Resposta no Grupo Síndrome de Down - 27/06/2007
Aprender com as Diferenças
Prezados Leitores:
Após a publicação do artigo “Vaticínios Trissômicos”, de Fábio Adiron na lista do Grupo Síndrome de Down e no Planeta Educação, ele recebeu uma resposta que vale a pena compartilhar. Devo confessar que ao terminar a minha leitura fiquei muito impressionada com mais e mais provocações que foram lançadas, que complementam e enriquecem as já enviadas pelo Fábio.
Boa leitura para todos!
Elisete Baruel .
Olá a todos:
A mensagem que o Fabio envia, esses vaticínios me inquietam, pois serão mesmo vaticínios (predições, profecias)? Não deveríamos desde já apostatar (desertar da fé, mudar de religião) e propor novas fundações para a tal verdade lejêunica (de Jerome Lejeune, pesquisador francês que identificou a origem genética da síndrome de Down)?
O que realmente nos diz esse decálogo (dez mandamentos, conjunto de dez leis ou princípios morais, filosóficos, etc) abúlico (que sofre de abulia, alteração que se caracteriza por diminuição ou supressão da vontade)? Desculpem-me a manifestação tardia, mas a mensagem do Fábio é complexa, na sua natureza e significado. Dar a ela uma resposta também significativa é difícil e também exige preparação. Ao contrário das manifestações já enviadas ao grupo, vejo a mensagem que o Fábio envia ao grupo com sinais de preocupação, já que soa como um desabafo, em que há uma raiva incontida, que com grande maestria filosófica e literária expõe com fina ironia, que certamente espetaria agudamente alguns de nossos brios e crenças.
Talvez aí estivesse sua intenção, espetar-nos para que de repente acordássemos de um delírio que vamos vivendo e que de algum modo essa lista alimenta. Reconheço na mensagem do Fábio a justa raiva. É justa a raiva que protesta contra as injustiças, contra a deslealdade, contra a discriminação. O que a raiva não pode é perder-se em raivosidade correndo o risco de alongar-se em odiosidade.
Reconheço a raiva, mas não consigo claramente ver o que a origina e porque de repente presentea-nos com um desabafo tão bem elaborado e apresentado? Para quem se dirige esse desabafo? Indiscriminadamente a todos nós, ou haverá entre nós aqueles que seguem a risca as determinações nele contidas, agindo irrefletidamente e propalando as centenas de computadores aqui conectados as benesses de ser leviano, inconseqüente, de testar em pessoas-objetos-trissômicos "novidades científicas", dietas e medicamentos miraculosos, estímulos sem significado, produtos aprovados e comercializados especialmente para Down?
Reconheço claramente que há mesmo um universo a que se dirigem as palavras do Fábio, que é um universo que cerca as pessoas com síndrome de Down, e que as coloca no centro desse universo, recebendo todas as atenções e intervenções possíveis e imagináveis, porque se acredita que é assim que deve ser. Nesse universo, a pessoa com síndrome de Down é deficiente, atrasada, retardada, doente, subnormal. Por isso, todas as ações se dão no reconhecimento dessa doença, desse atraso, dessa subnormalidade, e essas ações repetidamente ecoam por essa lista, e faz parecer que esse universo é uma ordem natural das coisas, que essa é mesmo a realidade, quem está procurando construir outro "universo" está fugindo da realidade, está louco ou insano.
Nesse sentido, o Fábio está mesmo insano, e seus vaticínios trissômicos são clara manifestação de loucura. Está louco por que consegue ver o universo de outra maneira e nós, pais ou professores, formamos parte desse universo, com outras pessoas. Ao atuar em direção às pessoas, estamos produzindo deficiência e aí está o vaticínio: o síndrome de Down não aprende, não desenvolve vida autônoma, não lida com o abstrato, não faz cálculos matemáticos, não se organiza no tempo, etc. O mandamento mais tresloucado do Fabio Adiron, retirado nas entrelinhas de sua sintomatologia alucinada é um só, e falando sem ironia: Não se intervirá na pessoa, a intervenção estará dirigida ao universo que cerca a pessoa, ao contexto.
Somos parte desse contexto e a diferença em produzir a deficiência ou a competência está em nossa atuação nesse contexto. Mudar um contexto produtor de deficiência para um contexto produtor de competência não é uma coisa simples. Não é simples, porque envolve a necessidade de reconhecermos nossa responsabilidade e envolve o nosso compromisso em transformar nós próprios em pessoas capazes e competentes.
A postura de resignação, fatalista, é confortável: é a carga genética, o atraso da medicina que não anula o excesso de informação genética, a inexistência de agentes farmacológicos que coíbam seus efeitos, tudo, tudo para explicar e entender que a deficiência existe e está ali. A postura contrária é mais difícil, implica modificar uma cultura médica, pedagógica, psicológica e sociológica na qual estamos imersos. E a água que nos afoga é turva, é preciso emergir para ver mais claro.
A loucura do Fábio é ter emergido e visto o universo claramente. E daqui, olhar o universo dos afogados realmente causa muita inquietação. Por que não sobem aqui e vêem como pode ser? ("saiam da lama").
O que terá tornado o Fábio insano?
E qual será a receita da tamanha sana loucura?
Porque todos não compartilhamos com ele toda essa loucura, de estar em um universo que percebe a competência, a normalidade, a saúde, a capacidade?
Porque faço tantas perguntas? Por que o Fábio não as responde, ao invés de expressar-se com tamanha raiva e demasiada ironia? Estamos aqui mais de mil computadores conectados ao que escrevemos, e todos imersos numa cultura que nos turva a visão, a que vê as pessoas portadoras de síndrome de Down como deficientes. Embora turvo, o que vemos nos parece à realidade, e nas nossas mensagens, realimentamos essa realidade, ao dizer para o outro que comigo também foi assim, a síndrome de Down é assim, o fulano Down vai ser como o beltrano Down.
Os vaticínios trissômicos do Fabio são um convite à reflexão, a cada um dos mais de mil computadores aqui conectados. Ao acabarem de ler uma mensagem reflitam, pensando que a pessoa que está ao seu lado, portadora de síndrome de Down é uma pessoa, tenha ela dois meses ou trinta e dois anos. As pessoas têm uma enorme capacidade de superação e de adaptação ao contexto. É necessário que se confie nessa capacidade, para que superem as profecias para ela determinadas, sob a pena de que realmente se confirmem. Está em nossas mãos construir esse universo que percebe a competência, confia nela e a constrõe cada dia.
Esse é o meu vaticínio.
Um abraço a todos,
Gil Pena.
Gil Pena: Sou Médico anátomo-patologista e tenho me dedicado ao estudo da educação e da cultura da diversidade, principalmente na linha do Projeto Roma, orientado pelo Prof. Miguel L. Melero, da Universidade de Málaga. Tenho pequenos artigos publicados na área de educação:
Pena GP; Andrade - Filho, JS – Implicações cognitivas, filosóficas e educativas do trabalho do patologista. Revista Brasileira de Educação Médica, v. 30, n. 2, p. 76-86.
Abreu, VM; Arnaut, LH; Drumond, TM; Pena GP – Una búsqueda desde Brasil. – Cuadernos de pedagogia (Barcelona), n. 346, p. 74-76, mayo, 2005.
Pena GP; Andrade-Filho, JS – O patologista e o ato de diagnosticar. Jornal O Patologista, Sociedade Brasileira de Patologia, ano 25, n. 87, p. 8-9, janeiro/fevereiro/março, 2007.
1 jose de souza andradefilho - belo horizonte mg
Acabo de ler e aprender coisas nos textos acima que nunca surgiram no meu aparelho psíquico cheio de viseiras adquiridas neste mundo displásico. Estou satisfeito e deixo registrado o meu apoio. Com admiração,JSAF.
20/09/2012 22:00:47
2 Norma - Santa Inês Ma.
Uma leitura como essa, com certeza, nos torna um pouco melhor. É um alimento para a nossa alma. Obrigada!
30/04/2009 17:17:27
3 Paulo César de Oliveira - Londrina
Gil, espero que tenha oportunidade de ler esse comentário. Não porque eu seja bom de escrita. O que ocorre é que você fala o que não conseguimos falar. Se os vaticínios do Fábio mostram tudo o que demonstra em sua resposta, seu texto tem o valor de desnudar totalmente - e com clareza que chega a doer - essa realidade tão difícil de superar, seja o fato de olharmos tão friamente apenas para a deficiência (mesmo sem querer, mesmo buscando o contrário). O medo de acreditar em outras possibilidades nos congela. Somos uma sociedade amendrontada pelos estereótipos, talvez. Enrijecida pelos preconceitos, a tal ponto que negamos as capacidades ou não sabemos como enxergá-las na diversidade.
Obrigado pelo seu olhar.
31/07/2007 04:37:26
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