A História Oficial - 06/04/2015
Sombras e luzes sobre a ditadura militar argentina
Uma família feliz, estruturada, com pai executivo e mãe professora, uma filha pequena a alegrar a casa, este é o panorama inicial de “A História Oficial”, de Luis Puenzo, vencedor do Oscar de melhor filme estrangeiro em 1985. O cenário é, no entanto, a Argentina no início da década de 1980, quando vigia naquele país uma ditadura militar a cercear as liberdades individuais e perseguir opositores do regime.
Viver em tempos de exceção, com restrições políticas e repressão, não admite no cenário a isenção total.
Há a alienação, aquela em que o sujeito se ausenta da realidade sociopolítica ao assumir postura de parcial ou total ignorância dos elementos e ações adotadas pelos governantes do regime repressor. Isso pode ocorrer tanto de forma espontânea, associada à falta de informação e ao desconhecimento e não engajamento político do cidadão, quanto pelo medo, causado pela violência do poder contra o povo, a cegar e silenciar quem não quer arriscar sua própria vida.
Existem também aqueles que se engajam apenas no discurso, perante seus pares, a recriminar secretamente o regime. Não falam abertamente o que pensam, restringem a grupos de extrema confiança, ainda assim, correm certo risco, pois as paredes têm ouvidos e os censores e delatores a serviço do governo podem estar onde menos se imagina.
Os politicamente engajados se encaixam em duas categorias básicas: aqueles que apoiam o governo de exceção e aplaudem suas ações na luta contra os subversivos e a esquerda que ameaça a estabilidade e o regime; e, por outro lado, o grupo dos que combatem, às escondidas, na ilegalidade, os atos ilícitos e as brutalidades impetradas pelo governo estabelecido à força.
Luís Puenzo, em seu filme, nos coloca diante de um recorte desta complexa realidade argentina em meio à ditadura vivida naquele país entre o final dos anos 1970 e início da década seguinte.
A protagonista, professora de história rígida com seus alunos, feliz em seu domicílio, é uma típica integrante da classe média que apesar de ter acesso à informação, vive à parte dos embates políticos que dominam a nação. Seus sonhos e aspirações relacionam-se principalmente a família e ao grupo de amigos com os quais convive, socialmente estabelecidos e privilegiados, distante do drama daqueles que perderam alguém na luta contra a ditadura.
Sua história, porém, não está distante das questões que abalam a ordem nacional, como ela irá descobrir ao longo da trama. A bolha em que vive será abalada pela constatação de que não há lugar para os inocentes, tampouco para os alienados, numa situação política de exceção, onde os direitos são violados e a força se faz presente na ordem do dia tanto de forma oficial quanto não oficial.
O filme
Alicia (Norma Aleandro, atriz argentina competentíssima em destacada atuação) entra na sala de aula e impõe seu ritmo. Austera, rígida, controladora, não permite brincadeiras e cria um ambiente artificialmente silencioso e sereno durante as aulas de história que ministra. Quando sai da escola e vai para casa, encontra Gaby (Analia Castro), sua filha pequena, e o marido Roberto (Héctor Alterio), em seu confortável lar, onde muitas fotos demonstram a harmonia e a felicidade que ali imperam.
Quando não está em família ou no trabalho, Alícia encontra as amigas para uma descontraída reunião vespertina num café em Buenos Aires. Para sua surpresa, desta vez, entre o grupo que normalmente se reúne, está Ana (Chunchuna Villafane), que se encontrava ausente do país há algum tempo.
Ao final do encontro, Alicia leva Ana para sua casa e a convida a pernoitar por lá. Esta visita de surpresa não é bem recebida por seu marido Roberto (Héctor Alterio), apesar da aparente cordialidade no tratamento que dispensa a visitante. Terminado o jantar, Roberto sai de cena enquanto as amigas continuam a conversa regada a um bom vinho portenho.
É então que Ana conta a Alicia os motivos de sua saída do país, relacionada ao cenário político e a ditadura militar estabelecida no governo argentino. É nesta conversa, também, que vem a tona uma situação que relaciona diretamente a protagonista ao contexto político-social vivido em seu país: sua filha pequena foi adotada e ela nunca foi informada por Roberto quanto aos procedimentos desta adoção ou a respeito da origem familiar anterior da menina.
Ana coloca em dúvida a legalidade desta ação ao destacar que entre os perseguidos pelo regime ditatorial se encontravam muitas jovens grávidas que desapareceram, assim como seus filhos, sem deixar vestígios... Será que a Gaby não é uma filha de uma desaparecida política?
Puenzo constrói a história de forma a transitar entre os diferentes contextos e momentos da trajetória de Alicia, de sua alienação ou desligamento da realidade que a cerca até a busca da verdade quanto a sua filha, que a contextualiza quanto ao cenário político argentino marcado pelas exceções e perseguições, quando inclusive, vem a conhecer o famoso movimento das Mães da Plaza de Mayo, que pressionam as autoridades de seu país na busca de informações sobre seus parentes desaparecidos.
Filme político, denso, com roteiro inteligente, “A História Oficial” nos ajuda a entender o difícil, delicado e tenso momento vivido na Argentina daquele período e também a nos localizar em relação às ditaduras militares que existiam em outras nações sul-americanas naquela mesma época, como eram os casos do Brasil e do Chile. Um grande filme. Obrigatório.
Para Refletir
Áreas de Interesse: Ciências Humanas, História, Sociologia, Política, Geopolítica, Filosofia.
1- O que é um regime de exceção? Como na prática se estruturaram as ditaduras na América Latina? Que diferenças e semelhanças podem ser percebidas entre os acontecimentos na Argentina, Brasil e Chile durante o período ditatorial vivido nestas nações? Por vezes há, infelizmente, clamores isolados nas ruas do Brasil, como em recentes panelaços e manifestações de descontentamento contra o governo de Dilma Rousseff em março de 2015, no qual alguns cartazes pedem a volta dos governos militares. Estudar e conhecer a história e perceber como de fato atuaram estas ditaduras nos permite entender os motivos pelos quais esta demanda não é legítima e nem deve ser considerada.
2- Para melhor compreender as ditaduras militares latino-americanas seria interessante realizar uma pequena mostra de filmes sobre o período, que poderia incluir, além de “A História Oficial”, títulos como “Missing – O Desaparecido”, de Costa-Gravas, “Pra Frente Brasil”, de Roberto Farias, “Chove sobre Santiago”, de Helvio Soto, e “O que é isso, companheiro?”, de Bruno Barreto, entre outros títulos de qualidade já produzidos sobre o tema. Debates após a apresentação dos filmes e mesas redondas ajudam a compreender melhor as particularidades deste grave momento histórico.
3- Levantamentos de dados e estatísticas sobre os desaparecidos políticos e uma busca de informações sobre investimentos realizados nos países onde regimes ditatoriais se estabeleceram na América Latina, criando infográficos e tabelas que demonstrem as atrocidades e a dor das perdas e a ação de organismos e agências norte-americanas no apoio aos golpes militares podem auxiliar na compreensão do contexto mais amplo vivido entre os anos 1960 e 1980, quando imperava no mundo a Guerra Fria.
4- Buscar informações sobre a organização “As Mães da Plaza de Mayo” auxilia na compreensão do drama vivido por famílias que até hoje ainda não tiveram informações sobre parentes e amigos desaparecidos na ditadura militar argentina que vigorou no país entre o final dos anos 1970 e início dos anos 1980.
Trailer
Ficha Técnica
A História Oficial (La Historia Oficial)
País/Ano de Produção: Argentina/1985
Duração/Gênero: 1h52min/Drama
Direção: Luis Puenzo
Roteiro: Luis Puenzo
Elenco: Norma Aleandro, Héctor Alterio, Hugo Arana, Patrício Contreras, Chunchuna Villafane, Analia Castro.
Referências Acadêmicas/Artigos
www.marilia.unesp.br/Home/RevistasEletronicas/BaleianaRede/Edicao06/2_As_ditaduras_no_cinema.pdf .
Outros links
www.imdb.com/title/tt0089276/ (em inglês) .
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