Lei Áurea: Abolição da escravidão sem a abolição do preconceito - 01/06/2017
João Luís de Almeida Machado
Assinada pela Princesa Isabel em 13 de maio de 1888, no alvorecer do império brasileiro, a Lei Áurea aboliu a escravidão no Brasil. Durante décadas, no século XVIII, por meio de lutas diretas dos escravos ou através do movimento abolicionista, almejou-se a ratificação jurídica e política desta verdadeira chaga que perdurou no Brasil por quase 4 séculos. Apesar da lei ter sido criada, a situação de vida dos ex-escravos no Brasil continuou sendo de dificuldades, dores, perseguições e preconceito.
Em termos jurídicos, apesar de ter somente 2 artigos, a Lei Áurea ratificou a abolição no país após a aprovação de outras leis, anteriores, que foram apenas paliativas pois não resolviam o problema, como a Lei do Ventre Livre ou a Lei dos Sexagenários, por exemplo. Nos casos citados, tendo em vista que a criança nascia livre mas continuava a viver com os pais escravos e que poucas pessoas viviam além dos 60 anos de idade, principalmente entre os cativos, sujeitos a condições insalubres e desumanas de existência, estas leis tiveram pouca ou nenhuma efetividade.
A Lei Áurea, apesar de libertar os escravos, por seu lado, não lidava com a questão cultural que fazia prevalecer o preconceito, com as dificuldades de comunicação para sua efetivação nos quatro cantos do país e, para completar, para muitos escravocratas, com o advento do trabalho assalariado e a vinda de imigrantes, a libertação foi percebida como positiva pois lhes livrou, literalmente, de custos e problemas relativos a manutenção dos escravos, preocupações que deixaram de ter com trabalhadores que recebiam salários e que representavam custo baixo nas lavouras e nascentes indústrias.
É importante também destacar que as leis abolicionistas são resultado de muitos e muitos anos de luta dos escravos brasileiros, da resistência a indigna e desumana condição de cativos submetidos a trabalhos forçados e outras violências, do movimento abolicionista e do contexto socioeconômico que a partir dos anos 1830 modificam, gradativamente, a dinâmica nacional, deixando para trás aspectos coloniais e inserindo o país no modelo capitalista.
Logo após a promulgação da Lei Áurea, o que se configurou foi um período difícil para a maioria dos homens e mulheres recém-libertos, ainda que a transição já estivesse acontecendo nas principais cidades do país, como o Rio de Janeiro ou Salvador. No campo, sem opções, muitos deles continuaram trabalhando nas lavouras de seus antigos senhores, dentro de condições muito parecidas com a escravidão, ainda que assalariados.
Nas cidades, por sua vez, modalidades como escravos de aluguel que prestavam serviços para terceiros ou que, por vezes, iam para as ruas comercializar produtos simples, como alimentos, tecidos ou utensílios domésticos, foram flexibilizando as relações, progressivamente, e criaram uma atmosfera um pouco mais favorável a transição. Em ambos os casos, no entanto, o aspecto cultural, que fazia com que os negros fossem percebidos como inferiores continuou a prevalecer, o que de certo modo, ainda hoje, em pleno século XXI, infelizmente ainda acontece.
Há ainda que se ressaltar que a lei não abordava importantes aspectos práticos como a reparação aos antigos escravos por perdas e danos, indenizações ou ainda projetos sociais que tivessem como meta a integração dos libertos. O impacto foi muito negativo pois, após tantos anos de trabalho no campo ou na cidade, os ex-escravos iam para as ruas sem ter em que se apoiar para iniciar uma nova vida, agora como cidadãos livres. O fato de não se cobrarem indenizações ou de não se oferecer algum tipo de apoio social ou governamental para a inclusão dos negros na sociedade pós-escravista dificultou ainda mais a vida deste expressivo segmento da população brasileira e, de certo modo, ocasionou a deterioração da qualidade de vida, o empobrecimento, a violência e outros fatores afins.
Mesmo com o abolicionismo, importante movimento social no Brasil a partir dos anos 1830 e 1840, que contou com a participação de expoentes como Joaquim Nabuco e Luiz Gama, o movimento não teve força e alcance para promover ações de inclusão e valorização dos cativos após a Lei Áurea ser aprovada no país. A assinatura da lei pela princesa Isabel pareceu, aos olhos da sociedade, sacramentar a questão e, numa sociedade em que a informação circulava com lentidão e o nível de esclarecimento geral era baixo, bandeiras como esta tiveram pouco ou nenhum peso posteriormente.
As consequências desta ação política, ou seja, da assinatura de uma lei que não previa ações de indenização e inserção social plena dos negros recém-libertos na sociedade trazem impactos para a sociedade brasileira até os dias de hoje. Os índices sociais revelam maior perseguição por parte da polícia a pessoas negras, os presídios têm maior incidência de pessoas desta etnia em suas fileiras, o nível de alfabetização e letramento é menor entre eles, as oportunidades de emprego e os salários pagos a afrodescendentes são menores que aqueles destinados a brancos... E isso não é, de forma alguma, decorrente da cor da pele das pessoas, mas de condicionadores sociais e culturais historicamente criados ao longo dos anos em que prevaleceu a escravidão e do preconceito atrelado a esta chaga. Há vários indicadores sociais que refletem esta triste herança histórica e, certamente, há muito o que fazer para que a sociedade consiga oferecer condições dignas de vida, com respeito as origens e a diversidade cultural, valorizando toda a riqueza que os povos africanos legaram ao Brasil.
Atualmente, com a política de cotas, o governo e a sociedade brasileira tentam reparar erros e danos historicamente constituídos quando desde a promulgação da Lei Áurea. Isso, no entanto, não irá fazer com que os erros do passado sejam superados. É preciso aprender com o que foi feito de errado outrora e criar ações que permitam oportunidades iguais para todos. A política de cotas é um paliativo que precisa ser substituído, aos poucos, a partir de iniciativas que gerem real integração, oferecendo escolas, saúde, segurança, empregos e demais direitos sociais a população excluída, entre os quais, principalmente os negros. Isso demanda parcerias entre a sociedade civil, o governo, as empresas e todos aqueles que puderem, efetivamente, contribuir para esta reparação, oferecendo meios dignos, humanos e respeitosos de valorização e inclusão, que entendam e defendam a igualdade e a tolerância em nosso país.
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