Refletindo sobre a alomorfia presente nos contos “Banzo e “Meu tio, o Iauaretê” - 30/03/2011
Deise Maria Gonçalves Paula Dariva
Resumo:
Nos contos de Ricardo
Guilherme Dick “Banzo” e Guimarães Rosa
“Meu Tio, o Iauaretê”, a
autoanulação do homem e o desejo de
zomorficação do homem contrariam as leis divinas,
as narrativas possuem um jogo de palavras que brincam com o leitor e o
confunde, assim como há um jogo de exagero, de
mal-entendido, de subtendido, de omissão e de blefe. Em
Banzo, o homem põe-se a pensar e carrega a culpa por matar
vários crocodilos, chegando a imaginar que se transformaria
num crocodilo para preservação da
espécie. Em “Meu Tio, o
Iauaretê”, o personagem já virou
onça e comporta-se como tal, mas em determinados momentos
apresenta indícios de humano por meio de vícios
característicos do homem, sendo que sua única
missão é acabar com os predadores de
onça. Em ambos os contos estão presentes a
preocupação e/ou o sentimento de culpa, da
omissão de responsabilidade com a fauna, com a natureza,
demonstrando, ainda, a nostalgia de uma vida solitária em
que os personagens conversam e travam um diálogo consigo
mesmos, tornando-se uma espécie de esquizofrenia
literária.
Palavras-chave: Conflito interior, nostalgia, metáfora, alomorfia e fauna.
O Homem é a metade de si próprio, a outra metade é a sua expressão. A autoconfiança do homem em querer dominar o mundo e desvelar os mistérios existentes entre o céu e a terra faz com que ele acredite ter um poder de gerir, instaurar e solapar a realidade divina.
“Queria
ser um bicho. Sei de um que virou inseto. Sei de outro que virou
onça. E mais outro (esse muito antigo) que era metade homem
e metade touro. Eu, por mim, queria ser o magister, o mestre da
metafísica; um crocodilo (...).” (Banzo)
A
função simbólica do
imaginário em Durand é motivada por carregar
universalmente as coisas de um segundo sentido, revelando-se como fator
geral de equilibração psicossocial. A
imaginação simbólica, enquanto
atividade criadora, faz com que os leitores sintam os seus
benefícios:
Equilíbrio vital - fator atenuante do terror existencial diante da morte e do tempo que corre.
Equilíbrio psicossocial - símbolo arquétipo que promove uma síntese equilibradora entre a alma individual e a psique da espécie, oferecendo soluções apaziguadoras aos problemas apresentados pela inteligência humana.
Equilíbrio antropológico - confrontação das diversidades culturais por meio de uma espécie de “museu imaginário”, o qual permite restabelecer um equilíbrio ecumênico universal de esperanças e temores da espécie humana.
Há, ainda, o Fator de Transcendência em que a imaginação é dotada de um sentido que acompanha e transcende a natureza biológica humana, destacando uma vida do espírito. Para Gilbert Durand, a abordagem simbólica centra as atenções na constituição da significação e visa o sentido ontológico das ações humanas. Suas estruturas imaginárias são delineadas pelo “método de convergência das imagens”. Para tanto, Durand diz que as estruturas antropológicas do imaginário são “protocolos normativos das representações imaginárias, bem-definidos e relativamente estáveis, agrupadas em torno de “schemes” originais, arquétipos e símbolos no âmago de “sistemas míticos”.
Por meio dessa articulação e desse circuito, acham-se interados o universal e o singular, o de dentro e o de fora, enfim, o indivíduo, a sociedade e os grupos. Portanto, as “estruturas” ou protocolos comportam tanto uma leitura psicodiagnóstica quanto sociodiagnóstica, mas para lá de ambas. Isso porque desde que a cultura é quem circula entre os indivíduos, os grupos e a sociedade, ela será uma hermenêutica dos símbolos ou hermenêutica antropológica, sendo ela a propiciadora de um diagnóstico interado e integrador de facetas de abordagem, portanto “transdisciplinar” como é a “visa do domínio do imaginário” segundo Gilbert Durand.
“... Às vezes surgem precateiros de carabina, como eu, em grupos. Para do seu couro fazer bolsas, cintos, sapatos na cidade, mas a mim, não pegam nunca. Sou o rei. Sou crocodilo, sou jacaré...” (Banzo)
“... Eu cacei onça, demais. Sou muito caçador de onça. Vim pra aqui pra caçar onça, só pra mor de caçar onça. Nhô Nhuão Guede me trouxe pra cá. Me pagava. Eu ganhava o couro, ganhava dinheiro por onça que eu matava.Dinheiro bom: glim-glim... Só eu é que sabia caçar onça. Por isso Nhô Nhuão Guede me mandou ficar aqui, mor de desonçar este mundo todo. Anhum, sozinho, mesmo... Arrã... Vendia couro, ganhava mais dinheiro. Comprava chumbo, pólvora. Comprava sal, comprava espoleta...” (Meu Tio, o Iauraretê)
Ao refletir o fragmento dos contos acima, percebe-se que tanto os autores Ricardo Guilherme Dicke como Guimarães Rosa demonstraram o poder da autoanulação do homem e evidenciam a Arte com essa responsabilidade com o homem, com o universo e com Deus. O homem, segundo Durand, não se afasta totalmente da força primordial que sempre volta nos esquemas de recriação mitológica, sustentados por um substrato arquetipal que leva à realização dos movimentos primordiais do homem e dos gestos reflexológicos de postura, de nutrição e o sexual.
Banzo, como também em “Meu tio, o Iauaretê”, faz narrativas do exagero, da omissão, do subentendido e do mal-entendido. Possui traços ainda da estrutura esquizomorfa e do distanciamento. Essas descrições do simbólico nestes contos possuem uma abordagem estática do imaginário como conjuntos polissêmicos e conjuntos psicoculturais. Em Banzo, o narrador apresenta o desejo de alomorfia, sentindo a necessidade de transformar-se num crocodilo para contribuir com a preservação da espécie. O narrador-personagem emana o “desejo” de ser Deus ao querer ser o mestre da metafísica. Demonstra, ainda, uma profunda nostalgia, fazendo referências sempre ao escuro, profundo (... fundo do poço, ao fundo do mar...), revelando o seu pacto com os deuses, afirmando que “Só quem morre pode visitá-los. Mas eu já fui lá. Favores divinos de Ojerona e Oannes (...).” (Banzo)
Embora tudo leve à escuridão e ao abandono, o imaginário noturno está presente no conto no momento de sua morte. Neste instante, há um forte indício da metafísica em que o próprio morto fala sobre sua morte. Assim como acontece em “Memórias Póstumas de Brás Cuba – Machado de Assis”.
“Ajude-me, Deus... Deitou-se na canoa ao lado de Orejona, o embornal cheio de mel, ela tirou uma faca da bainha e cortou a minha mão sobre os dois furinhos. Sangue jorrou. E ela chupava. O sangue o veneno na sua boca, foi jogando nas águas. E eu ia resvalando para uma espécie de sono, maior que a imensidade. E fui pronunciando as palavras impronunciáveis, tremendo de banzo e quebranto, cercado de crocodilos e mais crocodilos. Sinto o meu corpo encompridar-se enormemente, sou um crocodilo imenso, orei dos crocodilos, magister metaphysica...”
Já em “Meu tio, o Iauaretê”, o narrador apresenta-se como um onceiro, representando-se como um homem-onça, aparentado com as feras vorazes. O narrador é detectado como um viajante surpreendido pela noite e conduzido pelo acaso à tapera do onceiro. O narrador-personagem conta o seu próprio gesto e envaidece-se com suas atitudes de animal silvestre, tentando aterrorizar o seu anfitrião. O regime noturno presente neste conto mostra a desvalorização do homem.
“Onça já pegou cavalo de mecê, pulou nele, sangrou na veia-altéia... Bicho grande já morreu mesmo, e ela inda não larga, ta em riba dele... Quebrou cabeça do cavalo, rasgou pescoço... Quebrou? Quebroou!... Chupou o sangue todo, comeu um pedaço de carne. Depois, carregou cavalo morto, puxou pra a beira do mato, puxou na boca. Tapou com folhas. Agora ela tá dormindo, no mato fechado...”
Esse poder de instaurar e solapar a realidade no mundo contemporâneo foi incorporado inteiramente às práticas sociodiscursivas dos “homens comuns”, e vem sendo, desde muito tempo e em plena vigência, divulgado, discutido e vivido numa esfera particular da atividade humana: a arte.
“No devaneio do poeta, o mundo é imaginado, diretamente imaginado (...) A imagem cósmica é imediata. Ela nos dá o todo antes das partes. Em sua exuberância, ela acredita exprimir o todo do Todo. Contém o universo por um de seus signos. Uma única imagem invade todo o universo. Difunde por todo o universo a felicidade que sentimos ao habitar no próprio mundo dessa imagem. (...) Outras imagens nascem da imagem primeira, reúnem-se, embelezam-se mutuamente.” (BACHELARD,1996,p.167)
A narrativa permite que o poeta brinque com o imaginário simbólico, crie, exagere e manipule, forjando uma realidade alternativa. Partindo deste princípio, Durand esclarece que os símbolos constelam-se porque são desenvolvidos a partir de um mesmo tema arquetipal, por serem variações sobre um arquétipo e sustenta um isomorfismo semântico, sendo responsável pela formação de constelações de imagens homólogas, que ele denomina estruturas. Durand propõe-se à apreensão de níveis formadores das imagens simbólicas, à construção de uma teoria geral do imaginário com a função de equilíbrio psicossocial e, também, de uma metodologia que esboça uma metafísica da imaginação.
“Se o artista adotar esse ponto de vista de um eu que tudo põe e destrói para o qual algum conteúdo é absoluto ou existe para si, nada aparecerá aos seus olhos com um caráter sério e só atribuirá valor ao formalismo do eu.” (HEGEL 1980:135)
Ao comentar acima as implicações da filosofia de Fichte, mãe da “negatividade irônica” (HEGEL 1980:136), Hegel se faz autor do “homem sem conteúdo” de Agamben: A subjetividade artística sem conteúdo é agora a pura força da negação que em toda parte e a toda hora afirma apenas a si mesma como liberdade absoluta que se reflete na pura consciência. E, como qualquer conteúdo, adere a ela, sendo que também o espaço concreto da obra desaparece nela, o espaço no qual outrora a ação humana e o mundo fundaram suas realidades na imagem do divino, e do qual a vida do homem sobre a terra costumava tirar sua medida diamétrica.
Na pura autossustentação do princípio formal criativo, a esfera do divino torna-se opaca e se retrai, e é na experiência da arte que o homem torna-se consciente da forma mais radical do evento em que Hegel já tinha visto o traço mais fundamental da consciência infeliz, o evento anunciador do louco de Nietzsche: “Deus está morto” (AGAMBEN apud CAVENDISH 2008: 9).
“He...Aar-rrâ... Aaâh... Ce mearrhoôu... Remuaci... Rêiuàanacê... Araaâ... Uhm... Ui... Ui... Uh... uh...êeêê... êê... ê... ê...”
Diferentemente da preocupação com a ordem e as regras da articulação da linguagem, o pai das estruturas antropológicas do imaginário centra suas atenções na constituição da significação e visa o sentido ontológico das ações humanas. Durand considera reducionista a atividade estruturalista Levistraussiana, que ignora a dimensão transcendente do símbolo restrito por uma acomodação sociocultural na fundamentação translinguística. Durand entende que o jogo estrutural de alinhamento de dimensão regional é o significado do contexto social em que está inserido. A atividade simbólica que Durand concebe não é do domínio da Semiologia e sim de uma “Semântica especial” que leva em conta a dinâmica de sentidos homólogos convergentes.
Na totalidade do psiquismo humano, Durand não vê uma ruptura entre o racionalismo e a imaginação e sim uma polaridade complementar. O inconsciente não é formal nem vazio, posto que apresente um conteúdo arquetipal comum à espécie humana. Quanto ao Imaginário, vasto campo da imagem simbólica é constituído por dois regimes de imagens antagônicas e igualmente complementares, que conservam as singularidades e só se reúnem no tempo pragmático ou da narrativa, com regularidade alternante e com o privilégio de um sobre o outro. Diante do exposto, podemos dizer que a harmonia e a organização dos símbolos imaginários presentes nas narrativas criam no leitor uma expectativa de hipóteses de ações dos personagens e isso nos leva a refletir acerca de suas complexidades de maneira sutil. Dick emprestou sua inteligência para que as pessoas mato-grossenses expressassem suas dores, seus conflitos e confrontos e suas contradições desse mundo que se transformava à sua volta. Também, tem a capacidade de entabularem, numa linguagem densa e ligada ao misticismo, a filosofia e a fragilidade humana, tornando-se indiferente diante da vida e da morte.
“... Porque a morte é o maior mistério que existe.” (Ricardo Guilherme, Dick In: O Globo – 05/05/2004)
Por outro lado, podemos dizer que Guimarães Rosa é o escritor das metáforas em que sugere e acolhe todas as possibilidades em sua obra, em que tudo se pode criar infinitamente e que o homem é responsável por si e por tudo o que ele toca.
“... O escritor é responsável perante o homem e perante a si mesmo.” (Guimarães Rosa In: Coutinho 198374)
Bibliografias
BADHIA, Denis Domeneghetti. Estruturas do imaginário e universos míticos. In: Revista de Educação Pública. Cuiabá: EdUFMT, v.3, n.4, jul-dez 1994. P. 20-38.
MELLO, Glaucia Boratto R. de. A função e a imaginação simbólicas em Lévi-Strauss e em Gilbert Durand. In Revista de Educação Pública. Cuiabá: EdUFMT, v.3, n.4, jul-dez 1994. P. 158-170.
Strôngoli, Maria Thereza de Queiroz Guimarães. O discurso literário o mítico e o multiculoturalismo. In: Encruzilhadas do imaginário: ensaios de literatura e história. Org. {por}Dulce Oliveira Amarante dos Santos e Maria Zaíra Turchi. Goiânia: Cânone Ed, 2003.P.117-128.
Miguel, Gilvone Furtado. Mito e Ficcção: a imagem do paraíso nos romances de Ricardo Guilherme Dicke. In: Dos labirintos e das águas: entre Barros e Dickes. Madalena Machado e Vera Maquea (org).Cáceres-MT: EDUNEMAT, 2009. P. 127-152.
O eixo e a roda: v.12,2006. A voz de quem morre. O indício e a testemunha em “Meu Tio Iauaretê”.
Revista Eutomia – Literatura e Lingüística - Ano II – Nº 01 (171-1903). In: Michelle Valois – UFPE.
Banzo – Fragmentos do Conto. Ricardo Guilherme Dick.
Meu Tio o Iauaretê – Fragmentos do Conto. Guimarães Rosa.
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