Aprender com as Diferenças
Marta Gil Consultora na área da Inclusão de Pessoas com Deficiência, socióloga, Coordenadora Executiva do Amankay Instituto de Estudos e Pesquisas, associada à Ashoka Empreendedores Sociais, colaboradora do Planeta Educação e colunista da Revista Reação. Autora do livro “Caminhos da Inclusão – a trajetória da formação profissional de pessoas com deficiência no SENAI-SP” (Editora SENAI, 2012), organizou livros, tem artigos publicados, participa de eventos no Brasil e no exterior. Áreas de competência: Inclusão na Educação e no Trabalho. E-mail: martaalmeidagil@gmail.com.

Pessoas com Deficiência: Indicadores de Acessibilidade? - 13/09/2007
Marta Gil

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Muitos anos atrás, aprendi que a Geologia dá um significado interessante à palavra “testemunho”.

Para esta ciência, testemunho designa formações geológicas, remanescentes de outras eras, fósseis de animais ou mesmo determinados tipos de vegetação, que permitem ler, como em um livro, a história do Planeta, as leis que o regem e os fatos acontecidos em diversos momentos da História. Sua presença indica quais eram as condições de vida naquela época, como era a vegetação, o clima, fauna, flora, presença humana, entre outras informações.

A sua destruição implica, portanto, uma perda irreparável de informação. Uma vez identificado o seu valor, eles se tornam um patrimônio e, como tal, devem ser preservados, estudados e respeitados.

Que tal aplicar esse sentido de “testemunho” às pessoas com deficiência?

Vamos tomar como exemplo uma escola da rede pública, de qualquer lugar do Brasil. Dados oficiais de 20051 evidenciam a inadequação da estrutura física de muitas escolas:

Falta de energia elétrica, de biblioteca, de quadra de esporte e até de sala de aula para acomodar alunos de séries diferentes. Esses são alguns problemas que ainda atingem muitas escolas públicas do país, segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) de 2005.

A pesquisa, realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), mostra que uma em cada seis escolas públicas de ensino fundamental não tem energia elétrica e que cinco em cada seis não têm bibliotecas ou quadras de esportes. A dificuldade é maior na região Norte, onde de cada 10 escolas praticamente oito não contam com biblioteca e quatro não têm energia elétrica. Além disso, em quase metade das escolas há apenas uma sala de aula.

De acordo com a professora da área de Educação da Universidade Estadual do Ceará (UECE), Sofia Lerche, essa escassez de strutura prejudica a aprendizagem dos alunos. (...)

Ora, ao receber um aluno com algum tipo de deficiência, essa inadequação fica gritante, exposta da forma mais nua e crua, por assim dizer. A situação com a qual todos conviviam, pois não viam alternativa, fica insustentável – simplesmente com a presença física da criança (ou jovem) com deficiência, seja ela qual for. Ela se torna, assim, um "testemunho". Nem é preciso falar nada, pois todos percebem que não é possível continuar ignorando as péssimas condições existentes.

No mundo empresarial acontece o mesmo. Imaginem uma multinacional que passou por uma fase de expansão de negócios e que contratou mais funcionários. O restaurante, por exemplo, tornou-se apertado; circular com as bandejas, entre mesas e cadeiras, exige a perícia de um equilibrista. A descontração e o convívio, característicos da hora da refeição, diminuem de qualidade: o barulho da conversa fica muito alto, é preciso comer com os braços junto ao corpo e para cortar o bife é preciso combinar com o vizinho, para ambos alternarem os movimentos.

Agora, imaginem que, em decorrência da Lei de Cotas, essa empresa contrata um cadeirante, por exemplo. Já pensaram como fica a situação no restaurante?

De repente, todos percebem o quanto o espaço está apertado – e já estava, antes da contratação dele.

Nesse momento, a direção da empresa, que até então não tomara nenhuma medida para garantir a qualidade de vida de seus funcionários, suspira e lamenta que "vamos ter que ampliar o espaço", como se o cadeirante fosse o responsável por esse “custo” e sem refletir que os funcionários merecem comer com conforto.

Novamente, o "testemunho" evidencia o que ninguém queria ver: a pouca qualidade de vida que o espaço oferecia.

É interessante notar, nos exemplos acima, que as condições não estavam adequadas para ninguém, independentemente da existência da deficiência. Mas havia uma inércia, uma atitude de "deixa estar para ver como fica". A chegada de uma pessoa com deficiência impossibilita essa acomodação.

Aí está uma das raízes do preconceito, da discriminação e, em casos extremos, até mesmo da exclusão sumária, como aconteceu na Alemanha nazista. As pessoas com deficiência são “testemunhos” de nossa fragilidade humana, da inadequação de nossas cidades, da inoperância de nossa legislação, de nossa acomodação frente ao que deve ser mudado. Isso incomoda.

Por que não inverter a situação da negação, do preconceito e encarar a inclusão (e todos os desafios que ela nos propõe) como uma oportunidade de ouro para nos remeter à nossa verdadeira dimensão humana, respeitando e valorizando a nossa diversidade? A inclusão pode ser um convite para reinventar a realidade.

Atualmente, são construídos indicadores para medir a qualidade de vida das cidades; da saúde, da qualidade de ensino, de rendimento escolar e outros.

Por que não considerar a presença da pessoa com deficiência como um dos componentes do Indicador de Acessibilidade?

Se adotarmos esse Indicador, a presença da pessoa com deficiência passa a ser um testemunho de acessibilidade: ao encontrá-la em um teatro, uma loja, uma empresa, sabemos que esses são locais acessíveis; sua presença na sala de aula indica um ensino para todos; os sites que ela acessa mostram que seguem os critérios de acessibilidade digital e, portanto, oferecem navegação autônoma.

É chegado o momento de fortalecer a eqüidade, a solidariedade, a justiça, a dignidade, para construir a Sociedade para Todos, onde os "testemunhos" sejam companheiros de estrada e coparticipantes.

1 http://www.famem.org.br/Pagina3871.htm

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