Educação para o Pensar
Wanda Camargo é educadora e assessora da presidência do Complexo de Ensino Superior do Brasil.

A redação do Enem 2015 em pauta - 06/11/2015
Wanda Camargo

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mão com caneta sobre caderno

Em anos anteriores os temas propostos para a prova de redação do ENEM deram alguma margem à expressão de pontos de vista divergentes, ainda que defensáveis. Quando o tema foram as migrações, muitos candidatos as consideraram positivas, outros defenderam que a entrada de estrangeiros poderia afetar a oferta de empregos no país. Em 2014, o assunto foi a publicidade dirigida ao público infantil, e mais uma vez as opiniões se dividiram, a maioria dos candidatos se manifestou contra, argumentando que crianças ainda não têm discernimento para “filtrar” os comerciais; houve os que julgaram que a publicidade não deveria ser inibida por estimular a economia e a geração de empregos.

Neste ano o mote foi de raro senso de oportunidade: “A persistência da violência contra a mulher na sociedade brasileira”; e que, talvez pela primeira vez, não permite dissensão. Embora as provas do ENEM possam padecer, em algumas questões, de certo ranço ideológico, violência contra qualquer ser humano, animal ou natureza não é questão de ideologia, é contrária à humanidade, aos direitos humanos, à civilização, aos direitos fundamentais. Defendê-la, inclusive contraria o que o próprio edital do ENEM 2015 estabelece. “[...] será atribuída nota 0 (zero) à redação: [...] que desrespeite os direitos humanos...”

Nas redes sociais já circulam comentários críticos ao tema. Muitos manifestam desagrado com o que dizem ser uma forma de tornar a mulher uma “vítima privilegiada” da violência, não parecendo perceber que se homens e mulheres são suscetíveis de sofrê-la, e igualmente dignos da proteção da Lei, as mulheres têm ainda contra si, além de menor força física, a dependência financeira que é a realidade de muitas, e o pacto informal de silêncio das instituições e da sociedade quando o assunto é violência doméstica ou feminicídio (consubstanciado no adágio: “em briga de marido e mulher ninguém põe a colher”).

Pesquisas comprovam que a maior parte das agressões ocorre dentro do lar, e são cometidas por esposos, companheiros ou namorados, ou seja, pessoas da confiança das agredidas. A Lei Maria da Penha é dita redundante, por tipificar delitos que já são contemplados no próprio Código Penal, mas é necessária quando abre a possibilidade de punição mais rápida a criminosos que provavelmente seriam inocentados a priori, pelo silêncio daquelas que agridem, intimidadas pela possível continuidade do convívio com seu atacante.

Há os manifestantes que apenas querem gerar polêmica, atrair atenção, “chocar a burguesia”. Mas os que preocupam de fato são os que acreditam realmente que a proposta de redação seja uma tentativa de “impingir a teoria de gênero goela abaixo”, como foi declarado por um deputado; ou que expõe desejos e visões medievais de convívio.

Esta redação, de todo modo, parece ter originado um enorme debate sobre questões importantes e necessárias, direitos, violência, direitos da mulher. Uma boa redação constitui-se basicamente no desenvolvimento harmônico e coerente de ideias, de um tema. Isso exige primeiramente reflexão sobre o que se vai escrever, e é positivo que milhões de jovens tenham refletido acerca desse ponto; talvez pela primeira vez, mas certamente não a última. O tom de alguns comentários ouvidos após a prova era de surpresa, como se uma realidade presente em muitos lares, bares e locais de trabalho nunca tivesse existido, fosse uma pequena desavença doméstica sobre a qual não seria educado falar. Ou ainda, apenas uma bandeira de movimentos de gênero ou políticos.

Violência contra a mulher é contra a mulher, não contra a feminista, a direitista, a esquerdista, a ciclista... restringir a questão ao interesse único de grupos de qualquer natureza é tática que remonta à antiga Roma, dividir para reinar (divide et impera); tornando um assunto de interesse geral em algo pertencente só a alguns e, portanto, mais fácil de contestar.



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