Uma Aula Inclusiva ou "Como Ensinar Porcentagens na Escola?" - 25/08/2008
Maria Teresa Eglér Mantoan
A revista Nova Escola me propôs o desafio de demonstrar o que é uma "aula inclusiva". Apesar de não concordar com esse nome, vamos em frente.
Fui buscar nos meus arquivos da memória o que tenho presenciado nas salas de aula das escolas que estamos virando do avesso, pois é desse jeito que as tornamos inclusivas, acolhedoras abertas às diferenças.
Lembrei-me de muitas situações exemplares, se podemos chamá-las assim, que poderiam nos ajudar a compreender a prática escolar que se destina a ensinar a turma toda, literalmente, sem separar grupos, sem discriminar alunos "especiais", "necessitados" e com outros atributos mais. Esses que nos deixam de cabelo em pé, porque "já não chegam os outros 30, 35, que também precisam aprender!"
Muito já se disse sobre o que fazer para se enfrentar uma sala de aula heterogênea, mas ainda persiste a idéia de que é possível homogeneizá-las, como prêmio às professoras experientes e castigos para as novatas.
Não quero, pois, cair no lugar comum de fornecer modelos de como se pode ou se deve trabalhar de forma interdisciplinar, transversal , não disciplinar, nem repetir o que os especialistas garantem que é preciso dispor saber para que os alunos com uma dada dificuldade de aprender e/ou uma deficiência específica, possam acompanhar as turmas. Se todas essas prescrições funcionassem não teríamos razão para resistir tanto ao acesso e à permanência desses novos alunos às escolas.
Aos colegas gostaria de aproveitar a oportunidade deste convite e repassá-lo aos professores, diretores, pais, educadores em geral.
A idéia é fazê-los compartilhar comigo de dois momentos educacionais marcantes e bem recentes em uma escola de uma rede municipal de ensino onde estamos construindo uma prática pedagógica, que reconhece e valoriza as diferenças.
Convido-os a visitar duas salas de aula, em meio a todo o movimento, barulho, o trabalho das crianças de duas séries, em uma manhã de sol e de muito calor. Dessas salas de muitos alunos, que a gente sabe bem como são, pois fazem parte de nossa lida.
Proponho-lhes um exercício, em que o primordial é estar desprevenido , de alma leve, receptiva, disposta a encarar o que tentaremos lhes descrever, na melhor de nossas possibilidades.
Não tenho nenhuma pretensão de eleger o tipo magistral dessa tal aula inclusiva ou o comportamento mais "politicamente correto" diante da inclusão, mas , pura e simplesmente, apresentar dois momentos, que a minha memória elegeu, para que pudéssemos analisar, comparar, pensar sobre práticas de ensino que realmente estão acontecendo e que merecem a nossa atenção e o nosso tempo de reflexão sobre o que cada uma delas propõe. E falando em proposta, que tal lermos este texto com um colega interessado no assunto, ou com um grupo mais tocado pelo problema, que precisa ler para crer?
E, que tal ainda, após esse exercício, cada um, ou cada dupla, trio, grupos arriscarem novas idéias, trocarem outras e me enviarem pelo meu e-mail ou pelo correio da revista o que vocês pretendem fazer de novo ou já praticam em suas salas de aulas? Seria bem interessante, não acham?
Bem, vamos ao que lhes prometi. Cenas do cotidiano escolar.
Era um dia de aula comum, como tantos outros, e eu entrei na escola, sempre com aquela certeza de encontrar e de me surpreender com as novidades. Estávamos em plena fase de economia de energia elétrica, aquele tempo do célebre apagão.
Cena 1
A professora abre a porta e dá comigo no corredor. Alegra-se com a minha presença nesse dia em que ela estava precisando compartilhar com alguém a aula de matemática. O conteúdo? Porcentagens. A turma? Uma 5ª série. Entrei e quase nem fui notada. Os alunos estavam mergulhados no problema de rever os cálculos das notificações da Companhia Paulista de Força e Luz – CPFL/SP, referentes à economia de consumo imposto pelo governo. E eu nem tinha entendido bem a proposta de trabalho e a professora já estava me enumerando, ansiosa, os propósitos da atividade, que se baseava em um fato real, conhecido e vivido por todos e que no seu dizer: correspondia à experiência e às práticas a que tinham que se sujeitar as famílias brasileiras, para evitar o pior o apagão. Precisamos todos colaborar, não é mesmo? E mais, ela acrescentou que os alunos não eram "bons" na matemática e até mesmo aquele que tinha dificuldades para aprender outras matérias (um aluno com uma deficiência), todos eles também podiam enfrentar a tarefa, pois ala havia preparado uma versão facilitada do problema, que não exigia um domínio completo da noção (...) "porque porcentagem exige muita abstração e temos de evitar tudo o que pode excluir esses alunos da aula, em qualquer momento".
Resolvi então me entrosar com a turma e perguntar-lhes coisas assim:
- E o banho?
- Quantos minutos vocês reduziram para cumprir a meta?
- E as contas de luz?
- Diminuíram ou baixaram de preço?
O silêncio não me surpreendeu, pois as crianças, no geral , não entram em fria. Afinal responder, na escola, é um negócio de risco...
De repente , um deles me disse que em sua casa não estavam economizando energia. E outro, mais outro, outra, outras crianças enfim, quase todos os alunos se manifestaram, levantando as mãos para confirmar a primeira resposta.
Eu lhes perguntei a razão da recusa de suas famílias de participar da campanha de redução do consumo e mais uma vez o silêncio se fez notar. Uma voz veio lá do fundo, explicativa e sincera:
- A gente puxa , lá em casa.
Um outro confirmou:
- A gente puxa também! Em casa tem gato e a gente não paga a luz, faz tempo.
Cena 2
Entro em outra sala da escola. Mais uma turma de 4ª série, cuja professora me recebe com a mesma cordialidade. Já entro perguntando "Novidades na sala ?"Percebi que os alunos estavam envolvidos em tarefas de matemática – porcentagem é o conteúdo da hora – me diz a professora.
Perguntei como ela estava lidando com esse conteúdo tão complexo, em uma turma tão difícil – tem um aluno com cegueira e um outro, que é o xodó da classe, com Síndrome de Down.
Ambos estavam, segundo a professora, defasados na compreensão da matemática e de outras disciplinas, porque a classe era bem forte.
Ela então, foi me conduzindo por entre as mesas, mostrando-me as tarefas e, no caminhar entre os grupos, pedia a uma e outra criança que me contassem o que estavam estudando, naquele dia.
Percebi que as porcentagens estavam "emboladas", nas tarefas pelas quais procuravam saber quantas eram as nossas usinas elétricas e quanto produziam para em porcentagem, para atender à demanda de nossas regiões; que outras fontes alternativas de energia existiam no Brasil; como o sol, o vento e outros geradores funcionam para esse fim. Eram revistas, papéis por todo lado e meninos escrevendo em cartazes de cartolina, cheios de números, descobertos ao calcular o que o Norte, o Nordeste conseguiam poupar percentualmente, e o que a escola gastava por dia, conforme apuravam no medidor. Eles estavam comparando os gastos e checando em maquininhas de calcular as porcentagens. Sabiam me dizer se o consumo diminuía ou aumentava e levantavam hipóteses sobre a oscilação. Foi o menino que era o xodó da classe quem me apontou os picos de gasto. Ele também calculava na maquininha, quando chegava a sua vez. A professora tinha-lhes ensinado encontrar o resultado numérico por dois caminhos pelas contas e na máquina, porque é preciso saber os dois modos e depois que o aluno aprendeu, pode mecanizar. Quem não consegue acertar pela conta, que use a máquina.
Aproveitando o tempo em que nos esgueirávamos pelas mesas e cadeiras a professora me informou que os alunos escolhiam as atividades , conforme se interessavam pelas tarefas e que nem sempre faziam todas elas, pois eram várias as propostas e iam surgindo outras, que o próprio conhecimento produzia, para saciar a curiosidade das crianças.
Ela completou "Mas que mal havia nisso, quando todas elas, as propostas, visavam a um mesmo fim?!"
Acho que a professora notou que não havia perguntado nada sobre o outro menino com síndrome de Down, que ainda não sabia montar contas e nem lia com precisão. E ele trabalhava com o grupo que se dedicava à tarefa mais difícil e trabalhosa da turma e para qual esses conhecimentos contavam, e muito!
E chegando à mesa de trabalho do menino cego e seus três colegas, sentei-me para conversar e para saber em que se empenhavam tanto: recortavam de promoções de viagens de um caderno de turismo da Folha. Dois deles ditavam os preços para um outro que os repassava ao colega cego que, por sua vez, buscava a diferença de preço entre "os pacotes", calculando em seu sorobam. Depois buscavam juntos a porcentagem de ganhos em Reais, se escolhiam uma ou outra excursão. O instrumento era conhecido da turma e servia também, pelo que me disseram os meninos, para tirar a prova , quando os dedos e mesmo as contas não fossem confiáveis.
O colega que ditava os preços, observando o meu olhar encantado com a rapidez do aluno cego dedilhando o sorobam, não quis ficar para trás e me mostrou que também sabia utilizar essa outra maquininha.
A professora sumiu. Encontrei-a lá no fundo da sala, combinando com alguns alunos a aula que estavam preparando juntos sobre a importância de se aprender a calcular porcentagens para resolver problemas na escola, em casa, na economia de luz, nas compras, no esporte, no lazer...
A aula seria apresentada à classe, naquela mesma semana.
A economia de luz, as lâmpadas novas, os gastos com o ferro elétrico, a porta da geladeira, o desperdício de água para escovar os dentes, varrer a calçada estavam ganhando atenção de um grupinho, que lia atentamente a cartilha de redução de gastos da CPFL.
Ficam aí para os interessados fragmentos de aulas a que assisti e que, no meu entender, merecem a nossa reflexão e ponderação.
Eles não foram escolhidos por serem exemplos irrepreensíveis, irretocáveis de aulas inclusivas.
Como toda e qualquer produção humana, essas aulas tiveram falhas, excessos etc. e tal e que bom que seja assim, pois aprendemos muito com as nossas faltas e erros.
Sabemos que não adianta impor uma nova orientação para transformamos nossas práticas, uniformizando-as e reduzindo o ensino e o papel do professor a um conjunto de "combinados", religiosamente obedecidos e que, quando um professor desenvolve um método próprio de ensinar, fundamentado na recusa de "dar aulas", fica mais fácil entender o que significa uma escola aberta às diferenças.
Mas há que se ter claro o que está por detrás de uma pedagogia inclusiva:
Trabalho independente e de grupo, porque eles permitem o desenvolvimento da responsabilidade,
A consciência da produção coletiva do saber;
Construção ativa do conhecimento, contra toda e qualquer idéia de "receber o ensinamento", que é tão comum na cultura da cultura da escola e das famílias, infelizmente;
Ajuda mútua, contra toda e qualquer idéia de competição, de concorrência, no ato de aprender, para estimular a solidariedade, a idéia de incompletude,que é essencial para se entender as diferenças, a inclusão;
Recusa de tudo o que é generalização, unanimidade, consenso e do entendimento da diferença como desigualdade, pelo qual algumas pessoas, culturas e comportamentos são considerados superiores a outros, dentro e fora das escolas.
Queremos, portanto, uma escola para todos, que se insurge contra o fortalecimento de atitudes corporativistas de todo tipo,justificadas pelo desenvolvimento e afirmação da identidade de grupos de professores ou de alunos, que distorcem o sentido da inclusão para se auto-defenderem e proclamarem seus próprios direitos. Haja vista os professores especialistas e os alunos especiais. E isso é muito grave!
Sinais de alerta de práticas escolares não inclusivas.
Educadores e pais de crianças com deficiência de um grupo canadense que luta pela inclusão escolar a Inclusion International nos legaram um documento indispensável para que possamos caminhar por entre diversos modos desde concretizar a inclusão escolar, fugindo de todos os atalhos que negam a legitimidade desse conceito revolucionário.
Entre os sinais que esses definiram, destaco nesse texto os que seguem.
Não é inclusão quando:
Há uma escola de inclusão em um sistema de ensino;
Há uma sala de aula de inclusão na escola;
Há uma professora da inclusão no corpo docente;
Há os alunos da inclusão nas salas de aula regulares;
Um aluno é incluído em uma escola regular em um dos períodos e,no outro, freqüenta uma escola especial;
Quando o professor itinerante e ou especializado é quem garante, mantém a inclusão e o aprendizado escolar dos alunos com deficiências e ou necessidades especiais nas turmas regulares;
Quando um aluno de 11 anos é incluído na Educação Infantil, porque ainda não sabe ler e escrever...
Termino por aqui, deixando-lhes essas "dicas" poderosas, pelas quais é possível distinguir a verdadeira inclusão dos seus arremedos, nas escolas.
Espero ter sido útil.
Bom trabalho e até breve!
Referência: Documento denominado "Sinais de Alerta de Práticas Educacionais não Satisfatórias", escrito por Marsha Forest, Jack Pearpoint, Fran Maiuri, Judith Snow, Rose e Dom Galati, Louise Bailey: http://inclusion.com
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