Depois do
primeiro dia em que o Lobo Mau ameaçou entrar aqui em casa,
fui introduzido, provisoriamente, na mitologia da minha filha de cinco
anos.
Todas as noites, depois que ela adormece, eu tenho feito
incursões na floresta em busca desse famigerado devorador de
menininhas encapuzadas e porquinhos desavisados, além de
bradar da nossa janela que a nossa casa é área
livre de lobos maus e demais monstros de 242 olhos e 343 bocas, pelas
suas últimas contas.
Engana-se quem imagina que eu tema enfrentar esse e outros tipos de
perigos pelos meus filhos, afinal estou mais que inebriado por esse
heroísmo que me emprestaram. O problema é que
minha presença mitológica tem data marcada para
ser revelada em sua dimensão mesquinha e humana.
E isso em nome da cultura e do esforço
civilizatório que vem sendo efetuado na escola, na
socialização e também pelos meios de
comunicação que, muito em breve, irão
me deixar tão minúsculo como uma formiga e
irão colocar à prova minha capacidade de resistir
por mim mesmo, pois minha estatura heróica
estará, então, desfeita definitivamente.
Daqui há algum tempo, minha filha saberá que, a
isso tudo, Freud e depois seus seguidores demonstraram (certamente
não por demonstração) fazer parte de
um complexo de implicações
ético-sexuais tomado por base, coincidentemente ou
não, numa outra mitologia - essa muito mais capaz que a
minha. Isso, entretanto, faz parte de uma outra história.
São muito conhecidas as teorias nas quais o pensamento
fantástico e a elaboração do medo e
outros sensações infantis exercem um papel
constituinte na personalidade infantil e a importância de
sublimá-las desde cedo, através da
composição e narrativa de
situações vividas por personagens
mágicos e mitológicos, parece mesmo
incontestável.
Ao menos há indícios de que esse tipo de
narrativa vem acompanhando o ser humano desde épocas bem
distantes (*). De certo modo, tenho a comprovação
viva disso ao constatar que cada vez menos venho sendo chamado a
defender o lar do Lobo Mau, o que vivencio como algo
inevitável.
Muitos teóricos do desenvolvimento humano defendem que esse
modo mágico de pensar é característico
de um processo típico de evolução
infantil e que, seja pelo próprio amadurecimento, seja pela
progressiva instrumentação do saber decorrente da
assimilação dos bens culturais, a
coerência cultural-infantil obtida através de uma
percepção do mundo, realizada através
do aprendizado, do convívio social e também de
sua própria evolução moral, tende a
fazê-lo rapidamente apenas de memória. Seria um
modo de pensar transitório e que a
educação formal teria a
função de aperfeiçoá-lo,
qualificá-lo, sofisticá-lo...
Coisa de criança, dito com mais simplicidade. Poucos
pensadores postularam a infância como um estágio
humano em si mesmo, não um vir a ser, mas um estar sendo. O
polonês Janus Korczak foi um deles e, não por
acaso, sua obra constituiu a base da Declaração
dos Direitos da Criança (além de sua obra,
Korczak fez do respeito à criança a sua
própria vida) (**).
O que fica evidente, para quem acompanha o desenvolvimento de ao menos
uma criança, é que essa
noção de evolução
é uma construção psicossocial que
inicia na cisão entre natureza e cultura e que, a pretexto
de civilizar os novos cidadãos, a visão
particular da criança é logo na vida
descontinuada e desvalorizada sistematicamente pela família,
pelos grupos, pela escola, pela sociedade, enfim.
Essa ruptura implica o descrédito da fantasia, na
substituição da narrativa pela
representação e, como pretendo insistir, na
expulsão da criança do reino da natureza e sua
relocação no habitat social. Interessante que
essa é uma opção que não
é dada à criança, mas que lhe
é imposta. Simplesmente é o percurso "natural"
que, naturalmente, também tem uma
construção cultural que não
é tão natural assim (***).
Trata-se de uma ruptura tão violenta que, ao longo da vida,
costumamos nos referir à infância como um lugar e
tempo perdidos, em que repousam as boas lembranças e a
inocência. Mesmo assim, qual o pai ou educador que
não vibra ao constatar que um filho ou aluno conquista novos
estágios de seu desenvolvimento e abandona de vez a
infância, suas quimeras, parlendas, garatujas e lobos-maus?
Entretanto, o espaço social da infância, como o
temos hoje, não pode ser denominado exatamente como o
"melhor dos mundos", havendo uma série de
violências a considerar que implicam não apenas no
fim da inocência e dos estágios
primários de organização do
pensamento, mas, também, implica sua
degradação enquanto modo de vida em si mesmo.
Um espaço no qual os bens de consumo determinam o valor dos
bens culturais e no qual a fantasia e a mitologia própria da
infância são compelidas a abrir espaço
para o pensamento lógico e a razão
práticos, como se fornecessem uma
interpretação definitivamente correta do ser e do
estar no mundo e em seus lugares, para crianças ou adultos.
Não tenho intenção alguma em procurar
preservar um estoicismo infantil ou "congelar" o desenvolvimento de
meus filhos mas, se é para destinar uma cultura
às crianças de um modo geral, é muito
bom que seja algo que valha a pena de verdade.
Como é provável que tenhamos de entregar-lhes,
como produto de nossa obra, um mundo inconcluso e que, muitas vezes,
também temos dificuldade de compreender e transformar em
efetivo, por isso penso que já seria muito se
pudéssemos legar-lhes não um conhecimento
estéril e uma ciência que justifica um mundo que
é bom para tão poucos (e tão ruim para
a própria natureza), mas uma evolução
de verdade, dentro de um conceito honesto que respeite, inclusive,
às crianças pelo que elas são,
não uma etapa, mas como sujeitos efetivos de direitos.
Assim, poderemos ter alguma dignidade ao desfazer, cedo ou tarde, seu
mundo de fantasias, não apenas deixando vazios que
serão ocupados por compensações
artificiais que mais tarde o mundo lhe trará sem pudor e,
infelizmente, de forma cada vez mais precoce e menos sutil.
Enquanto posso, vou aproveitar a missão de trazer de volta
à praia as sereias, que foram expulsas pelo lixo que homens
malvados jogaram ao mar (e como jogaram lixo ao mar nos
últimos tempos...). Se um dia minha filha não
encontrar mais as sereias que hoje a encantam, não
terá sido por que eu as tenha expulsado, até
porque não tenho certeza de como elas devam deixar de
"existir" no mundo.
Com certeza elas acabarão por um dia decidir ficar nas
profundezas dos oceanos mas, secretamente, torço para que
minha filha jamais esqueça que um dia elas já
estiveram "presentes" e que lutamos juntos para que não
fossem enxotadas pelo nosso lixo civilizatório. Minha filha
tem toda a razão em dizer que a natureza é sua
filha. Eu penso que ela é a própria natureza.
Pelo menos é o que de mais semelhante à natureza
eu tenho ainda perto de mim.
Ver Bettelheim, Bruno. A Psicanálise dos Contos de Fadas.
Paz e Terra, 2007. (*)
Ver Korczak, Janus. Como amar uma criança. Paz e Terra,
1997. (**)
Ver Aries, Philippe. História social da criança e
da família. Ed. LTC, 1981. (***)
Fonte:
Lucio Carvalho - Coordenador da Inclusive (www.inclusive.org.br) e
autor de Morphopolis (www.morphopolis.wordpress.com).
Reprodução licenciada pela CC 2.5.