Que horas ela volta? - 22/01/2016
João Luís de Almeida Machado
“Ela é praticamente da família”. Quantas vezes esta frase já não foi proferida por alguém no Brasil para retratar a forma como os membros de uma família percebem a pessoa que realiza trabalhos como empregada doméstica em seus lares.
A recente mudança da legislação que, finalmente, colocou a ocupação das domésticas no mesmo patamar legal de todas as outras profissões regulamentadas e reconhecidas quanto ao pleno direito trabalhista no país está a modificar o panorama geral. A classe média brasileira, com tantos encargos aos quais já é normalmente submetida, está modificando o modelo anteriormente utilizado quanto a esta contratação, abandonando em muitos casos o emprego estável, com a funcionária prestando serviços todos os dias, pela adoção de trabalho da diarista, com a qual estes compromissos legais de ordem trabalhista não se aplicam.
Ainda assim, historicamente, desde a época em que ainda vigia no país a malfadada e vil escravidão, diante daquilo que o célebre sociólogo brasileiro Gilberto Freyre definiu como “relações cordiais” entre mandatários e comandados, fosse em regime servil ou pago, apregoa-se a ideia de que alguns destes empregados e empregadas, seriam como “parte da família” de seus patrões.
Em se considerando o fato de que os brasileiros, assim como todos os latinos, de sangue quente e emoções a flor da pele, diferentemente dos anglo-saxões, dos nórdicos ou dos eslavos, entre outros, concretizarem no cotidiano um relacionamento mais próximo com as pessoas em seu entorno, de maior ou menor simpatia, de alguma antipatia em certos casos, mas sempre ocasionando alguma empatia, a referida frase e vivência parecem ter sentido.
Ao trazer à tona este mote como um dos centros de discussão em torno de seu filme “Que horas ela volta?”, com impressionante e laureada interpretação de Regina Casé no papel principal, a diretora Anna Muylaert realizou um filme notável, elogiado por conta de suas qualidades técnicas, interpretações e, principalmente, pelo roteiro inteligente, focado numa questão sociológica latente há tantos anos no cenário brasileiro.
A ideia de que a empregada doméstica é parte da família para a qual presta serviços esbarra sempre em pequenos detalhes do cotidiano, alguns deles destacados no filme, como por exemplo o confinamento a determinados cômodos da casa no que tange a sua intimidade (quarto e banheiro de empregada), as refeições em separado (sempre depois que a família foi servida), o recolhimento em caso de visitas e surgimento nestas ocasiões somente para o exercício de seu trabalho, o veto a alguns recursos disponíveis no imóvel (como no caso da piscina no filme), a delimitação quanto aos produtos a serem consumidos (há o que é exclusivo da família e o que é apropriado para a doméstica, como na situação do sorvete apresentada na obra de Muylaert)...
O que se questiona não é, necessariamente, qualquer uma das delimitações ou restrições, conforme queiram chamá-las, demonstradas no cotidiano das famílias e na relação por eles estabelecidas com a empregada.
O ponto de dúvidas, ou melhor, de esclarecimento a ser dado, refere-se a menção da funcionária doméstica como quase “membro da família” quando na realidade não é e, em raras ocasiões, passa a ter tal status.
Um dos grandes méritos de “Que horas ela volta?” reside justamente em colocar em xeque esta máxima que tantas famílias advogam sem que, de fato, isso se concretize, seja real, seja fidedigno. A chegada da filha de Val (Regina Casé), criada a distância do ambiente de trabalho da mãe e tendo acesso a uma educação que, mesmo deficiente conforme demonstram os indicadores nacionais, lhe permite questionar e embaralhar as cartas deste modelo familiar ilusório, a falsear e sofismar as relações entre patrões (em especial a patroa) e empregada. O lugar de cada um fica mais evidente com esta jovem intrusa, que se permite ações as quais a mãe da família classe média base não tolera e que, domesticada, sua própria progenitora, a doméstica Val, igualmente considera fora do lugar.
O que vale destacar é que o filme “Que horas ela volta?” é mais uma joia rara do cinema nacional que instiga, provoca, revela, emociona e engrandece a cultura do país por não apenas analisar as relações sociais imediatas, aquelas que estão ao alcance dos olhos de todos, mas por nos mostrar o quanto ainda temos que evoluir como indivíduos, povo e nação.
O Filme
Val (Regina Casé) vive na casa de seus patrões, num bairro de classe média alta, em São Paulo, onde se estabeleceu após migrar de outro estado. Sua relação com a família é de longa data. A doméstica praticamente criou o filho único do casal, por quem tem real e verdadeira afeição, tratando o menino como se realmente fosse seu filho.
Dedicada, a empregada cumpre rigorosamente a agenda de trabalhos organizada por ela mesma desde que se estabeleceu no seio desta família paulistana. Acorda cedo, prepara o café, deixa tudo pronto na mesa para que pai, mãe e filho apenas se levantem e rapidamente possam fazer a primeira refeição do dia para então saírem, em direção aos compromissos que os esperam.
Nesta bela casa com piscina em que residem, Val tem seu próprio quartinho com banheiro e até televisão. No final do expediente pode deitar em sua cama, esticar um pouco as pernas e descansar, vendo alguma novela ou programa humorístico na telinha. A vida vai nesse ritmo tranquilo até que por telefone vem a notícia de que a filha de Val está a caminho de São Paulo para viver com a mãe. A menina quer prestar o vestibular.
Val fica contente, mas contida precisa requisitar juntamente a seus patrões que a filha possa viver com ela, na casa deles, em seu quartinho, durante algum tempo. Sem problemas dizem eles, afinal Val é praticamente da família.
O problema é que a chegada da jovem, formada em outro ambiente e em outras condições, altiva e questionadora, vai colocar a estrutura pacífica até então vigente em discussão. Val, que era parte da família, vai aos poucos perceber que os limites para sua participação neste núcleo basilar da sociedade em São Paulo não é o que pensava ser. No começo ela até reluta em entender isso e repreende sua filha, mas a mudança já está em curso e tudo pode acontecer...
Não deixe de assistir. “Que horas ela volta?” provoca nos espectadores sensações variadas, que vão do desconforto para alguns, a se perceber no papel da patroa, a compreensão de tantos outros, de que a sociedade precisa abandonar estereótipos e visões limitadoras das relações sociais verdadeiras que existem no país, superando assim a visão do homem cordial de Freyre.
Para Refletir
1- Ler Gilberto Freyre em suas obras clássicas, como “Casagrande e Senzala” ou “Sobrados e Mucambos” é de essencial importância para perceber as armadilhas contidas no conceito de que o brasileiro é o homem cordial quando, na realidade, não é... Evoque esta obra e busque atualizações em trabalhos mais recentes em que se analisa a estrutura social vigente no país.
2- A mudança na legislação trabalhista no que concerne ao trabalho das domésticas é algo que precisa ser bem compreendido por todos. Após anos de luta foram aprovados direitos aos quais as outras categorias tinham acesso, como o recebimento do FGTS, por exemplo. Conhecer a lei, verificar as implicações desta mudança, como o mercado de trabalho neste segmento está se reestruturando, quais os benefícios reais surgidos, que problemas vieram em contrapartida...
3- A vida da empregada doméstica já foi trabalhada pelo cinema em “Domésticas – o filme”, de Fernando Meirelles. Assista o filme. Faça paralelos. Perceba as diferenças entre aquela produção, realizada alguns anos antes da aprovação das leis em benefício das domésticas, compreenda os estereótipos tanto naquela película quanto na obra de Anna Muylaert.
4- Como é a vida de uma doméstica? Faça uma pesquisa de campo. Veja como vivem, sua labuta diária, o cotidiano na casa de seus patrões, onde moram, como se deslocam, a que horas começa o seu dia de trabalho, como fazem para viver com o salário que recebem... Busque relatos, coloque os dados gerais obtidos pela turma a partir de questionários padrão em gráficos, leve domésticas para dar depoimentos na escola...
Veja o trailer do filme
Ficha Técnica
Título: Que horas ela volta?
País/Ano: Brasil, 2015
Gênero: Drama
Direção: Anna Muylaert
Elenco: Regina Casé, Camila Márdila, Michel Joelsas, Karine Telles, Lourenço Mutarelli, Luís Miranda, Helena Albergaria, Theo Werneck.
# Selma – Uma luta pela igualdade
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