição em direção à representação. A chave da função simbólica é a utilização dos objetos como signos e a possibilidade de executar com eles ações representativas.

Na brincadeira, o que é regra torna-se desejo e fonte de prazer, o que no futuro, segundo Vygotsky, constituirá o nível básico da ação e da moralidade.

O desenvolvimento da imaginação associa-se diretamente à aquisição da linguagem, que possibilita à criança imaginar um objeto que ela nunca viu antes, ou seja, a criança aprende a separar-se da ação real através de outra ação, desenvolvendo a vontade, a capacidade de fazer escolhas conscientes e operar com situações que levam ao pensamento abstrato. A ação na esfera imaginativa, numa situação de faz-de-conta, permite a criação da intenção voluntária, de planos de vida real e do que se quer ou se quer ser.

O contato com o lúdico, com o jogo, com o faz-de-conta, neste caso, ultrapassa a idéia de diversão e entretenimento e revela sua importância no desenvolvimento do pensar da criança.

Trabalhando com o Programa Filosofia para Crianças – Educação para o Pensar, não podemos negligenciar a importância do jogo simbólico no universo da criança, o que não significa condicionar as aulas de filosofia às brincadeiras, mas favorecer a transição do pensamento concreto ao abstrato, da imaginação à vontade consciente de suas intenções e implicações.

2. A literatura infantil e as novelas filosóficas

Dada a importância do jogo simbólico no desenvolvimento da criança, não podemos deixar de falar sobre a importância que a literatura infantil tem adquirido na educação.

Se tomarmos o uso e a função da narrativa no universo mítico entre os povos primitivos, devemos reconhecer que o homem se relaciona com o mundo que o cerca, antes pela emoção do que pela razão. No mito há uma tentativa de familiarizar-se com o desconhecido como forma de explicá-lo, ou melhor, acomodá-lo. Não há uma separação entre o natural e o sobrenatural, entre o real e o fictício, entre o eu e outro. Tudo se relaciona ao todo numa esfera de representação simbólica que reflete os anseios, os medos e desejos comuns à humanidade.

Frutos dessa consciência mítica, os contos maravilhosos, as fábulas, as lendas estavam longe ser literatura para crianças. Tratava-se de um conjunto de histórias derivadas das tradições de diversos povos, principalmente os orientais. Tais histórias estavam ligadas aos eternos dilemas que o homem enfrenta ao longo de seu amadurecimento emocional, ao eterno conflito entre o eu e o outro, entre o bem e o mal, o vício e a virtude. A função simbólica destas formas de narrativa permitiu que povos diversos as reconhecessem como um valioso instrumento de persuasão moral ou de legitimação de valores e regras.

A descoberta da racionalidade científica afastou o homem adulto do elemento fantástico. A essa fase mágica, já permeada pela preocupação crítica com a realidade, correspondem às fábulas. Nestas, os animais representam os vícios e virtudes que caracterizam os homens. Compreende-se, então, porque essa literatura acabou se transformando em literatura infantil, embora tenhamos que admitir que as forças da fantasia, do sonho, da imaginação ainda nos fascinam e a indústria cultural sabe bem disso.

Podemos assim, de certa forma, afirmar que tanto na infância da humanidade como na infância propriamente dita, se manifesta uma consciência a-histórica, pois se compreende a vida no presente. Existe aí a diferença entre o viver uma coisa e conhecer uma coisa, entre a certeza imediata derivada da intuição e o conhecimento que resulta da experiência intelectual ou da técnica experimental.

Para comunicar a primeira são adequadas as comparações, os símbolos, as imagens; para as últimas são adequadas as leis, os conceitos, os esquemas. Assim torna-se fácil entender porque a literatura foi usada, desde suas origens, como instrumento de transmissão de valores, assim como é fácil compreender porque essa literatura foi adaptada para as crianças.

Se considerarmos que os valores e padrões sociais, culturais, políticos são essencialmente abstratos, temos que considerar que dificilmente seriam compreendidos por mentes propensas a conhecer através de emoções e experiências concretas. A linguagem literária é a linguagem da representação que pode concretizar o abstrato através de comparações, imagens, símbolos e alegorias. Desde o início da história da humanidade essa capacidade de representação tem sido a mediadora entre a capacidade de percepção intelectual e o amadurecimento da inteligência reflexiva.

Segundo os psicanalistas, o maravilhoso sempre foi e continua sendo um dos elementos mais importantes na literatura infantil. Há na estrutura dos contos de fadas elementos que revelam um maniqueísmo entre o bem e o mal, o belo e o feio, o poderoso e o fraco que facilita às crianças a compreensão de certos valores que regem nossa sociedade; todavia, cabe a cada sociedade decidir o que é bom ou mau, feio ou bonito, justo ou injusto. Ora, se efetivamente queremos considerar as crianças como agentes ativos e transformadores da sociedade, temos que pensar em formas de favorecer a reflexão sobre esses valores, aí a importância de se diferenciar os diversos gêneros da literatura infantil do que denominamos “novelas filosóficas” no Programa de Filosofia para Crianças.

Comecemos com a fábula: podemos dizer que é uma narrativa de natureza simbólica de uma situação vivida por animais, que alude a uma situação humana e tem por objetivo transmitir certa moralidade. Seus personagens são sempre símbolos, representam algo num contexto universal, como o leão símbolo de força ou a raposa símbolo de astúcia.

Afirma La Fontaine “Sirvo-me de animais para instruir os homens... Procuro tornar o vício ridículo por não poder atacá-lo com o braço de Hércules... Uma moral nua provoca tédio: O conto faz passar o preceito com ele, nessa espécie de fingimento é preciso instruir e agradar.”

A lenda é uma narrativa cujo argumento é tirado da tradição. Consiste num relato onde o maravilhoso e o imaginário superam o histórico.

Os contos maravilhosos caracterizam-se por personagens que possuem poderes sobrenaturais que, contrariando as leis, sofrem metamorfoses, defrontam-se com as forças do bem e mal, sofrem profecias que se cumprem, são beneficiadas com milagres; enfim, as narrativas decorrem do mundo da magia onde tudo escapa às limitações e contingências da vida humana e se resolve por meios sobrenaturais.

Os contos de fadas, de origem celta, falam-nos de heróis cujas aventuras estavam ligadas aos mistérios do além e visavam à realização do interior humano, daí a presença da fada, cujo nome vem do verbo latino “fatum” que significa destino. A fada exerce um fascínio especial entre as crianças, pois encarna a possibilidade de realização de sonhos ou desejos.

Os contos exemplares são narrativas breves muito freqüentes na literatura infantil. Registram situações retiradas do cotidiano e encerram uma moralidade, que se institui como exemplo de conduta. Trocam o fantástico pelo realismo.

Os contos jocosos são da mesma natureza que os contos exemplares: narrativas breves e centradas no cotidiano. Diferenciam-se apenas na comicidade, aproximam-se das anedotas, porém possuem uma intencionalidade crítica mais contundente.

Outra forma bastante explorada na literatura infantil são os chamados contos acumulativos. Pequenas histórias encadeadas, muito populares e divertidas, que podem apresentar um desafio à articulação da fala.As crianças geralmente os encaram como um jogo.

Aqui há uma seleção de apenas alguns elementos que compõem as principais formas da narrativa presentes na literatura infantil através de um recorte didático. No entanto, é preciso considerar que a obra é um todo e que essa análise só ganha sentido quando estamos empenhados em conhecer a essência e valor de cada gênero para os objetivos que queremos atingir. Não é possível negar a riqueza da literatura infantil e não considerar sua importância para a formação moral e a construção da identidade da criança. Não resta dúvida de que a literatura infantil não só pode, mas deve estar presente na escola.

Mas será que as principais formas de narrativa comuns na literatura infantil atenderiam aos objetivos do Programa de Filosofia para Crianças?

Poderíamos utilizar todo e qualquer texto narrativo para quaisquer objetivos?

A fim de responder essas questões, seria importante perguntar: com quais finalidades Matthew Lipman, criador do Programa de Filosofia para Crianças, utiliza as “novelas filosóficas” para iniciar as crianças no trabalho de investigação filosófica? Por quê novelas?

Há três formas básicas para o gênero narrativo: o conto, a novela e o romance. Abordarei apenas as características essenciais do conto e da novela, pois são os gêneros que nos interessam de imediato.

O conto, gênero mais utilizado na literatura infantil, corresponde a um fragmento de vida, a um momento significativo que permite ao leitor intuir o todo ao qual aquele fragmento pertence. Tudo no conto é condensado: a história se desenvolve em torno de uma única ação ou situação.

A novela é uma longa narrativa estruturada por várias pequenas narrativas. Essa estrutura permite uma visão de mundo mais complexa que não aponta para um centro principal; daí os diversos acontecimentos se apresentarem independentes e válidos em si. A compreensão do universo como algo heterogêneo e multiforme, onde coisas díspares acontecem ao acaso, corresponde a uma estrutura também heterogênea.

Ora, essa heterogeneidade e a diversidade de situações permitem ao leitor avaliar, comparar e buscar critérios para a solução de problemas ou para seus juízos, alargando o campo conceitual e valorativo.

Mas qual a relação entre a novela, enquanto gênero narrativo, e a filosofia?

Segundo Lipman, a filosofia deve estimular o uso de ferramentas que permitem a reflexão, tais como: o conhecimento dos princípios que sustentam nossas crenças e o reconhecimento dos limites desses princípios, a possibilidade de opor, comparar, aprofundar a investigação considerando múltiplas situações e pontos de vista.

Como fazer esse trabalho com crianças distantes do universo abstrato dos conceitos? Tornando a filosofia constante busca de significados na experiência concreta e cotidiana. O desafio é conciliar as regras da razão com a imaginação criadora de novos significados.

“Geralmente as crianças têm curiosidade sobre o mundo e essa curiosidade se satisfaz parcialmente com as informações factuais e explicações que lhes dêem sobre as causas ou propósitos das coisas. Mas às vezes as crianças querem mais. Querem interpretações simbólicas e não só interpretações literais.

Para isso voltam–se para os jogos, para os contos de fada, para o folclore... Por outro lado, a literatura infantil geralmente é escrita para crianças em vez de pelas crianças... Ao contar uma história devemos saber o que estamos fazendo. O conto de fadas é cativante e sedutor. Ele fascina os ouvintes e encanta desde as primeiras palavras “era uma vez”. Encontramos muito prazer na criatividade com que nos expressamos nessas histórias. Mas será que ao imaginar por elas não estamos privando as crianças da sua imaginação? Se os adultos devem escrever para crianças, deveriam fazê-lo só o necessário para liberar seus poderes literários e imaginativos” (Lipman, A filosofia na sala de aula, p. 59 e 60)

Há pistas aqui para pensarmos que as novelas filosóficas não são apenas algumas estorinhas que servem como pretexto para o diálogo entre crianças, mas sim textos que se abrem ao leitor enquanto reflexão e imaginação.

Nesse caso, não é qualquer forma de narrativa que serviria às finalidades do Programa de Filosofia para Crianças. A narrativa deve atender a uma multiplicidade de visões ou situações que permitam o diálogo entre a obra e o leitor e, posteriormente, entre os leitores que devem recriar e criar o seu pensar em uma comunidade investigativa. As interpretações simbólicas devem criar significados e os significados devem ser multiplicados e analisados pelas ferramentas da razão.

Isso não significa descartar a importância da imaginação no desenvolvimento da criança e torná-las pequenos gênios insuportáveis, mas oferecer uma obra aberta que permita às crianças pensar suas representações e criar soluções para os enigmas que aparecem através de um esforço racional que deve levar em conta a afetividade e o desejo.
Vejamos como isso acontece com a novela “Rebeca” de Ronald Reed: temos na novela elementos presentes no imaginário das crianças, oriundos dos contos de fadas: sapos e príncipes, elefantes que voam, transformações, magia, etc.

O formato da narrativa que pode encantar ou fazer rir, busca problematizar. Realidade e ficção são colocadas sob o prisma da investigação, não há de antemão o certo e o errado, o falso e o verdadeiro, o feio e o bonito. O narrador não só conta, mas pergunta. Chama os leitores ou ouvintes ao diálogo. Desconhece a solução, mas a busca. É essa busca que caracteriza a filosofia e é essa ânsia da busca que queremos incentivar nas crianças.

Por isso temos que escolher criteriosamente os meios para que possamos alcançar os fins que desejamos. O maniqueísmo presente nos contos de fada e a estrutura coesa dos contos infantis podem inserir nossas crianças no universo dos valores e da cultura, podem favorecer o senso estético pela riqueza ou unidade da obra, mas nem sempre são boas ferramentas de problematização e investigação.

Referências Bibliográficas

COELHO, Nelly Novaes. A Literatura infantil: história, teoria e análise. 4ª Edição, São Paulo, Quirom, 1987.

LIPMAN, Matthew. A Filosofia na sala de aula. São Paulo, Nova Alexandria, 1994.

OLIVEIRA, Zilma de Moraes Ramos. L S Vygotsky: algumas idéias sobre o desenvolvimento e jogo infantil. In: Revista Idéias, FDE, 2ª Edição, 1994. Série Idéias, Vol II.

VYGOTSKY, L. S. A Formação Social da Mente. São Paulo, Martins Fontes, 1984.

Pensamento e Linguagem, São Paulo, Martins Fontes, 1993.

Avaliação deste Artigo: 4 estrelas