A Semana - Opiniões
João Luís de Almeida Machado é consultor em Educação e Inovação, Doutor e Mestre em Educação, historiador, pesquisador e escritor.

Os excessos da paixão - 09/05/2006
O fanatismo que mata e destrói

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Deixem a bola rolar...

Sempre fui orientado pelos meus pais e por pessoas mais velhas que qualquer tipo de excesso leva, invariavelmente, a prejuízos. Se comermos chocolate ou camarão em quantidades muito grandes iremos padecer de dor de barriga, podemos sofrer algum tipo de contaminação alimentar ou, na melhor das hipóteses, teremos uma digestão lenta que irá prejudicar nosso apetite e alimentação em outras refeições.

Quando somos adolescentes e nos apaixonamos perdidamente por um(a) colega de escola sofremos como se isso fosse causar a nossa morte se não somos correspondidos na medida que desejamos. Nem mesmo os alertas de nossos pais que a todo o momento nos dizem que iremos gostar de algumas outras pessoas e que a nossa cara-metade só irá ser descoberta alguns anos depois nos tira desse solitário sofrimento.

Há um outro excesso que machuca muito e que, como os demais apresentados anteriormente, não deveria ser levado tão a sério. Falo aqui da paixão pelo futebol e por suas agremiações. Posso até ser incompreendido já que estamos no país do futebol, de tantas glórias, jogadores, títulos, clubes grandes e histórias para contar.

O que pretendo, no entanto, é chamar a atenção de pais, educadores e comunidade em geral para uma questão de grande importância. A violência que impera nos gramados só poderá ser contida se formos capazes de nos relacionar de uma forma mais saudável, menos “caliente” e certamente muito menos intensa com esse formidável esporte. Está faltando um pouco mais de inteligência nessa relação...

O que deveria ser apenas um lazer, um entretenimento, uma forma de extravasar o stress e as emoções reais do cotidiano se tornou para muitas pessoas o centro de suas vidas, o eixo ao redor do qual seu mundo se rotaciona, o sol que ilumina e aquece suas pobres existências.

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Não queremos violência, queremos bola na rede...

Sim, pobres existências, pois uma pessoa que é capaz de agredir, destruir, expor sua raiva de forma extrema, demonstrar real ódio por seus adversários e até mesmo matar precisa muito de apoio por parte de seus familiares e até mesmo de especialistas como psiquiatras e psicólogos.

Não há justificativa para a selvageria que as torcidas organizadas têm promovido nos estádios brasileiros sempre que seus times têm resultados negativos. A derrota de hoje será superada pela vitória de amanhã. O 6º ou 13º lugar na tabela de um campeonato podem ser esquecidos com ótimas campanhas que acontecerão em outros eventos.

Entretanto penso que não são apenas as organizadas que promovem a bandalheira que pudemos ver no Pacaembu e no Morumbi na semana passada. Eles são apenas a mais visível ponta desse enorme iceberg prestes a abalroar o navio em que nos encontramos.

Há, nas escolas, praças públicas, fábricas, escritórios, lojas e em praticamente todos os locais públicos e privados onde coexistem pessoas de diferentes “crenças” futebolísticas um excesso de futebol que deve ser contido. As pessoas vivem o futebol tão intensamente que cultivam, por exemplo, o pernicioso hábito de provocar demasiadamente seus oponentes quando os clubes pelos quais estes outros cidadãos torcem são derrotados.

Não estou dizendo que as brincadeiras tenham que ser abolidas. Não acho que as saudáveis troças entre corintianos e palmeirenses, vascaínos e flamenguistas, atleticanos e cruzeirenses e tantos outros rivais dessa tão rica história do futebol brasileiro devam desaparecer. Elas também fazem parte do folclore futebolístico e animam o debate.

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A torcida é parte do espetáculo desde que
não promova a violência e excessos.

O que não podem acontecer são os excessos. O que não deve ocorrer é o prolongamento dessas brincadeiras até o ponto que ocasiona a exaustão, o nervosismo, a reação desmedida, a agressão ou até mesmo a morte. Temos que virar o disco, continuar nossas vidas, falar sobre política, economia, arte, educação, saúde, novelas, músicas,...

Na última quinta-feira à noite, quando o Corinthians foi derrotado pelo River Plate da Argentina senti vergonha de ser corintiano, de ser brasileiro, de gostar de futebol. Não pela derrota, amarga, mas tragável, corriqueira como a vitória, passageira como uma dor de cabeça ou uma sensação de felicidade extrema.

As derrotas fazem parte do aprendizado de nossas vidas. São dolorosas, difíceis de engolir em alguns casos, mas temos que as vivenciar para que dias melhores possam surgir. Isso não quer dizer que nossos esquadrões serão imbatíveis um dia, nem o Santos de Pelé ou a Seleção de 1982, com Sócrates, Zico e Falcão conseguiram atingir tal perfeição.

A vergonha foi resultado da violência desmedida desferida por parte dos torcedores que estavam no Pacaembu naquele dia (será que essas pessoas merecem ser chamadas de torcedores e confundidas com cidadãos decentes que ali estavam em busca de uma oportunidade de diversão e lazer?).

Agressões desmedidas, tentativas de invasão de campo, confronto com a polícia militar (que foi brava, corajosa e eficiente). Bravatas desferidas contra jogadores, dirigentes, comissão técnica. E o que pretendiam esses bárbaros que tentaram entrar no campo? Iriam bater nos atletas? Agrediriam o técnico e os dirigentes? Apelariam contra os adversários? Tentariam matar o juiz e os auxiliares?

O saldo final foi extremamente negativo. Os feridos foram encaminhados para os hospitais da região; os jogadores, assustados, saíram do estádio apenas de madrugada; os dirigentes saíram de mansinho para evitar os xingamentos e agressões dos torcedores; a confederação sul-americana provavelmente irá penalizar o Corinthians em outras competições internacionais; os prejuízos no estádio terão que ser pagos pela direção do clube...

Foto-do-Pelé-comemorando
O Brasil tem que se lembrar de seus craques, grandes jogos
e conquistas. Abaixo a violência nos estádios...

E o resultado do jogo, mudou? Claro que não. E os compromissos que todos tinham no dia seguinte, deixaram de acontecer? Obviamente não. A vida continuou para todos, mesmo para os que foram hospitalizados...

Esporte é saúde. Futebol é prazer. Quem vai aos estádios para brigar ou promove qualquer tipo de animosidade entre torcedores não compreende o que significa um espetáculo esportivo como aqueles que temos em nossos estádios. Não percebe que a riqueza desse esporte no Brasil é tão grande que vivemos ciclos de grandeza por parte de nossas maiores agremiações.

Quem pode se esquecer do Santos de Pelé que conquistou o mundo nos anos 1960? Dá para esquecer o Cruzeiro de Tostão e Dirceu Lopes ou o Internacional de Falcão nos anos 1970? E as grandes vitórias do Flamengo de Zico e Júnior na década de 1980? E o São Paulo de mestre Telê, ele mesmo um ardoroso defensor do futebol-arte, da não violência no futebol.

Há poucos anos vimos o Palmeiras de Luxemburgo ganhar todos os campeonatos mais importantes do Brasil. No final dos anos 1990 foi a vez do Corinthians seduzir os torcedores com suas realizações e seu belo time. O século XXI viu a ascensão do Atlético Paranaense, do São Caetano, do novo Santos, do São Paulo,...

Pena que essa história vitoriosa dos nossos campos seja maculada pela ignorância do fanatismo que destrói, dos excessos que agridem, das torcidas que matam. Pena que nossos dirigentes não sejam profissionais o suficiente para realmente organizar o nosso futebol.

Se assim acontecesse, as palavras de um importante dirigente argentino se tornariam realidade. Disse ele (provavelmente com dor no coração e tendo que engolir seu orgulho, pois o país vizinho também é uma das grandes escolas futebolísticas do planeta) que se o Brasil fosse organizado provavelmente se tornaria praticamente imbatível... Acho que nunca chegaremos lá com tanta incompetência e ignorância... Espero que eu esteja errado e venha a “morder minha língua”...

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