Helen simboliza a força da violência anulando
todas as iniciativas da escola em busca da
produção da aprendizagem.
Proveniente de lar completamente desestruturado em termos de
relações familiares, era vítima de
espancamentos, tanto por parte da mãe como do
irmão mais velho.
Como se pode imaginar, era privada da figura paterna. Em sua
versão capenga, o “Pai” que o
irmão tentava ser, tinha nele o pior referencial
possível.
Talvez por esse e por outros mil motivos, Helen odiasse a escola e tudo
o que dissesse respeito a ela, incluindo aí a aprendizagem:
o canal mais que perfeito para despejar todo o seu desprezo e a sua
revolta.
Na 4ª série de
aceleração, era a mais alta da fila,
não sem motivo visto contar já com treze anos de
idade.
Já se enfeitava como uma mocinha, sem dispensar um
batonzinho de gosto duvidoso, que vinha todo dia dentro da velha
mochila.
Trazia também outros “apetrechos de
beleza” à escola, os quais prevaleciam sobre o
próprio material escolar.
Não era incomum reclamar que estava sem lápis ou
que alguém havia “roubado” a sua caneta.
Registrava as atividades pela metade e, às vezes, queria
dormir durante a aula.
Quando era solicitada para ler ou produzir um texto
espontâneo, muito pouco se aproveitava de sua
produção.
Não gostava de ser corrigida, não refazia uma
atividade. Helen, simplesmente, não aceitava a escola.
Faltava muito e, no dia em que vinha, era confusão na certa.
Os problemas corriam ao seu encontro como as abelhas em
direção ao mel.
Ela nunca tinha culpa de nada.
Geralmente, era outra criança quem havia provocado tudo e
colocado a culpa nela.
Desvencilhava-se dos problemas com uma naturalidade desconcertante aos
olhos dos que ainda não a conheciam.
Com todo esse “histórico”,
não é preciso dizer que Helen não
conseguia se integrar em nenhuma equipe de trabalho cooperativo.
Ela não conhecia a palavra colaborar porque tudo o que
queria era atrapalhar, tumultuar.
Aquela menina se constituía num verdadeiro
“furacão” na sala de aula e,
à noite, não me deixava dormir.
Eu não conseguia encontrar uma forma de trabalhar com ela.
Um dia, contudo, nossa classe recebeu Gislene, uma aluna que havia sido
transferida de outro Estado.
Gislene estava chegando do Paraná, de onde viera com a
mãe e mais uma irmã um pouco mais velha que ela.
Essa aluna também estava sem o pai, que permaneceu em seu
Estado devido ao término de seu casamento com a
mãe da menina.
Minha nova aluna era tão miudinha que, no meio da turma,
parecia uma criança em idade pré-escolar.
Desde o início, percebemos que Gislene era triste, fechada e
demonstrava sofrimento com aquela mudança em sua vida.
Ela não procurava se enturmar e chorava facilmente.
As crianças logo desistiram de integrá-la ao
grupo e eu fiquei com a tarefa de lutar também por ela.
Além dessas dificuldades, Gislene também tinha
problemas de aprendizagem.
O caderno era limpinho e organizado, mas a única atividade
que ela desenvolvia com competência era uma boa
cópia.
Não tinha escrita autônoma, lia penosamente e
não possuía compreensão leitora.
Bem, agora eu tinha dois desafios: Helen e Gislene.
Helen tinha caminhado muito pouco e o máximo que eu tinha
conseguido com ela era impedir que entrasse em conflito com as demais
crianças, além de uma melhora em sua
frequência escolar.
Gislene, depois de fazer um “giro” pela sala,
acabou sentando-se perto de Helen.
Sem ter tempo de me preocupar com aquela
aproximação, presenciei o inusitado acontecer:
Helen praticamente adotou Gislene.
Nunca havia pensado numa possibilidade dessas.
Uma criança de difícil manejo como Helen de
repente se transformar numa autêntica mãezinha
para outra criança.
Helen era carinhosa e protetora, não permitia que
ninguém aborrecesse Gislene e queria resolver todos os seus
problemas.
Gislene, embora tivesse já onze anos, era muito pequena.
Helen, se quisesse, poderia colocá-la no colo, talvez tenha
sido por isso que a pequena Gislene se transformou num
“bebê” da mais nova amiga.
Então, o mais surpreendente começou a acontecer.
Helen queria ajudar Gislene a desincumbir-se em suas
lições escolares, mas suas próprias
dificuldades a impossibilitavam para tal missão.
Pegava o caderno de Gislene e vinha até mim para perguntar
se estava certo ou como se resolvia aquilo.
Ela fazia isso sem perceber que estava provocando, ainda que
inconscientemente, sua própria aprendizagem.
Era a chance que eu tinha que agarrar com todas as minhas
forças.
Comecei a investir firme na aprendizagem de Helen, escorada no seu
interesse de ajudar Gislene.
As dificuldades de Helen eram tão graves que, às
vezes, Gislene aprendia primeiro que ela.
Quando menos se percebia, os papéis se invertiam e,
não raras vezes, era Gislene quem ensinava Helen.
À medida que sua relação com Gislene
se consolidava, as atitudes agressivas de Helen iam diminuindo
gradativamente.
Trocavam presentes entre si e, por ocasião das
competições da classe (combate de tabuada, de
ortografia ou nos relatos orais de piadas ou histórias),
Helen “treinava” Gislene.
Eu não precisava fazer nada, era só planejar
atividades em que as duas fossem solicitadas e o resto elas faziam
sozinhas.
Elas me enchiam de alegria e eu antevia um final feliz para esse caso.
Contudo, um dia, Helen não apareceu mais.
O ano letivo ainda não tinha terminado quando Helen
engravidou.
O pai da criança era seu mais novo padrasto, e a
mãe a colocou para fora da casa.
Mais uma vez, a violência batia à sua porta e
agora a escola não podia mais protegê-la.
A família de Gislene voltou ao Paraná e Gislene,
quando se despediu de mim, parecia outra pessoa: era uma pequena
vencedora.
Tempos atrás, encontrei Helen com um bebê novinho
nos braços.
Agora, estava casada. Seu primeiro filho foi dado à
avó, para que fosse cuidado, seu nome era Matheus.
Não pude evitar pensar nessa criança sendo criada
pela avó, provavelmente sendo maltratada por parentes
grosseiros a exemplo do que acontecia no passado de Helen.
Estaria sua triste história se repetindo na vida de seu
filhinho?
Helens, Matheus, Gislenes...
Que lições a escola ainda precisa aprender para
amenizar a dura saga de crianças como vocês?
Maria
Tereza da Silva Sardinha do Prado é
Professora de Educação Básica I,
aposentada desde 2007; Habilitada em Pedagogia pela PUC-SP em
Educação Infantil e Fundamental Ciclo l;
Credenciada no curso “Alfabetização
Teoria e Prática à Distância”
pela CENP; Formada pelo MEC (PROFA – Programa de
Formação de Professores Alfabetizadores) sob a
consultoria de Regina Câmara e Telma Weiss; Formada pela CENP
no curso “Letra e Vida” (consultoria de
Kátia Lomba Bräkling e Yara Prado); Fez curso de
Formação de Coordenadores de 1ªs a
4ªs séries, ministrado pela FDE e curso de
Parâmetros Curriculares Nacionais em Matemática,
ministrado pela Secretaria Municipal de Arujá; Trabalhou
também no Projeto Pedagógico para orientar toda a
Rede de Ensino Municipal de Igaratá, destinado a Professores
e Coordenadores da Rede.