15/10/2004 - O Professor que desejamos ser... - 15/10/2004
15 de Outubro – Dia dos Professores
1- Os alunos desavisados conversam animadamente entre uma aula e outra. Entro sem ser notado e, de repente alguns percebem a minha presença e esperam, comportadamente, que eu lhes dê direcionamentos e especifique o que iremos fazer ao longo da próxima hora-aula. Passo direto, assobiando uma canção que ronda a minha cabeça desde a hora em que acordei. É nosso primeiro dia de aula, eles ainda não me conhecem. Sou novo nessa escola...
Atravesso a sala de aula e vou para a porta de saída. Eles parecem não entender nada. De fora da sala de aula estico meu pescoço a olhar para todos os estudantes e lhes digo: “Vamos, o que vocês estão esperando?”.
Eles olham um para os outros e, meio sem saber o que fazer, pegam alguns cadernos e livros da matéria que irei trabalhar com eles. Saem timidamente da sala de aula e acompanham meus passos decididos em direção ao pátio. Próximos a uma enorme galeria de fotos, todos nós paramos para recordar anos e anos da história dessa incrível escola onde estamos.
Ainda sem saber ao certo porque estamos ali, um tanto quanto desconcertados, peço a alguns alunos que abram seus livros numa página de nossos livros onde iremos encontrar uma poesia de Bertold Brecht chamada “Memórias de um trabalhador que lê”...
Consegui o que queria. Deixei todos eles ansiosos e curiosos para nossos próximos encontros. Ainda posso me lembrar dos comentários de alguns deles dizendo, “Essa foi a aula mais esquisita que já tivemos” ou ainda, “Foi diferente e, quem sabe, o prenúncio de alguma coisa mais divertida, mais intrigante”...
Queria apenas que eles percebessem que são sujeitos da história, da produção de seu conhecimento, da construção de seu futuro e de seu ser, parceiros numa empreitada magnífica chamada vida. Não os via apenas como adolescentes de 15 ou 16 anos que não tem nada a dizer, mas como pessoas que tem muito a relatar, a nos contar e que podem construir seu conhecimento numa parceria com seus professores, seus pais e com toda a comunidade.
2- Entro na sala de aula e todos os alunos estão sentados esperando ansiosamente nossa aula. Iremos utilizar algumas transparências. Nosso tema de hoje é a história da arte. Quando coloco o primeiro slide na tela e peço informações a respeito daquela produção tenho logo uma resposta certeira, rápida e rasteira.
Não imaginava que os estudantes estariam tão bem preparados, mas é melhor assim do que se não tivesse qualquer resposta. Quando mostro o segundo, o terceiro e o quarto slides; também obtenho rápidas soluções para as dúvidas propostas. O que passa a me intrigar é que todas as soluções são cópias idênticas dos conteúdos e textos disponíveis no livro que orienta nossos estudos...
Percebo que os alunos querem me confrontar. Não parecem confiar em minha formação. Duvidam de minha juventude.
Ao perceber isso, minha reação imediata foi a de estabelecer um diálogo. Estava iniciando minha prática naquela escola. Tinha ótimas credenciais, apesar de minha pouca idade. Acreditava que poderia fazer um trabalho de qualidade com eles.
Mesmo assim alguns permaneceram irredutíveis.
Disse-lhes então que um dia todos eles teriam que começar numa determinada profissão. Perguntei-lhes como se sentiriam se não lhes fosse dada à oportunidade de iniciar seus trabalhos em tenra idade. Afirmei ainda que um julgamento precipitado, baseado apenas em minha juventude, poderia promover uma grande injustiça.
Pedi a eles que me dessem três meses. Depois desse período, caso não estivessem satisfeitos, poderiam reclamar com a direção da escola que eu sairia espontaneamente. Falei com firmeza e confiança que eles deveriam me julgar não pela aparência, mas pelo trabalho.
Ficamos dois anos juntos. Sai daquela escola para outro trabalho por opção própria...
3- O novo aluno entrou todo tímido e cabisbaixo na aula. Era seu primeiro dia. Tive o cuidado de apresentá-lo para os outros estudantes, seus novos colegas e indiquei-lhe uma carteira vazia, onde poderia se sentar. Iniciamos então nossa aula. Falamos de arte, história, literatura e cálculo. Viajamos pela geografia e também abordamos conceitos e idéias dos grandes filósofos da Grécia.
O novo aluno, no entanto, continuava distante. Nada parecia lhe despertar para o mundo de maravilhas que discutíamos em aula. Quando lhe pedi para ler um trecho de nosso texto, envergonhado, ele abaixou ainda mais seus olhos e trêmulo relutou em aceitar. Ao ler, demonstrou muita insegurança e pouco conhecimento.
Todo seu acanhamento era fruto de etapas anteriores em que seu preparo e estudo não tinham sido adequados. Ao final das aulas pedia-lhe que ficasse mais um pouco. Pacientemente fui orientando algumas leituras e exercícios, acompanhando seus problemas e dificuldades, dando-lhe certos caminhos pelos quais conseguiria se preparar melhor.
Depois de alguns meses, confiante, ele já se oferecia para ler em voz alta. Era um dos alunos mais dedicados nas contas e problemas da matemática. Adorava ouvir as histórias dos imperadores ou desenhar os mapas dos continentes. Parecia uma outra criança...
Só lhe faltava confiança. Foi só o que tentei lhe dar...
4- Fiquei velho. O tempo passou e as dores apareceram. Nunca consegui parar de lecionar. Adorava o convívio com os mais jovens. Deles retirava todo o ímpeto e a disposição para continuar estudando e preparando minhas aulas. Jamais desisti de um aluno. Sempre acreditei que mesmo aqueles que relutavam em desfrutar de nossas aulas mereciam algum trabalho adicional de minha parte. Precisava conquistá-los...
Com a idade veio a doença. Dela não consegui escapar. Tive que deixar de ensinar. Isso foi, sem dúvida, mais doloroso do que os próprios efeitos colaterais dos remédios ou as insuportáveis dores derivadas da doença. A solidão não foi inimiga. Meus amigos e muitos alunos iam me visitar com freqüência. A família foi um incrível e maravilhoso ponto de apoio para minha sobrevida...
Entre as várias visitas que recebi, uma foi marcante. Tratava-se de um daqueles inesquecíveis estudantes que marcam sua trajetória em nossas aulas e na escola. Já adulto, maduro, homem de sucesso em sua profissão, parecia endurecido pelas agruras da vida. Tinha aprendido os conceitos e as lições dadas por todos os seus mestres, porém, ainda não havia descoberto a vida.
Sabia muito bem o que fazer para ser um dos melhores do país em sua profissão, mas não tinha coragem de demonstrar seu amor pela noiva. Tinha sido premiado várias vezes por sua obra, no entanto estava cansado, desgastado, deprimido e estressado.
Dedicamos parte de nossos encontros (foram alguns) para falar sobre temas que não estavam incluídos em nossas aulas. Falamos sobre família, amor, saudade, alegria. Abordamos também as inseguranças, os medos e os sofrimentos.
Descobrimos que, no final das contas, o que ficava para sempre em nossas vidas não eram as horas e mais horas gastas no cumprimento do dever nos escritórios, lojas, escolas ou hospitais. Concordamos que o que fazia a vida valer a pena era o amor de nossos familiares, o respeito de nossos amigos e a consideração das pessoas que prezamos.
Seu retorno a minha casa foi à prova que precisava para aprová-lo em mais um curso, o nosso último. Aprovado, ele tinha pela frente seu casamento, a perspectiva de filhos, uma saúde mais perfeita e um horizonte de realizações pessoais e profissionais que o garantiriam por muitos e muitos anos...
Obs. Queria escrever para os professores e lhes dar parabéns pelas suas grandes realizações do cotidiano. Pensei em algumas histórias de sucesso contadas em filmes e adicionei a elas algumas experiências pessoais para que ficassem um pouco originais. Tenho muito orgulho da profissão que exerço há mais de quinze anos. Acredito que sejamos responsáveis por muito mais que as disciplinas que lecionamos. Nas histórias contadas ao longo desse texto procurei mostrar o quanto temos que valorizar nossos estudantes, dando a eles mostras de nossa confiança em sua capacidade de construir seu conhecimento com nosso apoio. Outro aspecto destacado foi a capacidade de superação em momentos difíceis e a força do diálogo como ferramenta fundamental para o trabalho em educação. Idéia importante também é aquela do terceiro texto, quando procurei mostrar que a presença, a perseverança e a dedicação nos permitem operar verdadeiros milagres no dia-a-dia escolar. Para finalizar me lembrei que as verdadeiras lições são aquelas que vem do coração e que tentam mostrar o caminho da felicidade...
(a propósito, os filmes que me inspiraram foram, na ordem dos textos: “Sociedade dos Poetas Mortos”, “O Sorriso de Monalisa”, “A Língua das Mariposas” e “A última grande lição”; há textos sobre os três primeiros em nosso arquivo da coluna Cinema na Escola; Quanto ao último, infelizmente ainda não foi lançado no Brasil, entretanto há um livro de igual título que vale a pena ser lido, a respeito do qual já escrevi uma resenha para a coluna Planeta Literatura).
1 iralice - Rj
Com poucas palavras, o que tenho a disse é: Agradeço a Deus pela sua existência, pelo o amor que exprime ao falar de sua profissão. As edições apresentadas aqui, são realmente um elexir para a alma, para a mente e aprendizado.
Gostaria de pedir sua autoriazação para citar este texto: "O professor que desejamos ser" em um trabalho que estou preparando. Se a resposta for positiva, por favor, envie a norma de citação. Desde já muito obrigada
05/04/2007 21:19:05
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