Por que um restaurador de memórias fala tão
fluentemente sobre a vida hoje em dia? Por que fala das
relações de um ser humano com o outro em
sociedade? Não deveria este profissional estar estudando e
pesquisando formas de tratar os materiais envelhecidos e doentes que
compõem o patrimônio histórico?
Patrimônio... Esta é a resposta! O restaurador,
profissional habituado a conviver com os grandes feitos humanos,
percebe em obras de arte, prédios, documentos, livros,
monumentos, entre tantas outras formas de expressão do homem
antigo, certo detalhe qualquer que fez com que tudo se transformasse em
patrimônio.
Patrimônio humano. Seja ele construtivo, como a
memória de Mahatma Ghandi, ou destrutivo, como de Hitler,
mas patrimônio indiscutível do homem moderno.
É a história com seus começos, meios,
fins e, ainda, trilha sonora a exemplo de uma peça de
teatro, mostrando a face do desenvolvimento desde o acender das luzes
até este momento presente, final do passado e
início do futuro.
Nós, restauradores, temos a obrigação
de considerarmos que o homem produziu suas memórias e estas
são para a humanidade uma segurança de
manutenção de seu próprio aprendizado,
desenvolvimento e sobrevivência. Nessa ordem, pois estamos
olhando do presente para o passado e, depois, para o futuro.
Como saber o que os primeiros cientistas descobriram se não
fossem seus relatórios? Como saber o que os primeiros
escritores escreveram se não fossem seus livros? Como saber
o que os homens fizeram se não fossem seus
prédios e monumentos? Como ter conhecimento futuro sem nada
disso?
Um restaurador que se preze conhece muito da mente humana e, talvez,
saiba em que nível está seu desenvolvimento,
conhecimento e maturidade. É praticamente “osso do
ofício” nos perguntarmos o porquê das
obras humanas, como foram construídas e para que foram
criadas.
Assim, aprendemos a conhecer os caminhos, de que forma o homem os
percorre e para onde quer ir. É lógico que um
restaurador não tem um domínio total disso devido
à pequena amostra de obras que passam por suas
mãos durante sua carreira profissional, mas aprende a
aprender, a pesquisar e a interpretar.
Em apenas uma peça encontra uma
intenção, um material, um testemunho de muitas
coisas, de muitas ações. Encontra, sobretudo, uma
disposição de materializar algo e mandar para o
futuro como uma arca de conhecimentos e mistérios, na mesma
proporção.
É por isso que um restaurador que tem em sua atividade a
missão de desvendar, de recompor, de tratar e de conservar
os materiais de uma peça, passa a refletir em como
poderá fazer para que o que descobriu sobreviva ao tempo e
ao próprio homem.
Da sobrevivência de uma peça histórica,
devidamente tratada por um restaurador, depende uma fonte de
conhecimento futuro. Que responsabilidade! Que compromisso assume com
velhos homens que construíram velhas peças! Como
assiste o restaurador às intenções
humanas, pois, quem ontem foi herói, hoje pode passar a ser
bandido por um desses reveses históricos, como a derrubada
da estátua de Lênin, por exemplo.
E existe, ainda, o contraponto quando o restaurador, ao deparar-se com
uma velha peça construída com técnicas
e materiais que não existem mais, tem que pesquisar novas
técnicas e materiais para o tratamento da futura fonte de
conhecimento – que deve sobreviver para ser a panaceia dos
males futuros de nossa civilização. Bem
sério assim!
Este restaurador vive em vários mundos, mas mora em um mundo
moderno, em uma sociedade não muito interessada em
patrimônios culturais como fonte de conhecimento e que
até pensa que as peças antigas e seus produtores
são velharias que meramente ocupam lugar nas ruas, nas
bibliotecas e nos museus.
Pobre restaurador que sabe que não é nada disso!
Que percebe a importância das memórias
entrelaçadas em velhas peças mofadas, amareladas
e quebradas. Pobre restaurador, isolado Dom Quixote, cheio de
lesões por esforço repetido testemunhando o
descaso com o patrimônio histórico, tão
responsável pelo desenvolvimento social... O
patrimônio? Não! O descaso!
Eu, restauradora, aviso que existem memórias mais velhas,
menos
velhas e novas! As expressões
“Não! O descaso!” que antecederam a
estas e que teclei solitariamente em um domingo à noite,
já são memórias e, Deus queira,
patrimônios.
Não é mais possível desenvolvermos uma
sociedade sem memórias e sem memória! Em tempos
modernos, em que abrimos nossas cabeças, retiramos o
cérebro e o colocamos em nossas próprias
mãos em forma de notebook, Ipad, Ipod e celulares que falam,
calculam, conectam-se e enviam mensagens de texto, é preciso
perceber que a tecnologia não substitui as
relações interpessoais, nem os sentimentos e as
vivências de cada ser humano, seu maior patrimônio.
Não podemos substituir o mundo real pelo virtual e
é exatamente o que estamos fazendo. Nossas
relações estão adoecidas, nossas
liberdades egoisticamente dilatadas, perdemos o ser na busca do ter e
não conseguimos sentir um mundo real, não virtual.
Não percebemos nossos próprios movimentos e
não produzimos memórias. Não temos
tempo para nos relacionarmos fora das redes sociais. Nelas
não existem compromissos como continuidade, fidelidade,
verdade, pois serei rei se assim desejar informar aos participantes dos
chats.
Por estas razões, não temos a vida que queremos,
não temos a cidade que queremos e não somos, nem
de perto, quem queremos ser. No fundo, todos nós queremos a
felicidade, mas não estamos encontrando caminhos reais para
chegarmos até ela. Enquanto nos distraímos com as
redes sociais virtuais e artificiais e nossa existência
dependendo de estarmos ou não plugados em tomadas, nossa
família, nossos amigos de carne e osso, nossa cidade e nosso
país ficam à deriva de nossa
atenção verdadeira.
Não adianta olharmos nosso patrimônio
histórico nos museus como velharias e nossos amigos na rede
social como modernidade. Enquanto isso, nossos monumentos e
prédios históricos ficam sem tratamento e
pichados, adoecendo quase que de morte e retratando, talvez, a
sociedade na qual estão inseridos.
Nossos amigos virtuais não viram patrimônios,
vivências e afeto. São meros espectros, fantasmas
habitantes de nossa solidão! Por estas razões, um
restaurador sabe que os movimentos de um ser humano em busca de sua
felicidade passam e passarão pelas memórias.
Produzindo ou contemplando, mas sempre considerando como fonte de
inspiração e conhecimento.
Portanto, uma restauração não
é somente uma técnica. É um jeito de
viver e, o restaurador, alguém que sabe muito sobre a vida,
sobre os que já saíram dela, os que
estão nela e os que precisam voltar a ela.
Esta é a importância de salvaguardarmos as
memórias históricas, pois são grandes
fontes de conhecimento universal e secular, momentaneamente preterido
pelos cérebros manuais eletrônicos, mas que
estarão ainda ali, mesmo quando tudo isso ocupar o lugar
apropriado na vida do homem contemporâneo... Quando ele
colocar a cabeça no lugar de volta e descobrir as velhas
práticas que mantiveram e desenvolveram a vida
planetária por todo o sempre!
Alice Prati é Restauradora e autora do projeto e livro
“SOS Monumento”. Contato e Site:
atelieraliceprati@terra.com.br / www.galeriadorestauro.com.br