Planeta Literatura
João Luís de Almeida Machado é consultor em Educação e Inovação, Doutor e Mestre em Educação, historiador, pesquisador e escritor.

O Cortiço - 04/04/2017
João Luís de Almeida Machado

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João Romão, Rita Baiana, Jerônimo

“João Romão não saia nunca a passeio, nem ia à missa aos domingos; tudo que rendia a sua venda e mais a quitanda seguia direitinho para a caixa econômica e daí então para o banco. Tanto assim que, um ano depois da aquisição da crioula, indo em hasta pública algumas braças de terra situadas ao fundo da taverna, arrematou-as logo e tratou, sem perda de tempo, de construir três casinhas de porta e janela. Que milagres de esperteza e de economia não realizou ele nessa construção! Servia de pedreiro, amassava e carregava barro, quebrava pedra; pedra, que o velhaco, fora de horas, junto com a amiga, furtavam à pedreira do fundo, da mesma forma que subtraiam o material das casas em obra que havia por ali perto. Estes furtos eram feitos com todas as cautelas e sempre coroados do melhor sucesso, graças à circunstância de que nesse tempo a polícia não se mostrava muito por aquelas alturas.” (O Cortiço, obra de Aluísio Azevedo)

O clássico livro “O Cortiço”, de Aluísio Azevedo, tem sido obra constantemente cobrada em vestibulares, como a Fuvest, e também no Exame Nacional do Ensino Médio. Independentemente desta cobrança, a obra tem evidentes qualidades e merece ser lida e conhecida não apenas pelos estudantes em preparação para os exames de acesso as universidades do país, mas por todos aqueles que gostam de ler, querem entender melhor o Brasil a partir do exame de sua cultura e história e que, também se interessam por questões sociais de vulto, como a vida da população empobrecida, nas periferias, marginalizada pelas elites.

Para melhor entender a obra, no entanto, é preciso compreender sua autoria, o contexto em que foi escrita, a escola literária que representa e os meandros da história, ou seja, sua trama e personagens. Tudo isso irá nos permitir compreender a sua importância e relevância no cenário cultural brasileiro de ontem e de hoje.


Aluísio Azevedo

Figura 1- Aluísio Azevedo


O autor

Obra de Aluísio Azevedo, nascido em São Luís, no Maranhão, em 1857, o futuro escritor, aos 17 anos parte para a capital do Brasil, o Rio de Janeiro, onde frequenta a Academia Imperial de Belas Artes. Sua atuação profissional se inicia com a produção de caricaturas e poesias. Seu primeiro romance é "Uma lágrima de mulher", de 1888. Além de escritor, atuou também como diplomata. Escreveu 19 obras, entre as quais as principais são: “O Cortiço”, “O Mulato” e “Casa de Pensão”. É considerado o criador do naturalismo no Brasil, uma vertente do realismo. Abordou temas como adultério, vício, preconceito e classes sociais marginalizadas. Morreu em Buenos Aires, quando era vice-cônsul brasileiro na Argentina, em 1913)

Estrutura e contexto da obra

“O Cortiço” tem 23 capítulos e é apresentado em primeira pessoa, com o narrador tendo total controle da obra; O contexto da obra, ainda que não anunciado, é a cidade do Rio de Janeiro no final do século XIX.

A principal obra de Aluísio de Azevedo, conforme destacado, faz parte do Realismo brasileiro, sendo considerado um livro da estética Realista-naturalista, em que se buscava apresentar, de fato, a vida como ela é, mesmo que isso significasse abordar o lado mais vil e sórdido da humanidade, trazendo à tona, como nesta obra, a desonestidade, a ação criminosa, o uso de outras pessoas para subir na vida, a traição e outros vícios.

“O Cortiço” se enquadra na linha do chamado "romance experimental" em que qualquer tipo de idealização romântica é deixado de lado para prevalecer a tentativa de demonstração da forma real como opera a sociedade. O contexto sócio-político mundial, no final do século XIX, quando a obra foi escrita é marcado por leituras de mundo que utilizam a ciência como base e também, no qual, a crítica social que esmiúça as condições de vida da população trabalhadora ganha força. No Rio de Janeiro, especificamente, a virada do século é marcada por obras que revitalizam o centro da cidade, criando bulevares, praças e avenidas largas, tudo bem arborizado, segundo os modelos europeus, principalmente os franceses, e que, em contrapartida, retira destas regiões o proletariado, despachando-o para a periferia, onde sem dinheiro, proliferam cortiços como aquele descrito na obra de Aluísio de Azevedo. Esta estética retrata o que, para muitos especialistas ficou conhecida como a produção do "belo horrível". Até mesmo o linguajar utilizado pelos personagens busca retratar sua rudeza, origens humildes, falta de maior polidez e falta de instrução formal, retratando de forma original e rica o vocabulário e a oralidade típicas daquele período. A obra de Azevedo deriva de uma tendência observada, por exemplo, no trabalho do escritor francês Émile Zola, cujo principal romance, "Germinal", apresentava de forma crua e muito objetiva, com real enfoque na pobreza ou mesmo na miséria, a vida do proletariado francês que trabalhava em minas de carvão daquele país no século XIX.

Outro aspecto importante da obra é que, apesar dos evidentes desvios e práticas desonestas ou imorais de seus personagens, como João Romão ou Miranda, não há a intenção de julgar seus atos ou de condená-los por suas ações. O que acontece é resultado de caminhos e opções oferecidas dentro do sistema, ou seja, o capitalismo e suas oportunidades é que fazem com que João Romão ou Miranda, personagens centrais da trama, enveredem por tais caminhos de erros e vilanias.

O Cortiço

Figura 1- Aluísio Azevedo

A trama e as personagens

Estas situações mais sórdidas podem ser percebidas em "O Cortiço" a partir de diferentes personagens, mas o protagonista, João Romão, retrata de forma mais evidente tais vícios. Ele se aproveita da primeira mulher, a ex-escrava Bertoleza, que fugira de seus antigos donos e que possuía uma quitanda, para depois, quando se interessa pela jovem Zulmira, filha de Miranda, comerciante de tecidos que se torna seu vizinho, homem de amizades importantes, se livrar da amante devolvendo-a a seus antigos donos.

Miranda, por sua vez, apesar dos negócios com tecidos, é dependente do dinheiro da mulher e, por isso, se aproxima de João Romão, próspero comerciante, dono de uma pedreira e proprietário de cortiços que aluga na região e que o fazem enriquecer.

Há, ainda traições e mortes, como o assassinato de Firmo, namorado de Rita Baiana, por Jerônimo, gerente da pedreira de João Romão.

O cenário dos acontecimentos é a periferia carioca, onde vive a população trabalhadora pobre, desprovida de meios de melhor moradia e que, por isso, aluga casebres simples amontoados em áreas controladas por comerciantes locais, como João Romão. São os cortiços, criados pelo esperto negociante que adquire terrenos de baixo custo e neles constrói tal tipo insalubre de habitação de onde retira os “tostões” acumulados pelos que ali vivem. Apesar da pobreza, e mesmo que existam rivalidades e violência, como aquela que há entre moradores de diferentes cortiços da região, há ainda assim, espaço para paixões, música, alegria e festejos regados a bebida barata e comida acessível aos bolsos do proletariado urbano descrito na obra.

Obra de evidente conotação social, com claras críticas ao capitalismo, a observar o comportamento inadequado dos personagens sem cair em julgamentos moralistas, mas, tentando entender como resultado natural do sistema em que todos vivem, “O Cortiço” faz jus ao respeito e lugar que ocupa no panteão da literatura nacional.


Observação: A obra "O Cortiço", de Aluísio Azevedo está em domínio público e pode ser acessada na íntegra no seguinte link www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bv000015.pdf



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