Dom Pero Fernandes Sardinha, nomeado
Bispo de Salvador em 22 de junho
de 1552, portanto ainda no governo de Tomé de Sousa,
é um desses personagens "condenados" a ser
polêmicos na história.
Apesar de sua grande erudição
teológica e de ter suas qualidades morais gabadas pelos seus
contemporâneos, é consenso entre os padres
jesuítas que aqui estavam, segundo as cartas trocadas entre
eles, que o bispo jamais entendeu as peculiaridades de nossa terra,
nela permanecendo como um estranho ou alguém em permanente
estado de choque, até o "espetacular" desfecho de sua vida.
Ao desembarcar no Brasil, Sardinha vinha muito sobrecarregado:
Primeiro por uma vasta erudição acumulada nos
corredores e salas de aula das melhores universidades europeias, num
país em que até hoje o excesso de
erudição e saber causam estranheza.
Segundo por uma autossuficiência que afastava os bons
conselheiros, indispensáveis para o enfrentamento
bem-sucedido de uma nova realidade; e terceiro por normas de um direito
canônico adaptado a uma realidade cultural estranha
à da diocese que ele ia assumir. A receita certa do mais
completo fracasso.
Primeiros
conflitos
No início, ele foi muito ajudado pelos jesuítas
de Manuel da Nóbrega e recebeu destes todo o apoio, mas logo
começaram os atritos, aparentemente por causa de sua
visão pastoral oposta à destes em
relação aos indígenas.
Isso porque enquanto os jesuítas de Nóbrega criam
numa conversão gradual dos índios, respeitando os
seus costumes e desvinculando o cristianismo da cultura europeia, a
percepção do bispo era fortemente
eurocêntrica.
Sua visão começava por combater acirradamente
qualquer insinuação de nudez ou a simples mostra
de partes do corpo durante a liturgia, como faziam os europeus de seu
tempo, sem falar na obrigatoriedade do uso da língua
portuguesa na liturgia e nos sacramentos – inclusive naquele
que é, até hoje, considerado como fulcral para a
aquisição e o aprimoramento da fé
católica: a confissão.
"Confundindo...
a religião com a cultura, queria o bispo que se exigisse dos
índios, antes de serem admitidos ao batismo, a
capitulação diante da
civilização ocidental" (Sérgio B. de
Hollanda; História geral da
civilização brasileira; vol.2; Bertrand Brasil;
pág. 58)
O passo seguinte foi ainda mais grave: os índios, na
visão do bispo, segundo cartas dos jesuítas aos
seus superiores em Portugal e até ao rei, não
passavam de selvagens, no sentido mais pejorativo do termo, incapazes
de assimilar corretamente o cristianismo como era praticado na Europa
que, segundo a mentalidade do bispo, era o único correto, o
que justificaria, inclusive, a sua escravização,
contrariando uma bula do Papa Júlio III, de 1537, que
declarava ilícita a escravidão dos
índios.
O choque de concepções foi tão forte
que Nóbrega, pretextando dar uma ajuda à
fundação do aldeamento de São Paulo,
pediu licença a Sardinha e viajou para o sul, em 1552. O
bispo ficou entregue aos seus próprios
pré-conceitos e aos membros menos preparados do clero de
Salvador.
Segundo Pedro Calmon, em sua História do Brasil, o bispo
cometeu outro grave erro ao se cercar de vários
clérigos despreparados e até mal-afamados, para
formar o seu cabido – conjunto de padres que servem junto ao
bispo no serviço de uma catedral – o que
só serviu para agravar a situação.
Com auxiliares tão despreparados, o bispo começa
a meter os pés pelas mãos também com
os colonos, exigindo de forma muito acintosa que eles cumprissem os
seus deveres de fiéis cristãos, em especial no
pagamento do dízimo, feito com guarda armada e
ameaças, o que era aceitável para os
padrões daquele tempo, mas não por pessoas que
estavam longe de serem exemplos de "bons cristãos", como os
colonos aqui estabelecidos.
Sardinha completou as suas medidas, excomungando o donatário
da Capitania do Espírito Santo, Vasco Fernandes Coutinho,
que, deprimido pelo fracasso de seu empreendimento, deu-se ao
vício indígena do fumo, algo
inconcebível para o bispo, que o apartou oficialmente da
igreja Católica, não sem antes
submetê-lo à humilhação
pública de ser expulso de um ato religioso.
Fora
de controle
Com a chegada do segundo governador, Duarte da Costa, em 13 de julho de
1553, trazendo o seu filho primogênito Álvaro da
Costa, a situação tomou um rumo inesperado, pois,
segundo uma certa tradição, ele era um jovem
impetuoso e dado a farras – como nas baladas de hoje.
Nesse caso, Álvaro da Costa seria o patrono de todos os
"filhinhos de papai" que até hoje infernizam o sono da gente
trabalhadora – que começaram a incomodar os
moradores mais sossegados e a desafiar a autoridade do bispo, que, como
era do seu feitio, fez um duro sermão a respeito desses
acontecimentos na frente dos interessados.
O efeito foi imediato: o governador tomou o lado do filho e a pequena
cidade do Salvador viu-se dividida em duas
facções inconciliáveis. Chegou-se
à beira do conflito generalizado, enquanto na periferia os
troca-tapas, as ameaças, os desaforos e as
prisões arbitrárias começaram a
ocorrer. Nada de novo sob o sol!
Esse conflito, retratado de diferentes maneiras, conforme o autor se
coloca, quer a favor do bispo ou quer a favor do governador, revela bem
a imaturidade psicológica dos principais envolvidos, o que
nos faz desconfiar de sua condição de
"novo-rico", gente que emigrou muito rapidamente de uma
posição social desfavorecida para uma muito
eminente.
Muito parecido ocorreu com a nova nobreza após a
Revolução de Avis (1383-85), processo esse que
só fez aumentar com o incremento do comércio
colonial e, como nós observamos na história
recente do Brasil, nós sabemos o quanto a sensibilidade e o
amor próprio dessa gente é sensível e
dado a reações explosivas, públicas e
desproporcionais.
Os índios aldeados ao redor da cidade, provavelmente
contrariados tanto com a política de catequese do bispo como
dos excessos cometidos contra eles pelo filho do governador e
percebendo o conflito entre os portugueses, aproveitaram-se para
levantar-se em 1556, obrigando os dois lados a uma trégua.
O comando da reação colonial foi entregue a
Álvaro da Costa, que conseguiu, com uma grande mortandade de
índios, uma vitória incontestável,
debelando a rebelião, enquanto deixava a
situação do bispo ainda mais difícil,
afinal, a função do clero, prevista no Padroado
Régio, carta que regulava as relações
entre o estado e a Igreja em Portugal, era de apaziguar os
espíritos para viabilizar a
colonização e a
cristianização que daí adviria.
Ora, a ação de D. Sardinha estava longe de
atingir esse objetivo, por isso ele foi destituído do cargo
em 2 de junho de 1556 e convocado, junto a alguns de seus
partidários, para ir a Portugal para dar
explicações ao rei.
Em 15 de junho de 1556, D. Sardinha embarcou no navio "Nossa Senhora da
Ajuda", mas no dia seguinte o navio, levado por ventos e corrente
contrários, foi dar em uma praia onde encalhou, e seus
ocupantes, passageiros e tripulação foram
capturados, mortos e devorados pelos índios locais em um
festim canibal.
As
controvérsias de Moacyr Soares Pereira
O impacto da morte de Sardinha na Europa foi tremendo, nunca antes um
alto clérigo da Igreja Católica sofrera um fim
tão "selvagem" para a mentalidade do europeu da
época, por isso o estado colonial português
apressou-se em cair como um raio sobre os responsáveis.
Em 1557, a regente de Portugal, Catarina da Áustria,
declarou guerra perpétua e autorização
para escravizar os índios caetés, supostos
causadores da morte do bispo, segundo podemos ver no artigo do falecido
professor Moacyr Soares Pereira, "O naufrágio e morte de D.
Pero Fernandes Sardinha, primeiro bispo do Brasil; sua
revisão histórica" (Revista do Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro; abril-junho,
1995, pág. 285).
a)
A responsabilidade dos caetés.
A responsabilidade dos caetés sempre esteve muito ligada
à crença que se construiu ao longo da
história de que o naufrágio ocorreu na barra do
rio Cururipe, em Alagoas, terra tradicionalmente habitada pelos
índios caetés, de fala tupi, senhores da faixa
litorânea que ia de Alagoas até o sul da
Paraíba.
Essa versão tem sua principal fonte nos escritos de um
senhor de engenho da época chamado Gabriel Soares, em seu
Tratado descritivo do Brasil, que, vindo de Portugal, chegou aqui em
1577.
O problema é que documentos antigos, pelo menos quatro,
feitos por contemporâneos desse acontecimento, ignorados ou
só recentemente encontrados, revelam que a nau do bispo
naufragou não na barra do Cururipe, mas na barra do rio
Vaza-Barris, mais ao sul, no território de Sergipe,
área tradicionalmente associada aos índios
tupinambás, também de língua tupi, mas
inimigos dos caetés.
Entretanto, também é certo que entre esses dois
povos havia uma guerra interminável e, não raro,
a fronteira entre eles se movia conforme um ou outro
avançava nos territórios dos
adversários.
O trabalho dos pesquisadores Marcos Eugênio O. Lima e Alan M.
Matos de Almeida da UFS, assim como a página do professor
Ivan Paulo sobre a história de Sergipe sustentam que havia
caetés em Sergipe. A autoria dos caetés,
portanto, pode até ser descartada, mas não por
causa do critério geográfico.
Outra questão surge do costume dos próprios
índios. Um sucesso tão arrasador como esse (que
redundou na prisão e devoramento de dezenas de pessoas)
seria um motivo de glória para uma tribo.
Surge, então, a indagação: Por que os
tupinambás, que também eram inimigos
incondicionais dos portugueses, como os caetés, abririam
mão dessa "glória" para deixar a "culpa" e a
"glória" recaírem toda sobre os caetés
se eles, naturalmente, pouco se importavam com o desconforto e os
valores dos portugueses e nem acreditavam que estes fossem
tão poderosos assim (tanto é que nunca deixaram
de travar contatos com os franceses)?
Para mim, uma coisa até esse momento é
absolutamente certa: o naufrágio ocorreu na barra do
Vaza-Barris em Sergipe – se alguém quiser se
aprofundar a respeito, eu recomendo o artigo citado de Moacyr Pereira
na Revista do Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro constante em http://www.ihgb.org.br/rihgb.php?s=20.
b)
A punição contra os caetés
Segundo o mesmo Moacyr, a acusação contra os
caetés fez parte de uma campanha orquestrada e colonialista
para justificar a guerra justa contra esses índios, sendo a
sua extinção, ocorrida poucos anos depois, um
mero genocídio: "o maior genocídio contra do
índio brasileiro no primeiro século da nossa
história".
Desconsiderando que o termo genocídio só
surgirá na linguagem jurídica mundial em 1944 e
oficializado pela comunidade mundial na Carta de Londres de 8 de agosto
de 1945, sendo, por conseguinte, totalmente inadequado para
caracterizar um evento do século XVI, a decisão
de atacar e destruir os índios de Alagoas e Sergipe
não era tão simples assim.
Portanto, precisa ser enquadrada dentro da lógica colonial,
esta sim condenável, embora não deva ser julgada
pelos mesmos valores de hoje, sob pena de caírmos em
anacronismo – concepção que
desconsidera a evolução das sociedades ao longo
do tempo.
b.1.
É certo que os
colonos portugueses nunca precisaram de acontecimentos tão
dramáticos para obterem a autorização
real para fazerem suas guerras se tornarem "justas" no Brasil, quando
se davam a esse trabalho, sem falar que os caetés
já vinham há muito tempo movendo guerra contra os
colonos de Pernambuco, que os desalojaram de sua terra.
A morte do bispo não acrescentou nada ao status dos
caetés com os colonos portugueses, não se
justificando a tese de um complô que se deu ao trabalho de ir
até Portugal para "fazer a cabeça" da regente
contra os caetés.
b.2.
Gabriel Soares fala em sua obra que os caetés foram punidos
com a extinção cultural por essa
“desfeita sacrilega” ao poder colonial, pouco tempo
depois do ocorrido.
O professor Moacyr Pereira concorda com isso e, inclusive,
esclarece-lhe o tempo: 5 anos após o massacre do bispo. Mas
aí começam os problemas para a tese do professor
Moacyr.
b.2.1.
Segundo Soares, o fim dos caetés está ligado a
uma confederação de tribos tupis e jês
da Bahia e do Pernambuco, formada logo após o incidente com
o bispo para dar uma lição nos caetés,
em vista de sua "excessiva" agressividade e ardor guerreiro.
Ainda segundo Soares, foi o ataque dessa
confederação de tribos que de fato desmantelou os
caetés, ficando aos portugueses a oportunidade de ajudar no
extermínio com ataques secundários,
além da incorporação de muitos
caetés ao plantel dos escravos na colônia. Aqui
Moacyr Pereira e Gabriel Soares divergem.
b.2.2.
Um texto constante no livro O feudo: a Casa da Torre de Garcia
DÁvila, de Moniz Bandeira, pág. 133, Google
Books (versão online) – além de Pedro
Calmon – diz que uma expedição
punitiva-escravagista contra os caetés foi enviada a Sergipe
(?) pelo Governador-Geral Manuel Teles Barreto.
Tal expedição foi completamente massacrada pelos
caetés de Sergipe, aliados aos franceses, junto ao Rio Real,
na fronteira com a Bahia, entre 1583 e 1587.
Eis um trecho do livro de Moniz Bandeira que narra esse
episódio: "quando os caetés que habitavam o rio
Sirigi (Sergipe), acima do rio Real, na enseada do Vaza-Barris...".
Frei Vicente do Salvador fala desse episódio no seu livro
"História do Brasil", Livro Quarto, Capítulo
Décimo Sétimo, "De uma grande
traição que o gentio de Sergipe fez aos homens da
Bahia, e a guerra que o governador fez aos Aimorés", embora
lhe dê uma motivação bem diversa
daquela dada pelos autores precedentes.
A data e o posicionamento geográfico dos caetés
nesses textos levam de roldão quase tudo o que se afirmou
nos parágrafos acima.
b.2.3.
Frei Vicente do Salvador no Livro Quarto, Capítulo
Vigésimo, pág. 96, edição
online, fala que Cristovão Barros, o filho bastardo de
Antônio Cardoso de Barros – donatário
fracassado da Capitania do Ceará e um dos devorados no
naufrágio do Vaza-Barris – resolveu se vingar dos
índios que haviam morto o seu genitor, e que habitariam em
Sergipe.
"Muito estimou Cristovão de Barros entrar no governo para
poder ir vingar assim a traição, que o gentio de
Sergipe fez aos homens da Bahia (no massacre do rio Real)... como a
morte de seu pai Antonio Cardoso de Barros, que ali mataram e comeram,
indo para o reino com o primeiro bispo desta Bahia".
O professor Moacyr ganha um ponto precioso em sua tese ao mesmo tempo
em que sofre uma derrota acachapante: a expedição
punitiva de Cristovão de Barros ao gentio sergipano
(tupinambá ou caeté?). Se o relato de frei
Vicente for plenamente confiável, deu-se em fins de 1589, 33
anos após o naufrágio do bispo! Como fica a tese
da "guerra santa" e do "genocídio" imediato contra os
assassinos do bispo?
O texto de frei Vicente dá muito mais ênfase ao
desejo de vingança pessoal de Cristovão de Barros
do que a uma pretensa política "genocida" do estado
português, na qual elementos de justiça bruta
"guerra tão justa dada com o consentimento de el-rei", seja
por conta da morte do bispo seja por causa da aliança,
estreita e contínua, que os índios de Sergipe
faziam com corsários franceses, misturam-se
interesses bem pessoais com políticos e outros muito
objetivos; "esperaram trazer muitos escravos".
O
rescaldo
O incrível fim de Pero Sardinha – não
conheço a história de outro bispo da Igreja
Católica que tenha conhecido morte semelhante –
sacudiu durante séculos o imaginário do povo
brasileiro, ora condenando ora aplaudindo, e até procurando
ver nele o sinal da nossa afirmação cultural.
Houve reflexo também no "Manifesto Antropofágico"
de Oswald de Andrade, de 1927, que via no fim do bispo um
símbolo – este, que tanta questão fazia
que os índios se tornassem espiritualmente europeus, acabou
sendo transformado, literalmente, em índio – e
termina o seu texto em uma ironia ácida autodatada no "ano
374 da deglutição do Bispo Sardinha".
O final do Manifesto pode até valer como uma nota de humor
negro, mas aquilo que ele vê no acontecido não
podia ser mais equivocado, pois a morte do bispo desencadeou fortes
paixões e motivação
psicológica que levou a uma das mais raivosas
matanças de índios de nossa história,
enfraquecendo as possibilidades de afirmação
cultural destes ao longo dos primeiros séculos.
Será esta a vingança final do bispo ou um aviso
de que não convém que política e
religião andem juntas?
O caráter pendular de nossas reações
emocionais acaba por se refletir no caráter
também pendular em nossa forma de abordar os problemas
nacionais e a nossa história.
À historiografia "tradicional", sempre preocupada em apontar
para a estabilidade e o consenso social em torno de valores e figuras
históricas consagradas pelo costume ou a
tradição, sucedeu outra que só
consegue ver conflitos, luta de classes etc., usando deste como uma
camisa de força tal qual os costumes e a
tradição faziam antes em
relação aos "grandes personagens".
Assim, logo se veem conspirações,
genocídios etc., em que um sentido histórico mais
moderado veria um conjunto de situações
historicamente condicionadas, levando para um desfecho que
não é exatamente aquele que desejaria o
historiador.
É, por acaso, função de a
história completar as lacunas do tempo com as sobras dos
historiadores?
É tão absurdo assim ver, no massacre dos
índios de Alagoas e Sergipe, o resultado de movimentos
históricos profundos e gigantescos, não
necessariamente sob o completo controle dos agentes, como o quer a
"historiografia das intenções" ou "das
conspirações", tão comum em nossa
intelectualidade de esquerda?
Seria muito complicado ver índios e colonos envolvidos por
acontecimentos e/ou movimentos que ultrapassavam de muito a sua
compreensão imediata, o seu discernimento e o seu poder de
decisão, enquanto se procura, por meio de uma
análise linear, comprovar em apenas um acontecimento a
única crença possível que alguns
alimentam acerca das motivações e movimentos
históricos?
Voltamos à camisa de força, ao dogma,
à mistura explosiva de religião com
política, transformando a política em
religião.
Agitar gratuitamente um conceito, procurando moldá-lo a tudo
que, ainda que distante, se assemelhe ao seu uso original é
desmoralizá-lo por completo.
Esse fato é grave quando nos referimos a um tão
carregado de significado e emotividade como "genocídio", que
nos induz logo à imagem de homens, mulheres e
crianças desarmados, que não representavam o
menor perigo objetivo, sendo levados ao matadouro pelo simples fato de
estarem ali, como se a sua simples existência já
fosse uma provocação, conforme o conceito foi
originalmente criado em meados dos anos 1940.
Será que o que aconteceu em Sergipe no século XVI
se enquadra nesse conceito?
Sem negar que em muitas partes houve uma matança
desnecessária, injustificada e covarde de índios,
neste caso há controvérsias:
a)
Os autores antigos são unânimes em dizer que esses
índios estavam em estreita aliança com
contrabandistas e piratas franceses, e que em
função disso a ligação
terrestre entre a capitania mais rica, Pernambuco, e a capital da
colônia, Salvador, distando apenas uns 800 km, estava cortada.
b)
Que os franceses
não apenas contrabandeavam o pau-brasil local como
também armavam e orientavam militarmente os
índios locais (caetés ou tupinambás?).
c)
Que os franceses participaram ativamente no combate à
expedição luso-indígena massacrada
junto no rio Real, sem falar que durante o embate final entre
Cristovão de Barros e os índios de Sergipe, acima
referido, estes mostraram uma grande sofisticação
bélica, com armadilhas e manobras diversionistas, comuns a
um exército europeu, mas estranhas à
concepção de guerra indígena.
d)
O texto de Pedro Calmon diz o seguinte: "O mesmo missivista da
Companhia de Jesus (provavelmente o visitador Cristovão de
Gouveia) explicava: "...De três anos a esta parte somente
nesta Capitania (Sergipe), são mortos em semelhantes
entradas perto de 500 homens brancos, e que com estes são
agora alguns seiscentos (o autor se refere ao grupo massacrado no rio
Real, que constava de uns 130 portugueses e
mestiços), pág. 929-930.
O livro de Muniz Barreto diz: "o número de portugueses
mortos pelos índios em semelhantes entradas naqueles
últimos três anos subiram a mais de 600"
(pág. 133).
O que houve em Sergipe foi uma guerra, uma guerra duríssima
para ambos os lados, na qual os nativos levaram a pior e sofreram as
maiores perdas.
Certamente, foram por razões de ordem
econômica e política que moveram a
metrópole a dar guerra de extermínio aos
índios de Sergipe, servindo a morte do bispo apenas como um
pretexto menor ou secundário.
A morte do bispo, então, serviu para enfurecer e
mobilizar o homem comum, o soldado, a bucha de canhão, que
partiram para lá pensando em mover uma guerra santa, em
serem o braço da vingança divina, logo ele que
era tão humilhado e desprezado no seu cotidiano, da mesma
forma como motivou os índios a darem mais de si, a confiarem
que a vitória era possível.
Afinal, se eles haviam sido bem-sucedidos no episódio do
naufrágio, por que não o seriam agora?
Outra coisa que fica clara é o desencontro entre as diversas
fontes. Abundam omissões, lacunas,
contradições etc.
Isso é raro na nossa história? É
tão difícil assim aceitar isso e se conter para
não sair completando,
sem esclarecer ao leitor, o que falta
às crônicas originais, considerando que a retirada
ou o corte de uma informação, nessas
condições, seria um crime de lesa
memória?
Desde que os impostos estivessem sendo pagos em dia, em nada
interessava ao estado colonial coletar dados sobre acontecimentos
sociais relevantes, afinal não havia, para o Estado, nada
relevante fora do fisco, como parece acontecer até hoje.
Bibliografia
BANDEIRA, Moniz. O feudo: a Casa da Torre de Garcia DÁvila.
Google-Book: online. p 132-135, 148. Acesso em 22/02/2012.
CALMON, Pedro. "História do Brasil". In:
Enciclopédia Delta Larousse. 2ª ed. Rio de Janeiro:
Delta, v. II, 1964. p 929-930.
HOLLANDA, Sergio Buarque (org). História Geral da
Civilização Brasileira. Rio de Janeiro: Bertrand
Brasil, 1997. p. 119, 125, 132 v.I e p.58 v.II.
PEREIRA, Moacyr Soares. "O naufrágio e morte de D. Pero
Fernandes Sardinha, primeiro bispo do Brasil; sua revisão
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Geográfico Brasileiro. abril-junho, 1995. p. 285.
edição online.
SALVADOR, Frei Vicente do. História do Brasil. p 93-94.
edição online.
SOUSA, Gabriel Soares de. Tratado descritivo do Brasil.
edição online.