Diferença de Perspectivas - 17/11/2004
Até onde a Educação pode nos levar?
Raimundo abre as cortinas de sua casa e ao olhar pelas janelas vê um emaranhado de fios, com várias ligações clandestinas ligando as casas de compensado de madeira a rede elétrica e telefônica; escuta na casa da vizinha, colada a sua, o barulho de três crianças pequenas se deslocando pelos cômodos apertados; observa pela fresta da porta de sua casa como há vários homens no bar do seu Antônio, tomando cerveja, jogando bilhar, comendo aperitivos, isso tudo antes das dez horas da manhã. O menino Raimundo hesita em pegar a mochila puída onde estão seus cadernos, livros, lápis, canetas e borrachas. Será que ir a escola irá me ajudar a melhorar de vida?
Bruna acorda ao som do despertador. Levanta-se e caminha lentamente em direção ao banheiro. Lava o rosto, penteia os cabelos, escova os dentes e rapidamente troca de roupa. Desce as escadas do belo sobrado onde mora, num bairro de classe média alta e se encaminha para a cozinha, onde Matilde já a espera com o café quentinho e o pão recém-saído do forno da padaria da esquina. Seu irmão Rafael demora-se um pouco mais para chegar, mas o horário do transporte que os leva para a escola é rigoroso e eles não podem se atrasar. Seus pais tomam café rapidamente e se encaminham para seus trabalhos quase na mesma hora em que as crianças saem para a escola.
Os mundos de Raimundo e de Bruna se cruzam quando sabemos que Matilde é mãe do menino que está sozinho num barraco de uma das maiores favelas de São Paulo e do Brasil. A mãe de Raimundo acorda antes das cinco da manhã, se arruma rapidamente, mal consegue se despedir do filho ainda sonolento e do marido que segue rumo ao balcão de empregos, em busca de oportunidades num mercado cada vez mais cruel com aquelas pessoas que não estudaram.
Felipe e Mariana, pais de Bruna e Rafael, completaram seus estudos em diferentes escolas, localizadas em regiões nobres do município mais rico do país. Se conheceram na universidade onde se preparavam para carreiras de sucesso no ramo dos negócios e da educação, ele como um prestigiado economista, ela na função de coordenadora numa faculdade particular.
A falta de condições adequadas de vida obriga as famílias carentes a tirarem suas crianças
da escola e faz com que elas sejam lançadas precocemente no mercado de trabalho informal,
isso faz com que elas se atrasem em seu processo formativo e que, em muitos casos, não voltem a estudar.
Matilde mal completou as séries iniciais do primário (atual ensino fundamental). Sabe ler e escrever com alguma dificuldade, mas para ela é suficiente já que utiliza esses conhecimentos apenas para escrever recados ou anotar os mantimentos que estão faltando na despensa. Marcos, pai de Raimundo, migrou para a capital paulista quando ainda nem tinha completado vinte anos de idade. Sua experiência até então se restringia ao trabalho no campo, na lida com animais como bodes, galinhas e vacas ou ainda no plantio de algodão, cacau e algumas outras variedades cultivadas em sua terra natal, Pernambuco. Nunca teve a oportunidade de estudar.
Na cidade grande, quando as obras contratavam operários sem muita especialização, Marcos aprendeu os ofícios de servente, pedreiro, ferreiro e até marceneiro. Sempre foi muito elogiado pelos mestres e engenheiros com os quais trabalhou. Entretanto, as obras minguaram, as exigências aumentaram, os riscos passaram a ser mais calculados e, como conseqüência de tudo isso, as chances de trabalho foram se tornando cada vez mais escassas. Com o pouco dinheiro que conseguia nos eventuais bicos que fazia, Marcos ajudava a pagar as contas de casa, fumava seus cigarrinhos e ainda conseguia tomar uma branquinha na venda do seu Antônio.
Estudar é atividade que exige concentração, esforço e constante atualização.
O incentivo e o
exemplo da família é fundamental para que essa atividade se torne
parte constante e importante do cotidiano de crianças e jovens.
Felipe e Mariana, antes de se formarem, como expoentes de suas turmas de graduação, conseguiram estágios em empresas referenciais para as profissões que escolheram. Começaram a fazer um pé de meia para comprar um pequeno apartamento onde iriam iniciar sua vida a dois. Casaram-se e continuaram estudando ao mesmo tempo em que trabalhavam arduamente atrás de promoções e reconhecimento. Ele fazia pós-graduação, ela já partia para um mestrado por ter intenções de permanecer no meio acadêmico. Felipe prosseguiu sua formação ao fazer uma MBA por uma das mais conceituadas universidades paulistas. Mariana parou durante algum tempo para realizar o tão acalentado sonho da maternidade, com os nascimentos de Bruna e de Rafael num período de três anos, quando continuou trabalhando em regime de meio período.
Raimundo foi o motivo do casamento apressado de Marcos e Matilde. Na verdade eles não chegaram a oficializar a relação, e mal tiveram condições de encontrar um lugar onde pudessem se acomodar e esperar a criança nascer. Matilde não pôde fazer o pré-natal e trabalhou como faxineira durante boa parte da gestação. Semanas depois do nascimento de Raimundo, ela já estava de volta ao batente e deixava o menino com uma das irmãs de Marcos, recém-chegada de Pernambuco e ainda desempregada. Quando sua cunhada conseguiu emprego, ela passou a deixar o pequeno Raimundo com a vizinha, Dona Esperança, uma senhora de setenta anos de idade.
Muitas foram às vezes em que faltou dinheiro para o leite ou para o feijão na casa de Marcos e Matilde. O bebê foi alimentado de forma inconstante e irregular. Hoje, com 10 anos, Raimundo aparenta ter entre 7 e 8 anos de idade em virtude de sua baixa estatura e estrutura física franzina.
Rafael e Bruna sempre foram tratados com muito carinho, companheirismo e proximidade dos pais, apesar de seus compromissos profissionais. Nos primeiros anos, Mariana trabalhava apenas no período da manhã, durante os quais as crianças eram assistidas por uma babá e pela prestimosa avó materna, Dona Ana.
O acesso a livros, revistas e jornais desde os primeiros anos da formação facilita a relação
entre as crianças e a leitura. A consolidação da leitura se dá a partir do momento em
que essa atividade
passa a ser relacionada com prazer, descoberta e crescimento.
Seus pais se preocuparam em colocá-los na escola mais prestigiada da região onde moravam. Avaliaram a estrutura física do colégio (laboratórios, quadras, parquinhos, bibliotecas,...), o corpo docente, a proposta de ensino; conversaram com as coordenadoras, com a diretora e com as professoras.
Sabedores da importância da leitura e da participação em atividades culturais, os pais de Bruna e Rafael desde cedo os incentivaram a assistir filmes e desenhos (apropriados a suas faixas etárias), ir a peças teatrais para crianças, ler livros e revistas, acompanhá-los em suas visitas a museus e viajar para conhecer novos lugares, culturas, pessoas,...
Quando Raimundo completou 6 anos ainda não sabia ler. Foi Dona Esperança que aconselhou Matilde a colocar o menino na escola. Ela tinha ouvido falar que isso podia lhe dar melhores condições de vida, quem sabe ele podia conseguir emprego como office-boy, ou mesmo tentar algum concurso que lhe permitisse trabalhar numa empresa como operário especializado.
Marcos levou o menino à escola mais próxima, que ficava a várias quadras de sua casa. Isso já deixou o pai de Raimundo muito desanimado. Ele pensava no que aconteceria se tivesse serviço do outro lado da cidade e tivesse que levar o menino para a escola antes de ir para o trabalho. Isso lhe atrapalharia muito. Matriculou o garoto e não se preocupou em conferir se a escola era adequada. Gostou da fachada, que apesar de pichada, parecia bem protegida pelos altos muros e arames farpados.
Enquanto saia de sua casa para ir a escola, Bruna pensava nas tarefas que havia feito, no livro que tinha lido para a aula de português e no teste de matemática que teria pela frente. Sabia que tudo aquilo era penoso, muitas vezes deixava de brincar ou de encontrar com as amigas para cumprir com seus compromissos escolares, entretanto sabia que isso poderia lhe ajudar no futuro, pelo menos era isso que seus pais diziam a ela e a Rafael...
A visita a museus e exposições abre os olhos dos estudantes para os mundos que a cercam,
aumentam a curiosidade em relação aos diversos conhecimentos produzidos pelos homens,
incentivam os estudos e consolidam a crença no estudo como elemento de crescimento e prosperidade.
Raimundo levava a mochila nas costas enquanto andava pelas vielas sem pavimentação e com esgoto a céu aberto em que vivia. Pensava se ir a escola ajudaria a melhorar sua vida, não conseguia encontrar uma relação entre as coisas que eram ditas pela professora na sala de aula e o que via no mundo. Sofria com as brincadeiras e ironias das crianças da vizinhança que diziam que ele estava perdendo tempo e que deveria se juntar a eles nas peladas nas ruas ou mesmo vendendo balas nos semáforos para arrecadar dinheiro e ajudar seus pais e a si mesmo...
E aonde queremos chegar com as histórias de Bruna e Raimundo? Cabe a você, internauta, refletir a respeito dos caminhos trilhados pelas duas famílias e pensar em alternativas que nos ajudem a entender a importância da educação na vida de todas as pessoas ou mesmo a influência da família no encaminhamento de seus filhos para estudos que sejam proveitosos e que fomentem um futuro mais promissor...
Obs. As histórias de Bruna e Raimundo são fictícias, mas representam parte do cotidiano de muitas crianças de nosso país, tanto das camadas mais carentes de nossa sociedade quanto da classe média ou mais abastada.
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