De Olho na História
João Luís de Almeida Machado é consultor em Educação e Inovação, Doutor e Mestre em Educação, historiador, pesquisador e escritor.

O alimento de Deuses e de homens - 18/06/2007
Coluna

'

 Foto de trigos

O trigo está entre os alimentos consumidos há mais tempo pela humanidade, estimando-se que a sua utilização regular entre os homens tenha se iniciado há mais de cinco mil anos. No início ainda era explorado a partir de suas bases silvestres, mas o advento das técnicas agrícolas, ainda no período neolítico, confirma tanto esse cereal da família das gramíneas quanto o centeio, como os mais antigos aliados vegetais dos homens em sua luta contra a fome.

Catherine Perlés em seu artigo As estratégias alimentares nos tempos pré-históricos afirma que a comprovação da existência e importância do trigo e do centeio na alimentação humana na Pré-História pode ser percebida pela “abundância de mós de pedra e o cuidado a elas dispensado” nas vilas e casas encontradas por arqueólogos e antropólogos que estudam o neolítico.

O advento de técnicas que permitiam aos homens obter ciclicamente seus próprios alimentos aliado aos procedimentos de domesticação e criação de animais foram decisivos para que a humanidade deixasse de ser nômade e se tornasse sedentária, criando suas aldeias, gerando o surgimento e aperfeiçoamento de uma produção artesanal regular e motivando ainda as trocas que redundariam no comércio. Pode-se certamente atribuir ao trigo um importante e decisivo papel nesse contexto de mudanças.

No Antigo Egito tanto o trigo quanto a cevada e a espelta foram utilizados para a produção de farinhas que resultavam em pães, bolachas e bolos desde o século V antes de Cristo. A diferenciação quanto ao consumo de uma ou outra espécie dos cereais mencionados refere-se ao custo e a valorização de cada um deles nos movimentados mercados egípcios. Nesses quesitos o trigo era considerado o mais nobre e, portanto acabava sendo o mais caro, destinado à mesa das famílias abastadas. A espelta e a cevada eram, por sua vez, direcionadas ao consumo popular.

Mosaico
Mosaico do século V, localizado no solo de uma antiga igreja e mosteiro em Tabgha, na costa norte do mar da Galiléia, próxima da região onde Jesus discursou sobre o pão da vida para 5 mil pessoas.

Era usual que os egípcios daquela época fabricassem em suas próprias casas a farinha que iriam consumir. Para realizar essa tarefa era comum que eles triturassem os grãos de seus cereais em almofarizes de pedra para depois realizar a moagem em blocos de pedra inclinados. Depois dessa etapa passava-se a farinha em peneiras. Como o processo era extremamente rudimentar era comum que pedaços de minerais provenientes das pedras da moagem ficassem misturados à farinha. Isso explica de certa forma, o desgaste dos dentes dos egípcios verificado em múmias encontradas nas escavações arqueológicas.

Os hebreus foram igualmente consumidores do trigo. Essa planta faz parte de seus rituais sagrados ao lado do vinho, do azeite, do mel e do leite. Compõe em terras do Oriente Próximo (ou Ásia Menor) um dos elementos básicos da alimentação local tendo como parceiros o fruto das oliveiras, os laticínios produzidos a partir de ovelhas e cabras, o néctar dos deuses extraído das uvas e ainda algumas frutas como os figos e as romãs.

Mesmo os povos que não possuíam grande tradição agrícola e que se destacavam mais como comerciantes, situação em que se encontram os fenícios e os cartaginenses (chamados por Hecateu de Mileto de “comedores de trigo” devido à importância desse alimento para a sua dieta), também eram consumidores do Triticum Vulgare (nome científico) e baseavam boa parte de sua alimentação no uso desse cereal e de seus similares mais baratos como o centeio, a espelta ou a cevada. Existia alguma produção em seus próprios territórios, entretanto ela era irrisória para as necessidades de sua população. Isso fazia com que tanto a Fenícia quanto Cartago importassem boa parte de seus estoques alimentares do Egito ou ainda da Grécia.

Mosaico
Mosaico romano produzido por autor desconhecido entre os séculos III e V, retratando uma cesta com pães, encontrado em Tunis (Tunísia) no norte da África, possessão romana durante o período imperial. Essa obra faz parte da coleção do Museu do Brooklyn, em Nova Iorque (EUA).

É importante destacar, no entanto, que esses povos foram imprescindíveis para que os produtos do norte da África, Ásia e Europa pudessem circular pelos quatro cantos do mundo conhecido até então. Nesse sentido, foram responsáveis pela disseminação do hábito de consumo do trigo e de seus derivados assim como de outros alimentos que eram exclusivos de certas áreas e que depois de sua ação comercial se globalizaram.

O consumo de trigo (através dos pães) e das uvas (enquanto vinhos) tornou-se, algum tempo depois, entre os artífices do mundo clássico antigo, os gregos e romanos, um diferencial entre civilização e barbárie. Tanto os habitantes dos Bálcãs quanto os da península itálica utilizavam a agricultura e a capacidade de transformar os alimentos como elementos que comprovavam sua superioridade sobre os demais habitantes da Europa (especialmente a Oriental e a Central) que continuavam a caçar, pescar ou ainda produzir na agricultura apenas o suficiente para sua subsistência.

Outro aspecto notável da inserção dos alimentos na dieta dos povos da Antiguidade Clássica refere-se à preocupação de gregos e romanos em criar uma alimentação que fosse saudável. Há um destaque todo especial ao consumo dos cereais, por exemplo, nos escritos do médico grego Hipócrates. Nesse sentido Hipócrates contribui para que saibamos que o trigo era utilizado para fazer o pão, enquanto a cevada ficava relegada a produção da maza. O trigo era também usado em bolos e feito por padeiros que realizavam desde a produção da farinha até a finalização do processo com a produção dos pães levedados. Há de se destacar, entretanto, que o mais comum entre os helenos era que o pão nosso de cada dia fosse fabricado em casa e não por especialistas em suas próprias lojas.

Entre os romanos o trigo adquire uma outra particularidade bastante própria e interessante, torna-se o alimento nacional por excelência e é politicamente explorado pelos imperadores para fazer sua popularidade crescer entre a plebe. O afluxo de grandes quantidades desse cereal em mercados romanos torna os preços da farinha de trigo mais e mais baixos. Some-se a isso o fato de que o estado romano congelava os preços e pagava como subsídios as pequenas margens de lucro dos agricultores que desenvolviam essa cultura.

Acreditavam os romanos que o trigo, uma vez colhido, ainda se mantinha vivo, pois era capaz de dar origem a uma nova planta caso fosse semeado. Tanta valorização esclarece o quanto essa planta era importante e destacada na alimentação dos senhores do “Mare Nostrum” (o Mar Mediterrâneo). Entre os soldados romanos, a título de exemplificação, fica ainda mais patente a relação de proximidade com o trigo já que os legionários do império eram essencialmente comedores de pão, tanto que carregavam em suas mochilas a farinha e faziam seus próprios pães.

Desenhos de trabalhadores lidando co trigo
Iluminuras do Calendário do Livro das Horas, manuscrito do século XVI, retratando práticas de trabalho medievais predominantes na Europa Ocidental no manuseio e trabalho com cereais como o trigo e a transformação dessas matérias-primas em pães.

Diferentemente do mundo clássico romano, a Idade Média verá a ascensão dos cereais menos nobres como a cevada, a aveia, o milhete e o centeio que se tornam então as principais fontes de subsistência dos servos camponeses. Esses alimentos serão utilizados como base para a produção de papas e sopas. Ao trigo ficará reservado o papel de protagonista na mesa dos nobres e dos membros do clero, situação que se estenderá por todo o medievo e também pela modernidade. Servirá o frumentum para a produção de requintados e saborosos pães e bolos.

Na esteira da urbanização verificada durante a baixa Idade Média e mediante o enorme sucesso granjeado pelo trigo perante os habitantes das cidades da Europa desse período ocorre à evolução de um importante veículo de difusão dos alimentos derivados desse cereal, as padarias. Era comum que os padeiros da época produzissem três variedades do pão de trigo. Essa distinção tinha o claro objetivo de atender a demanda de diferentes substratos sociais medievais: a elite formada pela nobreza e pelos ascendentes burgueses; os funcionários públicos e proprietários de estreitas faixas de terra; e, por fim, uma variedade mais simples destinada ao populacho, à ralé nos conformes da época.

O advento dos novos tempos, marcados pela transição para a modernidade, traz produtos de além-mar que se incorporam ao cardápio europeu sem, no entanto, ameaçar a primazia do trigo e dos demais cereais, estabilizados como matrizes alimentares do Velho Continente. Como destaca Jean-Louis Flandrin, “o pão não é apenas um alimento popular: era o alimento por excelência”. Nesse sentido cabe aos cereais e, principalmente ao trigo, a primazia nos campos, comércios e mesas européias modernas. Mantém-se a distinção entre ricos e pobres, com o pão de frumento nas mesas abastadas e o pão preto, de cereais considerados inferiores, alimentando aos mais humildes.

Plantações de batatas somente começam a ameaçar a primazia dos trigais em contextos especificamente marcados pela penúria de perdas agrícolas, ciclos de fome e dificuldades naturais a prejudicar a economia agrária. São os casos da Irlanda ou de alguns países da Europa Central e Oriental, como a Polônia e a Alemanha, ainda divididas em pequenos reinos e principados, que abrem a brecha para que o pão de batata, seus caldos e sopas possam suplantar o wheat bread (pão de trigo em inglês), ao menos temporariamente.

Aliementos feitos com trigo
A panificação virou uma arte nos dias de hoje e utiliza vários produtos para que novos produtos sejam criados e se tornem itens de consumo diário. Nesse cenário de crescimento do setor, o trigo continua sendo o item mais importante e regular.

Mesmo diante da concorrência desses novos produtos vindos da América ou dos demais continentes, o advento de tecnologias e equipamentos que revolucionaram a produção agrícola a partir da Revolução Industrial do século XVIII e XIX permitiu a expansão das áreas de plantio na Europa e, alguns anos ou décadas depois, nas outras regiões do planeta.

Não só as terras cultivadas aumentaram de extensão como também a produtividade se expandiu, atingindo níveis cada vez mais altos a partir das novas incorporações de insumos a produção no campo. A expansão permitiu que as fronteiras alimentares se expandissem enormemente e que alimentos típicos de regiões de diferentes climas, relevos ou tradições agrárias se disseminassem mundo afora.

O que poderia significar a diversificação dos hábitos de consumo de alimentos, entretanto não aconteceu. A tendência a consolidar e expandir o domínio de alguns alimentos sobre a grande maioria foi o que se verificou. Os alimentos civilizacionais como o milho, o arroz e, principalmente, o trigo foram os que se espalharam e criaram verdadeiros impérios onde estão no comando até os dias de hoje. Deve-se ainda destacar que entre todos eles, a primazia mundial ainda é do trigo.

O frumento contemporâneo é consumido sob a forma dos mais variados tipos de pães que a humanidade já conheceu. Se não bastasse isso, se tornou a principal matéria-prima de uma das maiores paixões gastronômicas mundiais, as massas (espaguete, ravióli, talharini, pizzas, canelones,...). Come-se o trigo no pão francês comprado logo pela manhã quando são abertas as portas das padarias, na massa dos pastéis vendidos pelos ambulantes das grandes cidades, nas receitas variadas e deliciosas de molhos que dão nomes as massas das melhores cantinas ou ainda no pão do hambúrguer comprado em qualquer rede de fast-food.

Essa prevalência do trigo me faz lembrar uma cena do laureado filme “Titanic”, de James Cameron, em que o personagem de Leonardo Di Caprio, acompanhado por Kate Winslet, na proa do navio, grita a plenos pulmões que é o senhor do mundo. Essa é justamente a situação do trigo na alimentação mundial...

Avaliação deste Artigo: 3 estrelas
COMPARTILHE

DeliciusDelicius     DiggDigg     FacebookFacebook     GoogleGoogle     LinkedInLinkedIn     MySpaceMySpace     TwitterTwitter     Windows LiveWindows Live

AVALIE O ARTIGO





INDIQUE ESTE ARTIGO PARA UM AMIGO










3 COMENTÁRIOS

1 angela maringoli kitzinger - S.P.
Sou mestranda da UMESP em Ciencias da Religião gostaria de mais material sobre alimentação no A.T., pesquiso a fome em Belém cidade do pão, no livro da moabita Rute no A.T., a questão do respingar, deixar o alimneto para os pobres, e as 6 medidas de cevada. O material foi de valia. Obrigada Ângela.
18/09/2009 11:48:21


2 julia gomide sailva - rib preto
legal
24/06/2008 10:47:31


3 RONALDO ALMEIDA BARRÊTO - BOA VISTA - RR
Excelente artigo. São matérias deste nível que nos leva a compartilhar com os amigos a qualidade dos conteúdos que apreciamos neste site. Um abraço e parabéns. Ronaldo
31/07/2007 23:18:37


ENVIE SEU COMENTÁRIO

Preencha todos os dados abaixo e clique em Enviar comentário.



(seu e-mail não será divulgado)


Os conceitos e opiniões emitidos em artigos assinados são de inteira responsabilidade dos autores.