A partir da entrevista
concedida por Emir Sader a Folha de S. Paulo (27/2/2011), diversos
colunistas de jornal e de revista repercutiram a frase ‘Ana
de Hollanda é meio autista’, dita pelo
sociólogo famoso.
Desta forma, novamente aparece na mídia o uso da palavra
‘autista’ com sentido estigmatizante para descrever
uma pessoa, um comportamento humano ou até alguma coisa. Por
que estigmatizante? Porque esta palavra foi utilizada pejorativamente
para destacar algo que, segundo entendimento de quem a pronunciou,
é negativo, anormal, esquisito, omisso.
Quiçá inadvertidamente, Emir Sader acabou
prestando um gravíssimo desserviço às
pessoas com autismo e à sociedade em geral.
Toda uma mobilização local, nacional ou
internacional - acionada por pessoas com autismo, seus familiares,
especialistas e outros interessados, para combater o preconceito e a
discriminação que ainda existem contra estas
pessoas - foi prejudicada pela força do mau uso da palavra
"autista" e da ampla repercussão que o episódio
mereceu na mídia.
Em seguida, transcrevo, com negritos de minha responsabilidade, trechos
de algumas das matérias sobre este assunto publicadas nos
jornais Folha de S.Paulo e Correio do Brasil e na revista
IstoÉ.
A escolha destes veículos foi aleatória, ou seja,
o assunto pode ter sido abordado em outros meios de
comunicação também.
- “Para sociólogo, Ana de Hollanda é
"meio autista". Prestes a presidir a Fundação
Casa de Rui Barbosa, o sociólogo Emir Sader causa
polêmica ao incentivar debates sobre os anos Lula. Para ele,
o corte do Orçamento estoura ‘na mão da
(ministra) Ana (de Hollanda) porque ela fica quieta, é meio
autista’.” [manchete para Ilustríssima,
Folha de S.Paulo, 27/2/2011, p.1].
- “O ministério passará pelo
recém-anunciado corte de gastos federais: conforme diz Emir
Sader, ‘tem o corte, o orçamento é
menor, e tem dívidas. Desde março não
se repassou nada aos Pontos de Cultura. Teve uma
manifestação em Brasília.
Está estourando na mão da (ministra) Ana (de
Hollanda) porque ela fica quieta, é meio
autista’.” [Marcelo Bortoloti e Paulo Werneck,
“Um emirado para Emir: A Casa de Rui Barbosa em busca de
transcendência”, Ilustríssima, Folha de
S.Paulo, 27/2/2011, p. 5].
- Eu e você não dá mais,
né?”. (...) “De acordo com fontes
ouvidas pela Folha, tal frase teria selado o fim da
relação entre a ministra Ana de Hollanda e o
sociólogo Emir Sader.” (...) “A
observação da ministra sucedeu a entrevista,
publicada na Folha, na qual Sader, ao comentar cortes
orçamentários, adjetivou a superior como
‘meio autista’.” [Ana Paula Sousa,
“Direitos autorais e críticas de Sader a ministra
abrem crise na Cultura”, Ilustrada, Folha de S.Paulo,
2/3/2011].
- Emir Sader cai após chamar de autista ministra da
área cultural. Após ter chamado a ministra Ana de
Hollanda (Cultura) de "meio autista", o sociólogo Emir Sader
não assumirá mais a presidência da Casa
de Rui Barbosa.” [manchete para Ilustrada, Folha de S.Paulo,
3/3/2011, p. 1].
- Após chamar ministra Ana de Hollanda de "meio autista",
Sader abriu crise no governo; parte do PT o defendeu. O
sociólogo, que deveria assumir nos próximos dias
a presidência da Casa de Rui Barbosa, uma das sete autarquias
diretamente ligadas ao Ministério da Cultura (MinC), virou
assunto de governo após chamar a ministra Ana de Hollanda de
autista.
Em entrevista publicada pela Folha no último domingo, Sader
acusou Hollanda de ‘não falar’ e de ser
"meio autista".” [Ana Paula de Souza, “Governo
desiste de nomeação de Sader”,
Ilustrada, Folha de S.Paulo, 3/3/2011].
- “Sader teve a nomeação para a Casa de
Rui Barbosa cancelada após chamar ministra da Cultura de
"autista". Sader teve a nomeação para a entidade
cancelada depois de chamar a ministra da Cultura, Ana de Hollanda, de
"meio autista".” [Ana Paula Sousa e Marcelo Bortoloti,
“Descartado por ministério, Sader
trabalhará com Lula”, Folha de S.Paulo, 4/3/2011].
- “O caso Emir Sader. (...) Após entrevista
publicada pela Folha em que o sociólogo Emir Sader, que
deveria assumir a Casa de Rui Barbosa, chamou Hollanda de "meio
autista", a ministra decidiu cancelar sua
nomeação para o cargo.” [Ana Paula
Sousa, “Frágil ministério”,
Ilustrada, Folha de S.Paulo, 4/3/2011].
- “Em entrevista ao jornal Folha de S.Paulo, Emir Sader fez
críticas a cortes de custos aos programas do
Ministério da Cultura (MinC) e informara que pretendia levar
para debate assuntos sensíveis, como a questão
dos direitos autorais.
Além disso, Sader chamou Ana de Hollanda de "meio autista",
devido à suposta inércia diante da falta de
repasse de verbas aos Pontos de Cultura: ‘Tem corte, o
orçamento é menor, tem corte e tem
dívidas. Desde março não se repassou
nada aos Pontos de Cultura. Teve uma manifestação
em Brasília.
Está estourando na mão da Ana porque ela fica
quieta, é meio autista", declarou Sader.”
[“Emir Sader não vai mais presidir Casa de Rui
Barbosa”, Correio do Brasil, 4/3/2011].
- “Sobre o episódio com Emir Sader, que
em entrevista à Folha, a chamou de "meio autista" e
não foi mais confirmado à frente da Casa de Rui
Barbosa, ela (Ana de Hollanda) diz: ‘Ele não
merece, não vou falar disso’.”
[Mônica Bergamo, “Ana: ‘Ele
não merece”, Cotidiano, Folha de S.Paulo,
6/3/2011].
- “(Ana) deu uma resposta curta e grossa:
‘Comunico que o senhor Emir Sader não
será mais nomeado presidente da
Fundação Casa de Rui Barbosa.’ (...).
(Emir Sader) criticou a falta de repasses para programas do
órgão: "Teve uma
manifestação em Brasília.
Está estourando na mão da Ana porque ela fica
quieta, é meio autista".”
(...) “Chumbo grosso: Sader chamou Ana de Hollanda de
autista. Ela o demitiu por meio de nota”. (...) “O
Orçamento é menor e está estourando na
mão da Ana porque ela fica quieta, é meio
autista”. [Octávio Costa e Sérgio
Pardellas, “Tiroteio cultural”, IstoÉ,
ano 35, n. 2156, 9/3/2011, p.41].
Tão errado quanto Emir Sader, foi o colunista Leonardo
Attuch ao opinar que Emir Sader “poderia ser enquadrado na
categoria” de autista e que Emir, por não perceber
a nova realidade, dá sinal de ter autismo. Trecho do artigo
intitulado “Autistas da cultura”:
“O que é um autista? Uma pessoa incapaz de
desenvolver relações sociais normais e que
mergulha num universo próprio, tornando-se alheia
à realidade externa. O sociólogo Emir Sader, que
foi demitido antes mesmo de assumir a presidência da
Fundação Casa de Rui Barbosa, uma autarquia
ligada ao Ministério da Cultura, poderia ser enquadrado na
categoria. Ainda enxerga o mundo pela lente marxista e aponta
maquinações permanentes da direta contra si. Mas
o que o derrubou não foi nenhuma trama ou
conspiração. Apenas a língua solta. O
sociólogo passou do ponto, ao chamar de "autista" a ministra
Ana de Hollanda, que seria sua superior imediata. No mundo de hoje, a
palavra-chave é compartilhamento. (...) Fechar os olhos para
essa nova realidade é também um sinal de
autismo.” [Leonardo Attuch, IstoÉ, ano 35, n.
2156, 9/3/2011, p.47].
Como confirmam os trechos acima transcritos, Emir Sader deixou claro
que, segundo o seu entendimento da palavra "autista", Ana de Hollanda
seria "meio autista" porque ela ficou “quieta”
diante do corte no Orçamento, assumiu uma “atitude
de inércia” ante a falta de repasse de verbas.
Porém, mesmo inconscientemente, Emir está
ensinando à sociedade um conceito equivocado sobre o que
é "ser um autista", o que é "ser uma pessoa com
autismo".
E eu pergunto: Até quando aceitaremos passivamente o uso
estigmatizante, pejorativo, das palavras "autismo" e "autista"?
Já não estaria passando a hora de combatermos
essa destruidora desinformação e esse tratamento
equivocado, que tanto comprometem a qualidade de vida, e ofendem a
dignidade, das pessoas com autismo?
Afinal, nós já temos dois caminhos
jurídicos para agir: o Decreto Legislativo 186, de 9/7/08,
que ratificou a Convenção sobre os Direitos das
Pessoas com Deficiência (CDPD) com equivalência
constitucional, e o Decreto 6.949, de 25/8/09, que promulgou a CDPD.
Diz o Artigo 8 da CDPD: “(1) Os Estados Partes se comprometem
a adotar medidas imediatas, efetivas e apropriadas para: (a) ... ; (b)
Combater estereótipos, preconceitos e práticas
nocivas em relação a pessoas com
deficiência, inclusive aqueles relacionados a sexo e idade,
em todas as áreas de vida; (c) ... (2) As medidas para esse
fim incluem: (a) Lançar e dar continuidade a efetivas
campanhas de conscientização públicas,
destinadas a: (i) Favorecer atitude receptiva em
relação aos direitos das pessoas com
deficiência; (ii) Promover percepção
positiva e maior consciência social em
relação às pessoas com
deficiência; (iii) ...; (b) ...; (c) Incentivar todos os
órgãos da mídia a retratar as pessoas
com deficiência de maneira compatível com o
propósito da presente Convenção; (d)
...”.
A ONU, no Artigo 1 da CDPD, incluiu as pessoas com autismo ao
acrescentar o termo deficiência psicossocial na lista das
tradicionais categorias de deficiência, que antes eram a
física, a intelectual, a visual, a auditiva (e, por tabela,
a múltipla).
Na deficiência psicossocial, entram todas as formas de
sequela de transtorno mental, inclusive sequela de transtorno global do
desenvolvimento (p.ex., espectro do autismo, síndrome de
Asperger, síndrome de Rett, síndrome de Williams).
A CDPD foi adotada pela Assembleia Geral da ONU através da
Resolução A/61/106, de 13/12/06.
No passado também
Antes de todo este episódio estigmatizante, já
havia aparecido na mídia outras matérias nas
quais a palavra "autismo" ou "autista" foi utilizada para se referir
pejorativamente a pessoas ou coisas. Transcrevo trechos de
três delas.
- No ano 2000, sob o título ‘Autismo’,
um editorial destaca a fala do então advogado-geral da
União, Gilmar Mendes: “Os juízes
estão anestesiados; o autismo é um mal complicado
do Poder Judiciário.”. Mendes se referia a uma
série de situações: “a
politização da Justiça na
análise das ações
contrárias à venda do banco”,
“Os juízes (...) vêm tomando
decisões inspiradas em posições
ideológicas”, “Os tribunais
vêm acatando argumentos em torno de
‘picuinhas’ processuais”,
“vícios formais de quinta ordem com o objetivo
evidente de truncar o processo de
privatização” etc. [Jornal da Tarde,
12/7/2000].
- Em 2002, quando houve a polêmica sobre a derrubada
do CPMF e a reforma tributária, o leitor João
Diogenes Caldas Salviano, do Recife, enviou uma carta sob o
título ‘Casa dos autistas’ [brincando
com o nome do programa de TV “Casa dos Artistas”,
famoso na época)]: (...) “Mas será que,
nestes oito anos de tucanato com pefelistas e peemedebistas,
não estaremos participando da "casa dos autistas", dos que
vivem dissociados da realidade social, retroalimentando apenas o ego e
a vaidade sem limites racionais?!” [Fórum dos
Leitores, O Estado de S.Paulo, 18/3/2002].
- No ano 2005, o título “Governo e Congresso
têm comportamento autista, afirma Lessa”, em letras
garrafais, trouxe uma longa entrevista concedida por Renato Lessa, na
época professor do Instituto Universitário de
Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj).
No início da matéria, o jornalista Rafael
Cariello escreveu: “O cientista político Renato
Lessa afirma que governo e Congresso agem de forma autista e
predatória.”. Trechos de Renato Lessa:
“Se essa agenda ficar por muito tempo confinada à
relação entre esses dois atores [Governo e
Congresso], a sociedade de alguma maneira vai tender a ultrapassar essa
agenda.
É difícil pensar a sustentabilidade
indefinida de um padrão autista.” (...)
“Há quem acredite que, para entender a
política, é preciso entender a
relação entre Executivo e Legislativo.
É uma visão autista. Para quem pensa assim, o
governo Goulart caiu porque perdeu a sustentação
parlamentar, mas não leva em conta o que acontecia no
ambiente social.” [Rafael Cariello, Folha de S.Paulo,
15/5/2005].
Uso
correto da palavra "autista"
Em meio a tantos exemplos negativos sobre o tema "autismo", houve uma
voz solitária utilizando corretamente as palavras "autista"
e "autismo" a fim de tomar uma posição
favorável às pessoas com autismo e suas
famílias.
Foi a voz de Luiz Fernando Vianna ao escrever a breve crônica
intitulada “O autismo e a política”. Por
diversas vezes, Vianna utilizou a palavra
“autistas”, que hoje preferimos substituir por
"pessoas com autismo".
Mas, tudo bem, vale a posição que ele tomou. Vale
a pena reproduzir essa crônica na íntegra:
“Rio de Janeiro – As traquinagens mensaleiras do PT
devastaram restos de esperança que sobreviviam nessas
terras. Para os pais de autistas, o bolo de lama ainda veio com uma
desnecessária cereja: a transformação
do diagnóstico de seus filhos em insulto
político.”
“Chamar Lula, o governo ou a equipe econômica de
autistas virou bordão na boca de colunistas de jornal
(inclusive deste), empresários como Benjamin Steinbruch,
políticos como Aécio Neves, Gustavo Krause e
José Carlos Aleluia, intelectuais como Marilena
Chauí, Renato Lessa e Luiz Carlos Mendonça de
Barros, e políticos que já foram intelectuais
como Fernando Henrique Cardoso.”
“Nunca se ouviu desses seres públicos qualquer
palavra no sentido de construir algo em prol dos autistas, embora a
síndrome atinja uma em cada mil crianças nascidas
no mundo – o desinteresse deles ajuda a entender por que
jamais se fez um levantamento no Brasil. Mas, na hora de esbanjar
ignorância e crueldade, eles não
falharam.”
“O estereótipo do autista como alguém
‘fechado em seu mundo’, base para os insultos,
é falho, para não dizer falso. Autistas
têm dificuldades de linguagem,
interação e assimilação de
convenções, mas podem, se amados e estimulados,
ter vida social no ‘nosso’ mundo.”
“Ao ajudar a estigmatizar a palavra "autista", pondo-a no
mesmo rol de outras expressões pejorativas, esses seres
públicos reduzem a chance dos autistas de também
serem públicos. Chatice politicamente correta? Só
pensa assim quem não conhece o assunto.”
“Por causa de suas limitações, autistas
não são hábeis para mentir, para
enganar, para falar palavras em que não acreditam. Como diz
o pai de um deles, um autista pode ser tudo, mas jamais será
um canalha. Já os políticos...” [Luiz
Fernando Vianna, Folha de S.Paulo, 8/7/2006].