Planeta Literatura
 

Coisa de criança - 01/08/2008
Entendendo melhor o mundo infantil

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No mundo contemporâneo, os pequenos deixam de ser coadjuvantes no jogo adulto, são chamados ao diálogo e ganham espaço nas decisões familiares

Tatiana tinha 12 anos quando foi estudar no colégio Mackenzie, em São Paulo, uma escola considerada avançada para a época, década de 1930. Como adorava ler, logo correu para a biblioteca. Estava passeando entre as estantes, entusiasmada para escolher a próxima leitura, quando foi interrompida pela bibliotecária:

"Não, não, esta estante não é para você". Tatiana não entendeu. "Não é para mim... não é para todo mundo?". "Não é para criança", respondeu a funcionária. "Mas por que não?". "Porque é impróprio", foi a resposta que Tatiana ouviu, pensando: "Umas baboseiras...". Sorte que a pequena curiosa tinha um pai liberal, que escreveu um bilhete à escola autorizando a filha a tirar da biblioteca o livro que quisesse.

Tatiana é Tatiana Belinky, escritora com mais de 130 livros de literatura infantil no currículo. Sua escrita sem concessões mostra que ela continuou a ler as obras da "estante proibida". Para ela, nada de "tatibitate".

Ela defende que a infância é uma fase tão complexa quanto a maturidade. "Não existe `a criança´, existem crianças", afirma. "A criança é aquela que está na minha frente: é uma. Se eu dou o mesmo livro para três crianças da mesma idade, cada cabecinha vai pensar diferente da outra, mesmo que sejam da mesma família".

A postura de Tatiana traduz um olhar sobre a infância dos dias de hoje. Apesar de representar um conceito que atravessou séculos, é no mundo contemporâneo que a criança deixa de ser a personagem café-com-leite do jogo adulto. Ouvi-las agora, além de ser a palavra de ordem, é comprovadamente uma necessidade.

Sai de cena a palmatória e entram no palco os pais companheiros, que brincam no parque com os filhos e ainda deixam para eles a decisão de escolher o local do jantar. "O adulto tem hoje um papel de mediador entre a criança e os múltiplos conhecimentos que estão no mundo", diz a educadora Sílvia Colello, professora de Psicologia da Educação da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP).

"Tem o papel de responder perguntas, fazer perguntas, dar explicações, criar situações para a criança pensar no mundo, adequando-se ao que ela é. Sem forçar, mas com um espírito lúdico, de brincadeira, de desafio, de resolução de problemas."

Uma história para a infância

Na visão de historiadores da infância, o desenvolvimento dos colégios, do capitalismo, da ciência, da imprensa, da indústria e mais um conjunto de transformações na sociedade foram determinantes para uma nova forma de interpretar os pequenos.

As mudanças trouxeram, entre outras coisas, um olhar para as diferentes fases na infância. Surgiram a educação maternal e a expressão "jardim da infância". "É quando começa a visão moderna da criança", explica o professor doutor Moysés Kuhlmann Júnior, da Universidade São Francisco, pesquisador da história da educação e da criança na Fundação Carlos Chagas.

No entanto, pondera Kuhlmann, "ainda assim, era o adulto criando o conceito de infância sem nenhum diálogo com o mundo infantil. A idéia ainda era que as crianças deveriam ser quase retiradas do mundo adulto".

A criança começa a ser ouvida já no século 20, momento em que ela passa a ser consultada no processo de construção de uma educação realmente compatível com as suas necessidades. Entre as figuras que contribuíram para essa mudança, está a do psicólogo suíço Jean Piaget (1896-1980).

Piaget se dispôs a observar mais de perto o modo como a criança aprende e quais os mecanismos utilizados por ela. A escola absorveu seus conceitos. "Ele mostrou que a criança é essencialmente curiosa e não pede autorização para começar a aprender", esclarece a professora Sílvia Colello, da USP. "Ela cria hipóteses e é ativa na construção do pensamento. Ela aprende com seus erros”.

Juntamente a Piaget, o psicólogo russo Lev Vygotsky começou a preparar terreno para que a infância ganhasse status diferenciado no mundo de hoje. Suas idéias demonstraram como o contexto sociocultural da criança é determinante naquilo que ela é, faz e deseja. "Ele derrubou o mito de que a brincadeira é oposta à aprendizagem", diz Sílvia.

"Pelo contrário, a brincadeira é um espaço especialmente favorável para aprender. Ao brincar, a criança incorpora um papel e compreende algumas relações da realidade. Uma menininha que brinca de boneca não é mãe, mas ela incorpora o papel da mãe e pode compreender algumas coisas da maternidade".

Novas crianças, novos adultos

Passado quase um século do surgimento desses conceitos, é possível afirmar que hoje o mundo de meninos e meninas é mais respeitado. Nunca se deu tanta asa à imaginação infantil. "As crianças querem que as coisas que elas inventam realmente existam.

E elas inventam muitas coisas", conta a escritora Tatiana Belinky. "Meu irmãozinho teve um amigo invisível chamado Bidínsula, que eu até coloquei num livro. Aí eu perguntei como ele tinha inventado aquele nome e ele me falou indignado: `Eu não inventei, ele me falou´. A criança é imaginário ambulante".


Por outro lado, essa nova representação da criança, menos preconceituosa e mais aberta, abriu espaço para deturpações, como a de pais que acham que "tudo pode". "Essa criança mimada também é uma tendência dos nossos tempos", diz Sílvia Colello.

"É preciso tomar cuidado para que esse pai, que está ao lado da criança, que começa a brincar com ela, não se esqueça de que ele ainda é pai, e que precisa promover a responsabilidade." Para Moysés Kuhlmann, o grande desafio do adulto de hoje na relação com meninos e meninas é exatamente procurar o equilíbrio.

"É uma ilusão achar que a criança vai ter um desenvolvimento espontâneo", afirma o especialista. "Desenvolvimento se dá justamente na relação com os outros e ela não vai conseguir viver sem se `contaminar´ do nosso mundo. Internet, mídia, publicidade, informação, tudo isso vai ter impacto em sua vida, e é perigoso colocá-la como vítima disso.

Claro que é preciso ter cuidado, controle, mas essa é uma questão da educação: uma tensão entre influência do meio e certo grau de liberdade que temos para criar e fazer coisas diferentes."

Fonte:http://www.sescsp.org.br/

Leia boxe: Através dos séculos
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1 COMENTÁRIOS

1 LILIAN JANE - MONTES CLAROS/MG
ADOREI O ARTIGO! ELE É PERTINENTE NUM MOMENTO EM QUE A FAMÍLIA TRANSFERE PARA A ESCOLA SEU PAPEL DE EDUCAR E VALORAR O INDIVÍDUO. MAS UMA ESCOLA QUE SE SE PREZA, FAZ ESTE PAPEL OPORTUNIZANDO AO DISCENTE ALÉM DOS VALORES, UMA FORMAÇÃO DIGNA DE CIDADÃO, HUMANO E CRÍTICO DIANTE DOS DESAFIOS QUE A VIDA LHE FAZ ENCARAR. É NO MOMENTO DA BRINCADEIRA QUE A FAMÍLIA E ESCOLA DEVE FAZER COM QUE TABUS E PRECONCEITOS SAIAM DE CENA DANDO LUGAR AOS NOVOS CONCEITOS. AO DISCENTE É DADA UMA CERTA LIBERDADE PARA QUE ELE AJA COM RESPONSABILIDADE. ELE DEVE OUVIR O NÃO E O MOTIVO REAL DESTE NÃO! NÃO APENAS POR NÃO NÃO É RESPOSTA. A CRIANÇA JÁ NASCE CERCEADA DE NÃOS SEM JUSTIFICATIVAS. É SABIDO QUE O DIÁLOGO, A LIBERDADE DEMAIS PODE LEVAS A OUTROS RUMOS MAS CABE AO ADULTO QUE ACOMPANHA A CRIANÇA ASSESSORÁLA FAZENDO O PAPEL DE INTERMEDIADOR ENTRE O CERTO E O ERRADO, POIS É ERRANDO QUE SE APRENDE! AFINAL QUEM NÃO CAI DA ESCADA NÃO APRENDE A LEVANTAR.
28/06/2010 12:10:55


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