Aprender com as Diferenças
Marta Gil Consultora na área da Inclusão de Pessoas com Deficiência, socióloga, Coordenadora Executiva do Amankay Instituto de Estudos e Pesquisas, associada à Ashoka Empreendedores Sociais, colaboradora do Planeta Educação e colunista da Revista Reação. Autora do livro “Caminhos da Inclusão – a trajetória da formação profissional de pessoas com deficiência no SENAI-SP” (Editora SENAI, 2012), organizou livros, tem artigos publicados, participa de eventos no Brasil e no exterior. Áreas de competência: Inclusão na Educação e no Trabalho. E-mail: martaalmeidagil@gmail.com.

Invertendo o Sinal - 05/04/2013
Marta Almeida Gil

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Foto de Marta Almeida Gil, autora do artigo Viagens espaciais, corridas de automóvel e até mesmo guerras frequentemente têm desdobramentos considerados benéficos para a sociedade, de novos medicamentos a pneus mais resistentes ou combustíveis de maior rendimento.

Esses “subprodutos” nem sempre justificam a realização dos eventos – especialmente as guerras – mas contribuem para mitigar (para usar um verbo da moda) os fantásticos custos que demandam.

Eles trazem ganhos para um número de pessoas bem maior do que os envolvidos (ou atingidos) de forma direta.

Há muito me pergunto: E na área da deficiência? Será que isso também acontece? O que foi desenvolvido nessa área que trouxe benefícios para a coletividade?

Não me ocorria nenhum exemplo marcante, até ler o excelente artigo “Acessibilidade para a segurança de todas as pessoas”  , de Izabel Maior, e sua versão resumida, de igual excelência, escrita por ela e Andrei Bastos, “Mobilidade vital”.

O artigo foi escrito (me atrevo a dizer “inspirado”) pela tragédia ocorrida na cidade de Santa Maria, RS, na madrugada do dia 27 de janeiro, quando 241 jovens perderam suas vidas de forma dramática e até então inimaginável, num país onde consideramos que Deus é brasileiro – como se isso nos eximisse de qualquer responsabilidade...

O artigo fala do Decreto 5.296/2004, que estabelece normas detalhadas sobre a acessibilidade, entendida em sentido amplo. Embora esteja em vigor há 8 anos, é pouco conhecido por arquitetos, engenheiros, seus respectivos Conselhos Profissionais, por órgãos de fiscalização de obras, profissionais da área de segurança e prevenção de acidentes e por cursos de formação técnica e universitária.

Suas recomendações em geral não são cumpridas na construção ou na reforma e nem são objeto de fiscalização, como recomendado.

A ABNT (Associação Brasileira de Normas Técnicas), por sua vez, tem uma norma específica sobre acessibilidade, a 9050, que é periodicamente revista, atualizada e ampliada, com a participação de diversos segmentos da sociedade civil, incluindo pessoas com deficiência.

Ou seja: o marco legal e conceitual existe, é de qualidade, mas lamentavelmente não é respeitado.

No caso da boate Kiss, como Izabel Maior e Andrei Bastos sublinham, nem uma destas normas foi cumprida. O resultado é o que sabemos.

Se a lei tivesse sido obedecida, muito provavelmente a dimensão da tragédia teria sido menor – embora não menos triste. Como o artigo “Mobilidade vital” sintetiza: “Onde passa um cadeirante, passa qualquer um”.

Se a lei tivesse sido obedecida, haveria sinalização de diversas formas, passagens largas e desimpedidas – até porque para a aprovação ou licenciamento ou emissão de certificado de conclusão de projeto arquitetônico ou urbanístico deverá ser atestado o atendimento às regras de acessibilidade previstas nas normas técnicas de acessibilidade da ABNT, na legislação específica e neste Decreto (capítulo IV, Seção 1, art. 11, § 2.o.).

Em minha opinião, esse conjunto de normas e procedimentos, com base legal, que garantem acessibilidade e segurança para todos é uma significativa contribuição do segmento das pessoas com deficiência para a sociedade.

Construir esse corpo conceitual e jurídico levou tempo, suor e lágrimas. Ele veio do enfrentamento diário dos 1001 obstáculos que pessoas com todos os tipos de deficiência enfrentaram (e ainda enfrentam).

Representa a somatória de inúmeros esbarrões em galhos de árvore, orelhões, equipamentos urbanos colocados aleatoriamente e sem sinalização de alerta, tombos e atropelamentos, porque calçadas nem sempre podem ser utilizadas por cadeirantes.

Isso sem esquecer o transporte público que não é exatamente “público” porque não atende a todos, a ausência de infraestrutura acessível em aeroportos, cais, estações rodoviárias e por aí vai.

Depois de compilar essas vivências e ordená-las sob a forma de projetos de leis, de decretos, Normas Técnicas a batalha seguinte foi levá-las ao Poder Legislativo e convencê-los da necessidade de irem à votação.

Ganho o segundo round, com a aprovação de leis e decretos, contamos com o importantíssimo reforço da CDPD – Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, ratificada (2008) e promulgada (2009) pelo Brasil com a equivalência e força de artigo constitucional.

Agora é hora de divulgar intensamente estas ferramentas, até mesmo para honrar a memória dos jovens que perderam sua vida em Santa Maria, para que nunca mais nada semelhante aconteça, nem aqui e nem em outro país. Já temos “régua e compasso”, como diz a canção.

E a inversão do sinal lá do título?

Bem, durante séculos a sociedade se acostumou a ver as pessoas com deficiência como seres dignos de piedade, que precisavam ser cuidados, por toda a sua vida.

Quantos bingos, jantares beneficentes, rifas foram feitos em seu benefício, e com a melhor das intenções, sem dúvida nenhuma.

As pessoas com deficiência, vistas como frágeis, incapazes e desamparadas, demandavam atenção e recursos ininterruptamente.

A partir da década de 90 do século 20, essa concepção passa por uma mudança radical, com o paradigma da Inclusão, que traz os conceitos de Cidadania, Acessibilidade, Vida Independente.

Recursos de Tecnologia Assistiva possibilitam sua participação na escola, no trabalho, na vida social. Pessoas com deficiência começam a ser vistas no dia a dia.

A Convenção insere o tema da Deficiência no patamar dos Direitos Humanos, apontando a direção a seguir e garantindo conquistas.

O tempo do assistencialismo (que foi importante para garantir sua sobrevivência) começa a ficar para trás.

De incapazes, as pessoas com deficiência passam a ocupar seu espaço de indivíduos com direitos, com muitas e muitas contribuições a trazer para a sociedade, como o conceito de Acessibilidade e seu corolário, o Desenho Universal:

Uma forma de conceber produtos, meios de comunicação e ambientes para ser utilizados por todas as pessoas, o maior tempo possível, sem a necessidade de adaptação, beneficiando pessoas de todas as idades e capacidades

Depois de séculos, o sinal finalmente começa a ser invertido: de quem só “tinha a receber e humildemente agradecer” para quem tem o que aportar, ombro a ombro com os demais, para a construção de uma sociedade solidária, com segurança e dignidade para todos.

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