Aprender com as Diferenças
 

A Diversidade Sinalizando o Desconhecido - 10/08/2011
Lilia Pinto Martins

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Li recentemente no Portal RAC, portal do maior grupo de mídia impressa do Interior de São Paulo, uma reportagem de nossa amiga Katia Fonseca, jornalista e Presidente do CVI-Campinas. A matéria, do dia 25 de julho, trazia como título “Casal com Nanismo Gera Criança Sem Problema Físico”.

Recolho da reportagem aqueles trechos que considero mais significativos para conhecer a história do casal e, neste contexto, lançar algumas questões que me parecem instigantes. A começar pela introdução da própria reportagem:

 A ciência garante que é possível, mas a maioria duvida: pessoas pequenas(1) podem gerar filhos que terão estatura padrão. Fabíola Dreher Guimarães e Fernando Vieira Guimarães são a prova viva disso. O casal, que mora em Campinas, deu à luz, nesta segunda-feira (25), Lívia, uma bebê com saúde e que não terá problema de crescimento. Fabíola tem 21 anos e mede 1,20m. Fernando tem 28 anos e mede 1,35m. Eles se conheceram há cerca de três anos pela internet. Em maio de 2009, eles se viram pela primeira vez numa balada de pequenos, em São Paulo. Começaram a namorar e, em um ano, estavam casados. Nenhum dos dois nasceu em Campinas. Ela é do Paraná e ele nasceu na capital paulistana, sendo que vieram para Campinas por diferentes razões: Fabíola em busca de melhores oportunidades de estudo e trabalho e, Fernando, atrás de Fabíola...” “Me apaixonei por ela, confessa”. “Fabíola ficou grávida sem planejar. No entanto, filhos sempre estiveram nos planos de ambos. Nos três primeiros meses, Fabíola passou muito mal por causa dos enjoos, mas nada que não seja esperado da maioria das gestações. Depois, teve uma gravidez tranquila. Fabíola e Fernando preferiam ter gerado um bebê como eles – que se tornasse também um pequeno. “Os médicos torciam para que nossa filha tivesse estatura padrão e achavam que a gente torcia pra isso também”, conta o pai. Ambos estão ainda em suspenso a respeito de como será criar uma criança grande. “No começo, eu estava pirando com o fato do bebê não ser um pequeno, confessa Fernando.” “A mamãe ainda não sabe como vai agir e se sentir frente a doce Lívia que acaba de nascer, mas sabe o que quer para o futuro de sua bebê.”

Uma reportagem sensível, apresentando a narrativa de simples fatos que cercam nosso cotidiano e estimula-nos a ir além dos fatos, procurando ângulos não antevistos. Desse modo, fui instigada a examinar dois aspectos da reportagem que me chamaram a atenção de imediato.

Em primeiro lugar, fica patente o afeto e o cuidado que ambos inspiram um para com o outro, cercando a relação de uma “liga” muito peculiar chamada enamoramento. Nada de muito particular, já que esta “liga”, ou melhor, esse “vínculo afetivo” é parte intrínseca das relações humanas.

Mas o que dizer, vindo de pessoas tradicionalmente tratadas como “bobos da corte” e vivendo apenas em função do divertimento e do prazer que despertam nos outros? Como imaginar, pensariam alguns, que neste “mundo dos pequenos”(2) existiria algo além daquilo para o que estes “pequenos” estão destinados, ou seja, ser pretexto de piada para espetáculos circenses ou programas humorísticos? Nada mais reducionista que um pensamento desta natureza, revelando o quanto dentro de nossa “humanidade” podemos ser perversos, estigmatizando pessoas e confinando-as em padrões de existência muito aquém de sua condição humana.

Felizmente, a realidade, sinalizando fatos como o da reportagem, confirma uma convicção que sempre tivemos e que mostra como a diferença que cerca os humanos entre si não lhes retira a humanidade, conferindo-lhes os mesmos anseios e desejos que acompanham os seres humanos em geral desde que o mundo é mundo. E por uma razão muito simples: somos pessoas, acima de qualquer diferença.

Um segundo ponto a focalizar: Tanto Fabíola quanto Fernando mantinham a expectativa de ter um filho também “pequeno”, mostrando-se surpresos ao tomar conhecimento do contrário, por não saberem como seria lidar com uma criança “grande”, ou seja, com uma filha que terá padrões de estatura diferenciados dos padrões de ambos. Eu mal leio este trecho da reportagem e me vem algumas perguntas:

Curioso, a expectativa do casal não deveria ser o inverso da que experimentaram, ou seja, ter um filho com uma estatura padrão, que o identificaria dentro dos padrões sociais da normalidade?

Não é sempre a expectativa pela “normalidade” que se coloca frente a situações novas, profundamente investidas de emoções e sentimentos, como é o nascimento de um filho?

E não é exatamente o contrário que se verifica, isto é, a “normalidade” da filha causando dúvidas e estranheza ao jovem casal?

Como é desejar que se repita no filho uma condição de “diferença” que, em lugar de trazer seu significado intrínseco de individuação, é normalmente tratada e representada como minusvalia?

Que força misteriosa é esta que atrai para o que é “igual” mesmo quando o igual significa a diferença?

Sim, porque o caso em questão é exemplar para apontar este paradoxo, pois a condição de diferença dos pais é vivenciada como “normalidade” a ponto de suscitar neles a expectativa por um filho igual dentro da diferença que os identifica. E, para surpresa geral, a condição de “normalidade” da filha causa estranheza exatamente pela diferença que apresenta em relação aos pais.

Este questionamento leva a supor que, em princípio, somos guiados pelo desejo por um mundo que não tenhamos que ser defrontados com a diversidade, condição que não deixa de ser aprisionante, mas que sem dúvida fala de sentimentos e desejos bem primitivos.

Tenho a impressão que, de fato, estar frente à diversidade com tudo o que isto representa é dar-se conta de um outro, que, sendo diferente de nós, suscita dúvidas, angústias e conflitos por fugir do nosso desejo de ter este outro como espelho de nós mesmos, continuando a ilusão de que somos o centro do mundo.

Nada nos assusta mais do que o desconhecido e o inesperado que rompem com esta ilusão, retirando-nos do “paraíso” e reavivando ameaças muito primitivas, tanto de nosso passado pré-histórico quanto de nosso psiquismo primário, formado por fantasias inconscientes que nos acompanham em nosso desenvolvimento humano.

Lidar com a diferença, trazendo o desconhecido e o inesperado, será sempre uma situação desafiante, frente, talvez, a uma escolha alternativa e preferencial que não apresente conflitos à primeira vista. Esta pode ser uma das razões pelas quais é tão usual colocar alguns segmentos que representam a diversidade fora dos padrões humanos e sociais.

Contudo, nada é tão ilusório quanto negar o conflito em quaisquer perspectivas das relações humanas. Conflito, a meu ver, tem origem não só de litígios intransponíveis, mas também de processos estruturantes para relações mais humanizadas e oxigenadas, exatamente pela presença da diversidade dentro do tecido social.

(1) Denominação adotada pelo casal entrevistado.

(2) Adoto a denominação utilizada na reportagem, seguindo a opção do casal entrevistado.

Lilian Pinto Martins é presidente da CVI - Rio (www.cvi-rio.org.br).

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