Volta
e meia me vem à lembrança a imagem e a
história da professora, objeto de
observação, ao elaborar minha Monografia para
Conclusão do Curso de
Pós-Graduação em
Coordenação-Pedagógica.
Ela trazia consigo tal gosto pelo ofício, num misto de arte,
alegria e criatividade que me encantava. Pelo caminho da simplicidade,
da descontração e autenticidade que lhe era
peculiar, fazia de suas aulas um espetáculo a olhos vistos,
momentos de sedução demonstrados pelos alunos por
meio de suas expressões de prazer e
admiração.
Esse fato me levou a buscar nos teóricos, respostas
às minhas indagações e a de outros
educadores sobre questões que são
lançadas acerca de quais saberes alguns professores,
diferentemente de outros, utilizam, produzem e mobilizam em suas
práticas, contribuindo de forma significativa com o seu
fazer e garantindo-lhe trajetória de sucesso.
A estratégia de trabalho “Mapa da Mina”
da qual a professora fazia uso e que comentarei mais adiante, me levava
e aos estudantes, a vivenciar situações onde a
fantasia do mundo do ‘faz de contas’ se cruzava com
as possibilidades do mundo real.
O prazer e a motivação nasciam do poder da
criatividade, da alegria pelo compartilhamento e da arte de seduzir,
que a leveza da proposta gerava, transformando o momento da
aprendizagem em um clima de interatividade inesquecível.
Identificando características pessoais e profissionais e
descrevendo os seus saberes, conhecimentos e competências,
nos aproximamos de compreensões mais elaboradas.
Com o devido cuidado da análise das questões
sobre o saber do ensino, apontado como “excesso
etnográfico" por Tardif e Gauthier, ao se referirem
à cientificidade do saber de experiência produzido
pelos professores, tal como eles, interrogo: “Certamente o
(a)s professor (a)s sabem alguma coisa, mas o que precisamente sabem
eles? Qual é esse saber? São eles apenas canais
de transmissão de saberes produzidos por outros grupos?
Produzem eles, no quadro de sua profissão, um ou mais
saberes?...”
Nesta oportunidade, tratarei de um dos aspectos que serviram
à minha discussão no trabalho ora desenvolvido e
que considero de fundamental relevância.
Os desafios, o prazer de aprender e a paixão por ensinar
Nos relatos apresentados pela professora, percebe-se nitidamente a
importância que ela dava aos desafios que lhe eram propostos:
o forte desejo, gosto e comprometimento por ensinar e aprender, buscar
constantemente o conhecimento e novas
informações. Advogada, contadora,
porém era na sala de aula que conseguia desenvolver com
prazer suas atividades profissionais.
Os saberes das disciplinas não constituíam
obstáculos para sua prática. Os saberes sociais
dos diversos campos do conhecimento oferecidos por diferentes cursos
universitários garantiam um conteúdo bastante
valorizado e legitimado pelas instituições
escolares.
Em sua prática, não aderiu à tarefa de
transmissão, como técnico ou executante.
Não fez do seu aluno um depositário de saber. No
seu exercício cotidiano, no contexto das
interações, reuniu habilidades pessoais que
passaram a incorporar sua vivência individual.
Nos relatos abaixo, são valiosas as reflexões e
as conclusões tiradas pela professora e que ela resgatou
através do seu depoimento:
(...)
Sempre fui muito comprometida, assim de preparar a minha aula.
Pesquisava em vários livros. Sempre gostei desde o
começo de explicar e dar charadinhas, palavras cruzadas,
até hoje eu gosto.
(...) sinto ainda uma necessidade diária de desafios! Eu
sinto! É isso que faz ter sentido a minha vida...
Foi em Perrenoud, que busquei a clareza para compreender as
ações praticadas pela professora. Podemos
estabelecer uma relação entre o que a professora
afirma e o que Perrenoud (2000, p. 36) discute, quando trata dos
dispositivos didáticos que devem ser considerados para
envolver os alunos em atividades que lhes sejam prazerosas.
Neste sentido, o autor não nega a importância do
tipo de relação que o professor estabelece com o
saber, no entanto, considera desejável que o mesmo torne
acessível aos alunos, esta sua
relação, assumindo junto com eles o papel de
aprendiz. O autor quer dizer com isto, que não basta que o
professor tenha prazer de aprender e de ensinar, é
necessário que isso desperte no estudante esta mesma vontade
de saber e uma motivação tal que não o
faça desencorajar do objetivo ou cair no tédio,
tendo em vista que muitos deles já aprenderam as mazelas do
ofício de aluno.
Acompanhando o raciocínio do autor, é
fundamental, portanto que o professor lance desafios
possíveis de êxito sem fazer uso do
“utilitarismo”. Para não fazer
intervenção que seja
“desastrosa” é essencial que o professor
tenha consciência do seu papel, não legitimando as
atividades com o argumento de que elas constituem importância
vital para a humanidade, suscitando sim uma
“paixão desinteressada” pelo saber.
Dessa forma é inquestionável a visão
que a professora apresenta sobre a complexidade de seu fazer,
tornando-o um projeto de vida, como comprova o relato:
(...)
Você tem que gostar do que faz. Você gostando do
que faz você cria alternativa. Você não
vai dar uma boa aula, se você não gosta!... Cada
dia é um dia diferente! Se ele (aluno) me questiona algo, eu
não sou obrigada a saber, nem sempre, porque não
sabemos tudo, mas temos que ter a humildade de falar: eu não
sei, mas vou procurar saber...
Perrenoud (2000, p. 38) destaca que:“A paixão
pessoal não basta, se o professor não for capaz
de estabelecer uma ‘cumplicidade’ e uma
‘solidariedade’ verossímeis na busca do
conhecimento. Ele deve buscar com seus alunos, mesmo que esteja um
pouco adiantado, renunciando a defender a imagem do professor
‘que sabe tudo’...”.
Defende Perrenoud que tornar o conhecimento apaixonante...
“Não é somente uma questão
de competência, mas de identidade e de projeto pessoal do
professor. Infelizmente, nem todos os professores apaixonados
dão-se o direito de partilhar sua paixão, nem
todos os professores curiosos conseguem tornar seu amor pelo
conhecimento inteligível e contagioso. A
competência aqui visada passa pela arte de comunicar-se,
seduzir, encorajar, mobilizar, envolvendo-se como pessoa”.
As situações de aprendizagem articuladas pela
professora
Desde o início das atividades docentes, o sujeito desse
estudo, vinha se apropriando de inúmeros recursos e
estratégias didáticas que favoreciam o
diálogo com os alunos.
Para aproximá-los dos conhecimentos científicos,
trabalhava a partir das concepções dos estudantes
conforme nos coloca quando se refere às aulas simples, na
linguagem do aluno e ao Mapa da Mina:
(...)
Bom, eu ia trabalhar espaço geográfico... Tentava
sempre fazer o mais simples possível para que ele
entendesse. Espaço geográfico dá uma
impressão assim de espaço, de lua, de planetas. O
espaço que eu tinha que construir com meu aluno era o que
tinha em volta dele, mais próximo, a casa dele, é
o espaço onde ele vive! É o menor
espaço. Daí a gente ia ampliando...
(...) Vai ampliando para o bairro... As ruas próximas da sua
casa, quarteirões. Passa para a cidade, para o estado,
até a maior esfera que é o Planeta. Isso, na
5ª série.
(...) Antes de preparar assim uma aula ... fazia uma
Avaliação Diagnóstica ... fazia o
“Mapa da Mina” ... Na minha primeira aula minha
primeira estratégia, qual seria? Conhecer onde minha pedra
preciosa morava. Então o aluno tinha que me levar da Escola
até sua casa, fazendo um mapa... Eu sabia exatamente onde
cada um morava. Isso me fez aprender a conhecer bem o bairro, os
nomes...
Perrenoud explica que essa competência do professor
é “essencialmente didática”,
e sob minha ótica nada se assemelha “à
aula magistral seguida de exercícios” do antigo
ofício do professor, que ele cita em seus trabalhos. Essa
competência, frisa:“Ajuda-o a fundamentar-se nas
representações prévias dos alunos, sem
se fechar nelas, a encontrar um pouco de entrada em seu sistema
cognitivo, uma maneira de desestabilizá-los apenas o
suficiente para levá-los a restabelecerem o
equilíbrio, incorporando novos elementos às
representações existentes, reorganizando-as se
necessário”. (Perrenoud, 2000, p.29)
Continua ela:
(...)
Ele precisa primeiro sentir sabor, pra depois ele se preocupar com
linguagem. A linguagem em si não é tão
importante...
(...) Apesar de toda simplicidade das minhas aulas eu acho que elas
são bem significativas, tem bastante valor...
O trabalho a partir das representações dos
alunos, não considera o aluno como um aprendiz de mente
vazia, pelo contrário, se interessa por
“compreender suas raízes”, criando
espaço para discussão. Assim não
banaliza suas contribuições, mas avalia sua
capacidade de abstração e identifica suas
dificuldades de conceituar.
A partir de situações amplas e cheias de
significado, a professora conseguia seduzir seus alunos, partindo da
realidade mais próxima para a mais distante
através de propostas inovadoras, como era o caso de realizar
desafios através de jogos, sair com eles para conhecer o
bairro, desenvolver eventos onde eram ampliados os espaços
para criação e reflexão etc.
A capacidade da professora de selecionar as atividades abandonando
aquelas consideradas mecânicas e desagradáveis,
bem como a de eliminar iniciativas que não
constituíam sucesso, vem nos mostrar que ela utilizava
espontaneamente o recurso da
reflexão-sobre-a-ação, sem ter
absolutamente, consciência deste fazer. Contudo, essa
capacidade crítica possibilitava que ela recriasse as
situações, indicando-nos que as
concepções acerca desse processo se baseavam em
modelos centrados nos alunos, os quais apresentam disponibilidades
diferenciadas para aprender.
Ao organizar situações concretas de aprendizagem
a professora dispunha de competências necessárias
para criá-las. Os fragmentos a seguir demonstram como ela
compreendia e dirigia tais situações:
(...)
Poder sair com aluno, pra conhecer o bairro... Fomos conhecer os
setores da economia: setor terciário, o comércio,
fábrica de vassouras, mostrar como se fazem embalagens... A
gente saia com uma quantidade enorme de alunos e via todo o processo...
Muito interessante, porque é isso que faz aprender...
(...) A gente sai daquela aula tradicional, só dialogada e
cria situações novas, como você
perceber que do lado de uma rua só tem números
pares e perceber que do outro só tem números
ímpares. Perceber as garças, que naquela
época tinham no bairro, que ficavam num campo ali e que hoje
são áreas que estão se
industrializando, no setor secundário; ver ruas pavimentadas
e não pavimentadas, saber o que é
pavimentação...
(...) Claro que não se trabalhava
“conteúdo” vendo a rua, mas a
idéia era que depois na sala, se o aluno fizesse o
questionamento... A gente vai fazendo essas
ligações... Quantas meninas varriam uma casa, mas
não sabiam que a piaçava vinha da
Amazônia.
Na análise que Perrenoud faz das competências,
afirma que todas contribuem para animar as
situações de aprendizagem e que algumas
são mais específicas. Ele lembra que o
conhecimento dos conteúdos é importante quando se
quer instruir alguém, mas que a verdadeira
competência pedagógica está em
relacionar os conteúdos aos objetivos e às
situações de aprendizagem. Neste particular,
torna-se “indispensável que o professor domine os
saberes”, diz ele, sendo capaz de identificar o que
é essencial.
Nos exemplos que ela cita percebe-se que o domínio dos
conteúdos didáticos concede-lhe talentos que
possibilitam fluência suficiente para articular
situações facilitadoras das aprendizagens,
aproveita as ocasiões, atende aos interesses dos alunos,
explora os acontecimentos e desenvolve tarefas complexas relacionadas
à transferência dos saberes, sem passar pela
exposição metódica, como chama o autor.
Neste contexto, Perrenoud (2000, p.27) considera:“Essa
facilidade na administração das
situações e dos conteúdos exige um
domínio pessoal não apenas dos saberes, mas
também daquilo que Develay (1992) chama de ‘matriz
disciplinar’, ou seja, os conceitos, as questões e
os paradigmas que estruturam os saberes no seio de uma disciplina. Sem
esse domínio, a unidade dos saberes está perdida,
os detalhes são superestimados e a capacidade de reconstruir
um planejamento didático a partir dos alunos e dos
acontecimentos encontra-se enfraquecida”.
Outra competência admitida por Perrenoud e que a professora
parece-me revelar no seu fazer, desde o início da sua
carreira, baseia-se na idéia de que “aprender
não é primeiramente memorizar, estocar
informações, mas reestruturar seu sistema de
compreensão do mundo”.
Algumas atividades utilizadas pela professora traduzem claramente seus
objetivos quanto ao trabalho cognitivo que ela disponibiliza para que o
aluno domine a realidade de maneira simbólica.
Através de situações-problema, era
possível que os alunos se apropriassem deste problema,
colocando sua mente em movimento, levando-os a construir
hipóteses, proceder a explorações e
tentativas, transpor obstáculos, fazer
transferências e generalizações e
construir conhecimentos novos:
(...)
Depois do Mapa da Mina, que eu cheguei na casa dele, ele vai me mostrar
como que ele mora. Vai virar um arquiteto, construir a casa dele, vai
mostrar por dentro, as repartições,
cômodos. Vou colocar: este é o menor
espaço geográfico que você vive.
(...)
Gostava como gosto até hoje, de jogo de palavras,
caça palavras, cruzadinhas... Eles não precisavam
decorar nada, tinham que saber determinadas palavras que eram o
fechamento de todo um conteúdo.
(...) tentava fazer
atividades, principalmente de Avaliação, que
não decorasse.
(...) Nunca gostei de
questionário. Uma coisa “chata toda
vida”.
A professora assume inúmeras vezes atitudes
próprias de quem domina os conhecimentos
“profissionais” e estes aparecem aglutinados a
outra categoria de saberes denominados “saberes da
experiência” ou “saber da
prática”. Esse saber articula-se aos demais no
exercício da profissão, na
interação com o meio escolar, no trabalho
cotidiano. Incorporados à vivência de cada
indivíduo ou grupos, são habilidades
específicas, formas próprias de saber fazer, de
saber ser e de saber conviver bastante presentes nas
concepções e práticas do sujeito que
atua.
É fundamental lembrar que sua forma de ser advém
principalmente das experiências vividas e de aspectos
subjetivos e intersubjetivos próprios da sua
dimensão pessoal.
Os saberes da “experiência” foram sendo
pois, construídos, devido ao fato de se estabelecer uma
relação de extrema interioridade com sua
prática, fazendo-a sentir não apenas uma
técnica, executante e transmissora do saber, mas uma
legítima produtora de um outro saber que lhe é
válido, que fundamenta sua competência, apesar
deste fator se manter no nível da não
consciência dessa construção.
No decorrer deste processo, a professora percebe os limites, interage
com outras pessoas, improvisa e desenvolve habilidades para enfrentar
situações novas. Esse contexto permite ao docente
“desenvolver os ‘habitus’”, que
podem ser traduzidos como dizem os estudiosos em “estilo de
ensinar, em ‘macetes’ da profissão ...
Os saberes da experiência fornecem ao(a)s professore(a)s
certezas relativas a seu contexto de trabalho na escola...”.
(Tardif et alii, 2001, p.p. 228, 229).
Esses saberes e essas competências decorrem de sua
construção própria, desenvolvidos no
contexto da instituição escola, junto aos alunos,
aos outros professores e a partir da proposta pedagógica da
escola. Neste caso, podemos reconhecer que a arte, a alegria e a
criatividade foram elementos essenciais na
construção dos saberes ditos da
experiência ou da prática, e que os mesmos parecem
ser tão legítimos quanto àqueles
produzidos nos meios acadêmicos.
Referências
PERRENOUD, P. Dez Novas Competências para Ensinar. Trad.
Patrícia Chittoni Ramos. Porto Alegre: Artmed, 2000.
____________, Dez Novas Competências para uma nova
profissão. In: Revista Pátio. Porto Alegre: Artes
Médicas, 2001.
___________, Et alii. Formando Professores Profissionais:
três conjuntos de questões. In:PERRENOUD, P. et
alii (org.). Formando Professores Profissionais: Quais
estratégias? Quais competências? Trad.
Fátima Murad e Eunice Gruman. 2a ed. rev. 1 Porto Alegre:
Artmed, 2001.
SIMÕES, M.C. Tornando-se professor no contexto escolar: os
saberes, as competências, a formação.
Monografia de Pós-Graduação em
Coordenação Pedagógica –
Teoria e Prática. UNITAU. SP, 2002
TARDIF, M., LESSARD, C. e LAHAYE, L. Os professores face ao saber:
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Teoria e Educação, 4, 1991.
_________, Os professores enquanto sujeitos do conhecimento:
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In: CANDAU, V. M. (org.). Didática, currículo e
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2001.