Minha
avó, que vivia no Japão, costumava sempre verificar
a marca do zíper que iria adquirir porque não
comprava se fosse da YKK!
Devia ser uma tarefa difícil! Você já
reparou na marca do seu zíper?
Quase todos os que usamos são da YKK, porque ela
é a marca japonesa que domina o mercado mundial.
Mas então, por que minha avó tinha esse estranho
comportamento?
Foi a partir desse fato tão pequenino que me foi desenrolado
um caso assombroso e terrivelmente verdadeiro de exclusão
social no Japão.
A minha avó não queria comprar zíper
YKK porque ouvira boatos de que o bem sucedido diretor dessa
indústria era, na verdade, um "burakumin".
O que é isso?
Os burakumin são japoneses comuns, absolutamente iguais aos
demais, mas que são segregados pela sociedade por um
sinistro mecanismo.
Eu uso o verbo no tempo presente, porque o processo de
segregação, enraizadíssimo, continua
até os dias de hoje, sendo quase três
milhões de burakumin na sociedade japonesa atual.
As crianças japonesas, geração
após geração, inclusive minha
avó, sempre foram orientadas e alertadas pelos pais a
evitarem certos vizinhos identificados como burakumin.
Ninguém sabe direito o porquê, mas sempre
aprenderam que era para ser assim!
Dessa forma, os burakumin vivem na sua maioria, em guetos pobres e
enfrentam um mundo mais difícil para se conseguir tudo,
amizade, trabalho, casamento, pois as pessoas, ao redor, fazem
questão de lhes fecharem as portas - na maioria das vezes,
sem nem saberem por que. No mínimo, porque sempre foi
assim...
Minha mãe também não sabia qual a
origem da segregação. Sempre aprendeu que eram
pessoas misteriosamente diferentes...
Então fui pesquisar e achei a história deles com
relativa facilidade, pois já corre há
décadas um movimento libertário organizado dos
burakumin, no sentido de divulgar para conscientizar e erradicar este
grande equívoco social.
Na verdade, os burakumin são, simplesmente, descendentes
diretos de açougueiros, manuseadores de couro ou
preparadores de defuntos... DA ÉPOCA DOS SAMURAIS!
Em um Oriente mais voltado para a alimentação
à base de peixes e legumes e com a religião
xintoísta, a carne sempre era relacionada à
impureza.
Com o fortalecimento do budismo, essa visão acabou se
exacerbando no Japão quando, então, todos aqueles
que exerciam profissões relacionadas com o manuseio da carne
começaram a ser ostensivamente rejeitados, vistos como
inferiores e potencialmente poluidores.
Começaram, nessa época, crescentes
pressões por condutas de limpeza e de higiene sobre esses
trabalhadores, o que mais tarde foi se estendendo para todos os seus
familiares.
O ponto crucial e fatal deste processo ocorreu quando, no
início do século XVIII, todos os trabalhadores
que manuseavam carne foram obrigados a se cadastrar oficialmente e a
usar roupas, cortes de cabelo e de sobrancelhas diferentes.
Essas medidas possibilitariam que fossem identificados, mesmo em
bairros em que não fossem conhecidos, para que as pessoas
pudessem se distanciar de suas possíveis
contaminações.
Ficava também proibida a entrada deles em casas de
famílias "normais" e essas medidas se estendiam a todos os
membros de suas famílias, uma vez que as casas inteiras
desses trabalhadores eram consideradas impuras.
Uma vez identificados e cadastrados na terrível lista que
existe até hoje, foi possível impor
penalizações em forma de taxas para aqueles que
não obedecessem a essas condutas.
Vejam, então, esse exemplo superdidático de como
se sedimenta uma segregação social absolutamente
sem pé nem cabeça, entre pessoas absolutamente
iguais, mas que acabou tomando rumos macabros.
É interessante a maneira como foi "macaqueada" uma
diferença física que não existia, mas
que serve, geralmente, de matéria-prima para as
discriminações mais "clássicas": um
grupo teve que se vestir e se pentear diferente.
Depois, foram cadastrados em papel, institucionalizando a
discriminação. Somando-se a isso a natureza
humana... A coisa foi longe.
A terrível lista permitia traçar os
laços de parentesco daqueles açougueiros
originais com os seus descendentes diretos,
geração apos geração.
Uma tentativa de desinstitucionalização, ocorrida
no século XIX, com o término oficial da lista
não conseguiu, nunca mais, reverter o processo que
já havia se enraizado, fortemente, na sociedade japonesa,
pois estava sendo administrado, autonomamente, em cada lar
japonês!
A identificação dos burakumin estava ocorrendo
eficientemente, geração após
geração, de boca a boca, de pais para filhos.
A lista foi interrompida, oficialmente, mas continuou sendo consultada
por empresas no momento da contratação de um
funcionário novo ou por famílias tradicionais no
momento do casamento dos filhos, através dos
serviços de detetives especializados.
Muitos burakumin tentaram fugir dessa sina mudando de cidade, porque a
identificação, como já foi dito,
ocorria de boca em boca.
Mas existem sempre aqueles humanos que gostam de perseguir, de
“dedar”, de pisar...
Muitos vieram para o Brasil, para escaparem desse passado. Houve bons
retornos!
Anos atrás, em um dos congressos de minorias organizados
pelos burakumin, no Japão, levantaram uma bandeira que dizia
“Viva Paulo Freire” e a
“Pedagogia do Oprimido”, mas voltando à
minha avó, foi isso.
Alguém dedou que o dono da indústria YKK era um
burakumin e uma parcela da sociedade japonesa se mobilizou para tentar
boicotar essa marca e destruir o homem que, se era mesmo burakumin,
ousara escapar do terrível cerco e chegar tão
longe.
Em vão. A indústria dele saiu vitoriosa no
mundo...
Gisele
Akemi Oda é filha
de imigrantes japoneses, nascida em São Paulo, 37 anos.
Formada em Física na Universidade de São Paulo
– USP. Atualmente docente no Instituto de
Biociências da USP, desenvolvendo pesquisa sobre Ritmos
Biológicos.