16/2/2004 - Inversão de valores - 16/02/2004
Passar no vestibular ou educar os filhos para a vida?
Entro nos principais sites de notícias, alguns especializados em educação, e como notícias destacadas vejo apenas informações a respeito do final dos vestibulares. Listas de chamadas, prazos de matrícula, início previsto das aulas, aprovações em 2ª chamada,...
Ao mesmo tempo, percebo em São José dos Campos a publicidade maciça das escolas especializadas em preparação para os vestibulares em outdoors espalhados por vários bairros. Acompanho as notícias da instalação de novos cursinhos e, a contrapartida desse movimento, a perda acentuada de alunos pelas escolas mais tradicionais do município.
Esse fato tem acontecido em outras cidades do interior paulista, assim como nas capitais e em grandes e prósperas cidades de outros estados do país.
Os dois acontecimentos mencionados, relacionados pelo simples fato de que os exames de admissão para as universidades (os vestibulares) fizeram surgir esse modelo de educação preparatório, conhecido popularmente pelo nome de cursinho, são temas de discussões acaloradas dentro do universo educacional há anos.
O mais interessante é notar que os cursinhos mais conhecidos, amparados por um enorme aparato de marketing, fixaram no inconsciente (ou será consciente) coletivo a idéia de que, para passar nos tal vestibular seria necessário fazer o Ensino Médio numa dessas escolas ou, ao menos, fazer uma preparação adequada freqüentando os cursinhos.
É notável como a fixação da mensagem foi rápida e eficiente. Tive a oportunidade de trabalhar em escolas que trabalhavam dentro desse sistema de ensino e me lembro que uma das máximas ditadas aos alunos era o célebre pensamento: "Aula dada, aula estudada".
A Unicamp tem liderado o processo de mudanças
nos vestibulares. Instituiu nos últimos anos um exame em que o aluno
tem que demonstrar capacidade de análise, reflexão, comparação,
crítica e criatividade.
Fico com a impressão de que as equipes de marketing que trabalham para esses estabelecimentos de ensino conhecem essa técnica de fixação de "conteúdos" e que, cientes desses dizeres, trabalham arduamente para que os "paitrocinadores" dos estudantes também fixem rapidamente as "aulas dadas" através dos painéis, da propaganda no rádio, dos comerciais de televisão...
Escuto freqüentemente de pais de alunos que o ideal para que seus filhos sejam aprovados no vestibular é que estudem numa escola caracterizada por uma dessas grifes. O mais interessante é que muitos deles nem ao menos se dão ao trabalho de examinar a proposta pedagógica!
Aqueles que fazem questão de estudar as bases do trabalho desenvolvido nessas escolas são apresentados a um sistema vitorioso pelos "assombrosos" resultados obtidos em alguns dos principais vestibulares do país. Números e mais números, estatísticas, fotografias de estudantes aprovados em vestibulares, matérias divulgadas na mídia dando o perfil dos primeiros colocados,...
Todos esses dispositivos aliados a uma infra-estrutura material de qualidade, professores especializados em dar aulas que mais parecem "shows", apostilas com "todos" os conteúdos que são cobrados nos vestibulares, simulados e a sensação indescritível do filho pertencer a uma verdadeira "elite" levam a um crescente fluxo nas matrículas dos cursinhos e ensinos médios de grife.
Essas escolas se garantem e firmam seus conceitos perante a sociedade em virtude de seus notórios resultados. Se o trabalho resulta em vitórias, por que devemos questionar a atuação dos pré-vestibulares?
O Enem (Exame Nacional do Ensino Médio) estabeleceu
novos parâmetros para avaliar os estudantes que estão cursando
ou finalizando o Ensino Médio. Por esse exame os estudantes são
avaliados quanto a suas habilidades e competências, e não somente
pela capacidade de reproduzir conteúdos.
As instituições pré-vestibulares inverteram a lógica do ensino. Pregam que o Ensino Médio deve ser feito sempre de olho na vaga do vestibular. Pouco ou nada fazem para trabalhar entre os alunos conceitos de cidadania, ética, solidariedade ou atuação em favor da comunidade.
Os jovens que ingressam no Ensino Médio necessitam de orientação e estudos que lhes permitam uma real inserção no mundo em que vivem. Não podem aprender matemática, história, português ou biologia simplesmente para o vestibular. Essas disciplinas têm que ter utilidade. A educação tem que ser significativa.
O uso da língua, as noções geográficas ou as leis da física tem que ser entendidas a partir do cotidiano. A pedagogia dos projetos e a atuação de estudantes em atividades que lhes permitam conhecer as cidades em que vivem ou conviver de forma respeitosa com realidades diferenças são muito mais importantes que a simples memorização das leis abolicionistas ou o cálculo de matrizes.
Se as fórmulas matemáticas ou os fatos históricos são comparados com acontecimentos vividos pelos alunos ou noticiados em jornais, televisão ou internet, a possibilidade de compreensão, fixação e capacidade de análise e crítica por parte dos estudantes é muito maior.
Um dos temas que tenho trabalhado com meus alunos em aulas nos últimos dias é a escravidão. Estamos abordando o assunto de olho nas notícias, na publicidade, nas charges publicadas nos jornais e nos sites da Organização Internacional do Trabalho ou de ONGs que lutam contra esse grande mal que ainda assola nosso país.
Paralelamente a esse trabalho, examinamos a questão no Mundo Antigo (Roma e Grécia) e, iremos trabalhar a temática no Brasil Colonial e Imperial (séculos XVI a XIX). Essa noção de realidade permite ao aluno uma maior aproximação, um interesse crescente e uma participação mais efetiva no estudo.
Pré-vestibulares são escolas onde o aluno pouco fala em aula (a não ser para expor dúvidas quanto às explanações dos professores). Os professores são os detentores do saber acadêmico. Toda e qualquer experiência que possa ser compartilhada pelo aluno (leituras, filmes, experiências pessoais, jornais ou revistas lidos,...) é pouco valorizada.
Atividades desenvolvidas pelos alunos fora da escola,
como ir ao cinema, visitar museus ou ler tem que ser valorizadas nas escolas.
Viagens, pesquisa de campo e integração a vida comunitária
devem ser práticas regulares na educação.
Essa escola se parece muito com a escola tradicional, conservadora ao extremo. A roupagem é um pouco diferente pelo fato dos professores serem um pouco mais irreverentes (capazes de interpretar personagens, contar piadas,...).
Entretanto, os resultados justificam as matrículas...
Se analisarmos esses dados com uma lupa, detidamente, perceberemos que eles se referem a um universo extremamente amplo. Se uma dessas instituições divulga que 700 alunos foram aprovados numa determinada universidade federal ou estadual, numa concorrência por 7000 vagas, podemos dizer (com total certeza matemática) que esse cursinho conseguiu 10% das vagas.
Se pensarmos que esses 700 alunos vem de 100 escolas associadas a essa grife de cursinhos, descobriremos que, em média, cada escola conseguiu aprovar sete alunos nesse vestibular. Esse número equivale a 0,1% das vagas em disputa. Cada escola deveria, então, divulgar esse número como relativo às vagas conquistadas por aquela unidade de ensino. Não é isso que acontece...
A publicidade exalta que 10% das vagas de uma universidade federal ficaram com alunos daquele cursinho. Vale ainda lembrar que, alguns dos aprovados saíram direto do Ensino Médio, outros penaram nos cursinhos por um ano e, há aqueles que fizeram cursinho por mais de um ano...
A
vaga nos vestibulares foi garantida. E a possibilidade de ser bem sucedido na
vida, será que essa também está assegurada?
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