Os Irmãos Grimm se dedicaram a registrar os contos da forma
mais pura possível, recém-saída da
boca do povo, em uma linguagem que se assemelha ao
vocabulário das crianças.
Os editores do livro Kinder - und HausMärchen[1] destacam que
os autores:
Afastaram-se da tendência de seus contemporâneos,
de transformar os contos numa representação
(Spiel), na qual se desencadeia um individualismo romântico:
eles permanecem fiéis ao ritmo escutado, que perceberam na
boca dos falantes do povo. Por isso, os contos de Grimm têm
este tom, da maior intimidade popular; por isso eles (os contos)
têm o infantil dentro de si e se deixam contar com tanta
naturalidade para as crianças. (GRIMM, vol. II, p. 589)
Entretanto, as histórias se deixam contar não
apenas para as crianças.
As histórias, os contos maravilhosos de fadas, da
carochinha, entre tantos fazem parte da vida da maioria das pessoas:
crianças ou adultos; que podem sonhar e entrar na magia dos
contos de fadas embalados pela voz doce de alguém que
acredita no poder da palavra.
Hans Cristian Andersen falou com as crianças com o
coração.
Os textos traduziam o sofrimento principalmente destas e reequilibravam
as injustiças sociais na esfera do maravilhoso.
Mas porque apenas as crianças precisam de palavras cuja
essência fale ao coração? Quantos
adultos sentem-se tal qual “O patinho feio”,
“O soldadinho de chumbo”, “A pequena
sereia”?
Com o avanço do racionalismo cientificista e
tecnológico, os contos de fadas e as narrativas maravilhosas
passam a ser vistos como "histórias para
crianças".
Há um novo maravilhoso a atrair os homens: aquele que eles
descobrem não só no próprio real
(transformado pela máquina), mas também em si
mesmos, ou melhor, no poder da inteligência humana. (COELHO,
2000, p. 119)
Alguns desatentos projetam a ação dos contos na
produção de efeitos somente para as
crianças, destacando uma face dedicada ao aspecto
lúdico da fantasia.
Entretanto, ao observar estas narrativas com maior profundidade,
pode-se ampliar as possibilidades para uma ação
efetiva em todos os públicos.
As crianças têm naturalmente um impulso
espontâneo que facilita a recepção das
histórias por conta de serem menos moldadas pela sociedade
materialista - são elas que conseguem aceitar facilmente o
aspecto maravilhoso dos contos. Costa (2006, p. 94) refuta a ideia de
que histórias são para crianças
apenas:
Há, contudo, uma omissão imperdoável
nessa crença de que apenas as crianças gostam e
devem ouvir histórias.
Os adultos recebem com igual prazer, encantamento e curiosidade as
histórias adequadas à sua visão de
mundo e à sua experiência de vida.
Nesse sentido, contar histórias é
também um ato de congraçamento,
que irmana o
público, conquistado pelo desempenho do contador e pela
força do texto escolhido.
Bruno Bettelheim afirma que os contos de fadas ajudam a
criança na difícil tarefa de encontrar um sentido
à vida, e os adultos também. Para o autor
“nada é tão enriquecedor e
satisfatório para a criança, como para o adulto,
do que o conto de fadas folclórico. [...] através
deles pode-se aprender mais sobre os problemas interiores dos seres
humanos”. (1997, p. 13)
Joseph Campbell (2008) acredita que a mitologia desempenha
várias funções, sendo que uma delas
é, ao mesmo tempo, psicológica e
pedagógica.
Para ele, o mito precisa ser o companheiro do ser humano em todas as
fases da vida, por exemplo, como instrutor das crianças e
como preparador para a morte dos idosos.
Em entrevista ao jornal O Globo, do Rio de Janeiro, Couto enfatiza o
valor de ouvir histórias e confirma que estas não
são somente para crianças:
Uma certa racionalidade nos fez envergonhar deste apetite, atirando as
histórias para o domínio da infantilidade. Essa
estigmatização da pequena história
está presente também na literatura: veja-se a
forma como se secundariza o conto em relação ao
romance. O advento e a hegemonia da escrita são
também responsáveis por essa
marginalização da oralidade. (p. 6)
Não é possível apontar ao certo - a
sociedade ou o próprio ser humano - o responsável
por esse rompimento que rouba dos adultos esta experiência
imaginativa e lúdica.
Os adultos são levados a abrir mão dos sonhos,
atrelando suas vidas na rudeza da rotina e deixando de viver uma
essência que, ainda assim, não os abandona.
Tornar-se adulto perece ser o reconhecimento de que algumas coisas
são
impossíveis. Neste sentido “o conto
pode manter viva essa chama de familiaridade com o desconhecido, porque
lá as experiências inexplicáveis fazem
sentido” (MACHADO, 2004, p. 28).
Rossane
Lemos Rossane Lemos
é jornalista, contadora de histórias,
especialista em Audiovisual e mestre em Teoria Literária
estudando os contos de fadas. Atualmente, se dedica à
aprendizagem da língua francesa e à pesquisa dos
contos de fadas em Paris, França.